A greve dos caminhoneiros ao longo da última semana evidenciou não apenas como dependemos de combustíveis fósseis para que toda uma rede econômica funcione harmonicamente, mas também como estamos habituados a uma lógica de consumo imediatista, industrializada e pouco sustentável. Segundo Júlia Righi, doutora em geotécnica ambiental pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), e professora da Faculdade de Engenharia da UFJF, a crise de abastecimento vivida na semana passada mostra como os hábitos de consumo do povo brasileiro levam ao desperdício. “Quando uma crise como essa se instala, fica claro o que é essencial. A falta de combustível nos faz avaliar quais deslocamentos são realmente necessários. Em dias comuns, não costumamos fazer essa reflexão. Ter o carro à disposição e poder ir com ele a qualquer lugar sem um mínimo de planejamento criará gastos não só com a gasolina, mas também com estacionamentos, pedágios e outros. Além disso, a crise também nos faz repensar os hábitos de consumo quando somos ‘obrigados’ a pagar preços exorbitantes por determinados produtos que até então custavam bem menos. Isso nos leva a refletir que, no dia a dia, acabamos gastando muito com supérfluos”, avalia a especialista.
Segundo Júlia, os brasileiros vivem em uma cultura de excessos, apesar da desigualdade social no país. “Pelo fato de o Brasil ser rico em recursos naturais, pode haver uma sensação de que os mesmos são inesgotáveis, mas isso é um grande engano. Acabamos nos tornando extremamente dependentes das grandes redes de supermercado, e nesse episódio da greve foi possível ver pessoas estocando alimentos que nem mesmo iriam consumir em um período tão curto. Mais uma vez, entra o desperdício e até mesmo a falta de empatia para com aqueles que, de fato, poderiam estar precisando de tal produto, o que também aconteceu quando os postos começaram a ter gasolina”, observa.
‘Vivendo equivocadamente’
A escassez dos recursos levou alguns juiz-foranos a se repensarem como consumidores dentro da sociedade. Quando a gasolina foi sumindo dos postos da cidade, a professora universitária Renata Vargas deixou o carro na garagem e passou a fazer seus trajetos rotineiros de bicicleta. “Eu já tenho a atividade física incorporada à minha rotina. A falta de combustível, para mim, foi uma forma de ver o quanto estamos vivendo equivocadamente, pegando carro para fazer percursos que poderíamos fazer a pé ou de bicicleta. Até como opção ao transporte coletivo também, porque muitas pessoas só têm ele como opção. A correria aos postos e a histeria das compras de supermercado mostram o quanto estamos egoístas, sem senso de comunidade e empatia”, pontua ela.
Renata reconhece, entretanto, que trocar o carro pela bike não é uma opção para todo mundo, inclusive pela falta de infraestrutura da cidade. “Além de ter acesso à bicicleta, moro relativamente perto do trabalho e dos lugares que preciso ir no cotidiano. Mas as ruas cheias de buracos são um grande empecilho. Tenho duas bicicletas, uma levinha, que uso em provas de duathlon e triathlon. Mas com essa é impossível circular na cidade, pois, o asfalto como está, iria destruí-la. Uso a mountain bike, que é mais pesada, mas mais resistente”, diz ela, que pretende incorporar ainda mais o uso da bicicleta como opção de transporte. “Comprar e usar carro (sem necessidade, claro) só alimenta uma indústria da qual economicamente não fazemos parte. Como sociedade, precisamos exigir transporte público de qualidade, infraestrutura e mudanças em como o trânsito opera atualmente na cidade. Individualmente, eu vou passar a usar a bicicleta muito mais para afazeres e deslocamentos possíveis com ela.”
‘Precisamos cortar os excessos’
Conforme observou Júlia Righi, a crise aponta para a necessidade cortar os excessos, e que isso deve ser um exercício diário. “Podemos sim, comprar apenas o que realmente vamos consumir, evitando o desperdício de alimentos, por exemplo. Isso tem um impacto também em nossa dependência de combustível, que sempre existirá, mas pode ser amenizada, por exemplo, com a diminuição de lixo gerado, já que ele deve ser transportado até o aterro sanitário, seu destino final. Porém, a utilização e queima desse combustível seria menor caso a quantidade de lixo gerada fosse menor. Nesse caso, voltamos na questão do consumo. Quanto menos consumirmos, menos impactamos o planeta. Claro que não é fácil parar de gerar lixo, mas podemos pelo menos tentar reduzir o consumo e ainda reutilizar e reciclar os produtos. Dessa forma, menos lixo chegaria aos aterros, o que só beneficiaria o meio ambiente em diversos níveis”, analisa a especialista.
Ao contrário do que muitos pensam, não é necessário dispor de muito espaço ou recursos para realizar a compostagem do lixo, processo de transformação de sua matéria orgânica em adubo, considerada uma espécie de “reciclagem” do lixo orgânico. Bem no Centro de Juiz de Fora, em um apartamento situado na Rua Halfeld, a aposentada Maria Inês Dias Vieira Prata, de 77 anos, realiza, há mais de dez anos, o procedimento. “É muito fácil, não dá cheiro, não atrai insetos. A gente tem um sistema de caixas em que uma recebe o chorume, e a gente troca quando enche. Temos minhocas que trabalham silenciosamente transformando o lixo em adubo orgânico e doo o material para produtores que precisam dele. É surpreendente como a quantidade de descarte diminui”, diz a idosa, que pensou muito nas dificuldades de transporte de resíduos com a falta de combustível. “Situações como a greve podem afetar o funcionamento da coleta, inclusive. As pessoas precisam pensar em alternativas para que não haja transtornos em momentos como este”, opina.
Pequenos hábitos fazem a diferença
Para a engenheira Júlia Righi, a busca por um consumo mais sustentável vai além da preservação dos recursos naturais e de “contribuir com o planeta”. “Produzir menos lixo, priorizar a qualidade e não a quantidade de produtos, deixar o carro na garagem quando possível, dar preferência ao comércio local… tudo isso tem um impacto muito positivo na qualidade de vida das pessoas. São pequenos hábitos, mas que a longo prazo pode sim fazer a diferença”, analisa.
Depois de uma viagem pela América do Sul de bicicleta com três amigos, carregando somente o que era possível e vivendo disso, o empresário Kico Zaninetti, ao retornar ao Brasil, teve dificuldade de se reenquadrar no modelo consumista de sociedade em que vivemos. “Sempre fui da bike, sou ativista do Mobilidade JF (ex Mobilicidade) e sempre militei em prol de condições para o uso do ciclismo como alternativa no meio urbano. Hoje uso menos porque me mudei para uma granja em Grama, mas não tenho carro por opção, uso transporte público e tenho uma moto, mas contingencio muito o seu uso. Outra coisa que priorizei quando quis abrir meu negócio, uma agência de comunicação, foi priorizar o home office para todo mundo, limitando encontros presenciais a reuniões que não podem ser virtuais, o que diminui muito a necessidade de deslocamento e ajuda a evitar a saturação do espaço urbano. É uma atitude pequena, mas pensando no coletivo, que se mais pessoas tomassem, poderia ter um efeito muito relevante.”
Como vive em um espaço que lhe permite, Kico também tem uma horta e um pomar, algo que transformou não apenas sua relação com os alimentos, mas seu perfil como consumidor. “Não tenho autossuficiência, mas tenho minha horta, minhas frutas e uma variedade enorme de ervas como manjericão, tomilho, orégano e outras. É urgente pensar na maneira como consumimos, dependendo menos de combustíveis fósseis, de grandes indústrias… Se as pessoas ficaram nessa histeria com a falta de gasolina, imagina quando houver escassez de água?! É preciso começar a pensar nisso agora, antes que isso aconteça”, preocupa-se ele.