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Pai e filha que denunciaram episódio de racismo na UFJF tomam medidas jurídicas

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“Nunca pensei que fosse passar por tamanha humilhação na vida. Sempre circulei pela universidade me sentindo em casa, hoje não tenho coragem de voltar lá”, conta, com muitas pausas e algumas lágrimas, um homem de 64 anos, pai de uma aluna do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF. Com apoio do coletivo Descolônia, de alunos e artistas negros do IAD, pai e filha fizeram uma denúncia de racismo institucional em vídeo pela página do movimento, sobre um caso que teria ocorrido no dia 2 de junho, no estacionamento do IAD. Na gravação de seu depoimento, o senhor conta ter sido abordado por vigilantes armados quando entrou em seu próprio carro, trajando um capuz e segurando um berimbau.

Já orientados por uma advogada, a estudante e seu pai têm processos abertos na esfera institucional, criminal e civil. “Não vai apagar a dor que eu senti ao ver meu pai se sentindo culpado, envergonhado, dizendo que não conseguia mais se olhar no espelho. Mas denunciar e tomar as medidas jurídicas cabíveis é o que pode garantir que outras famílias negras não passem por isso no campus. E é também uma forma de pressionar a universidade para um treinamento melhor para os profissionais. Não é um mal-entendido, como quiseram dizer para nós, porque só acontece com a população negra. Até agora só me ofereceram apoio psicológico, mas é preciso tomar medidas que garantam que isso não vai mais acontecer”, diz a estudante em entrevista à Tribuna. “Eu antes cortava caminho pelo campus, ficava passeando para esperar minha filha sair da aula. Hoje para mim é muito difícil voltar à UFJF, não quero que meus netos sintam isso lá ou em qualquer lugar”, completa o pai da aluna.

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Para Paula Duarte, integrante do coletivo, é fundamental que o caso seja reconhecido como um episódio de racismo institucional. “É uma questão de conjuntura, não de personificar o ato em si em um culpado. A falta de treinamento, que levou a um ato de racismo, é um problema institucional. O racismo precisa ser discutido nas rotinas profissionais também, do campus como um todo, inclusive pelos brancos. Casos como este deixam muito evidente que estamos muito sós, nós por nós mesmos.”

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Apuração em âmbito institucional é prioridade

Segundo a advogada Lia Manso, titular do caso, apurar o ocorrido em âmbito institucional é uma prioridade, feita a partir de um registro de ocorrência junto à instituição, para apurar a conduta dos agentes terceirizados e do servidor responsável pela segurança envolvidos no episódio. “Infelizmente, a equipe de segurança impediu que minha cliente registrasse a ocorrência no momento em que ela aconteceu (uma sexta-feira), orientaram que ela retornasse na segunda-feira. Mas quando ela chegou, o registro já havia sido feito pelos próprios vigilantes, e, com muitas barreiras e não sem orientação legal, ela conseguiu fazer a retificação de vários pontos, como a de que o pai portava um bastão em vez de um berimbau e a de que ele ‘circulava’ pelo estacionamento”, explica.

A profissional explica que, feita a retificação, a Diretoria de Segurança e a Diretoria de Ações Afirmativas foram acionadas para que tomem as medidas necessárias para o andamento das investigações. “Esta instância é de maior importância neste momento porque permite a responsabilização dos agentes diretos, que sacaram a arma e vulnerabilizaram a segurança da aluna e do pai dela. A partir do andamento do caso na frente institucional, eles também poderão figurar no processo criminal. Isso dará celeridade à ação na esfera criminal porque, muito provavelmente, os depoimentos serão colhidos com mais rapidez pela universidade do que por um delegado de polícia”, esclarece Lia. “Já solicitamos acompanhamento das investigações internas e vistas no processo, para saber o que foi apurado. Além disso, solicitamos imagens do circuito de câmeras, áudio do rádio dos vigilantes e estamos aguardando resposta da instituição.”

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Segundo Lia, na esfera civil fala-se em “ilícito criminal”, imputada a um dano de natureza extrapatrimonial. “Foi o que aconteceu com a estudante e seu pai. Não foi um dano patrimonial, não estragaram o carro ou um celular, foi um dano à própria livre afirmação da existência dos dois. Por isso, vamos pedir a reparação por danos morais não apenas por parte dos seguranças, mas também da UFJF_ que é responsável pelas pessoas que exercem as atribuições que ela delega, sendo terceirizados ou não”, diz a advogada.

No boletim registrado junto à Polícia Civil, o episódio não foi registrado como racismo, crime imprescritível e inafiançável pelo artigo 5º da Lei 7716 de 1989, mas como “constrangimento ilegal”. “Tipos criminais como estupros e injúrias raciais costumam ser registrados assim numa tentativa de reduzir as situações reportadas, os índices criminais. Mas isso não interfere na ocorrência, porque o boletim segue para investigação e, quando isso acontece, os fatos serão relatados novamente e quando as vítimas descreverem que um segurança sacou uma arma para um homem negro de capuz e segurando um berimbau, é a autoridade civil que colhe o depoimento que poderá avaliar o caso como racismo ou não, independentemente do que tenha sido registrado em um primeiro momento”, pontua Lia.

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Reitor da UFJF expôs situação em reunião

A UFJF informou, por meio da Imagem Institucional, que o reitor Marcus David expôs o caso em uma reunião do Conselho Superior (Consu) realizada na última semana, e a Ouvidoria Especializada e o Departamento de Vigilância estão apurando o ocorrido. A universidade informou, ainda, que a Diretoria de Ações Afirmativas fez acolhimento à estudante e seu pai assim que tomou conhecimento do ocorrido. Ainda conforme a instituição, o curso de capacitação para vigilantes, terceirizados e do quadro da UFJF, está em sua quarta etapa. O Departamento de Vigilância informou que a família foi atendida posteriormente e que todas as solicitações de inclusão e alteração de informação foram feitas e que a estudante teria sim, sido ouvida no local do ocorrido.

A Comissão de Direitos Humanos da OAB está acompanhando o caso para verificar se as normas de direitos e cidadania estão sendo observadas em cada uma das esferas jurídicas em que ela tramita, atuando, inclusive para exigir que as leis sejam cumpridas caso haja alguma omissão ou demora fora do razoável no andamento das investigações, por exemplo.

‘Se eu não chegasse, o que teria acontecido?’

Para a estudante do IAD, o episódio teve vários agravantes, como o fato de nem o pai nem ela terem sido ouvidos para tentarem se explicar. “Quando cheguei ao estacionamento, vi sete vigilantes, alguns de arma sacada, e meu pai dentro do carro. Pensei que o podiam estar sequestrando, assaltando, sei lá. Em todas as vezes que tentei falar, me identificar e identificá-lo, fui completamente invisibilizada, silenciada. No registro de ocorrência, sequer consta que eu estava lá no momento. E ainda assim, não consigo parar de pensar: se eu não chegasse na hora, o que teria acontecido com meu pai?”, indaga a estudante, emocionada. Ela relata, como o pai, também se sentir insegura agora no campus. “É difícil voltar às aulas sabendo que os vigilantes conhecem a placa do nosso carro, sabem onde estudo, fico com medo. Mas se não denunciasse, estaria sendo omissa não só com o que aconteceu, mas com possíveis futuras vítimas”, diz a aluna.

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Para a advogada Lia Manso, em casos como o relatado pela estudante e seu pai, as vítimas devem procurar uma orientação junto a movimentos sociais e profissionais do direito tão logo seja possível. “Neste caso, a estudante e o pai tinham consciência de que haviam sofrido racismo, e o Descolônia os direcionou a mim, que além de advogada sou negra e militante, então tenho uma postura mais empática como operadora do direito. Esta consciência é muito positiva, pois nem sempre as pessoas conseguem identificar que foram violadas em seu direito de existir igualitariamente em sociedade. Movimentos sociais como o coletivo Descolônia, neste caso, ajudam a dar um direcionamento para que as ações jurídicas possam ser tomadas o quanto antes for possível.”

Para Paula Duarte, do Descolônia, o momento abre oportunidade para refletir sobre o racismo em diversos ambientes. “Sempre que chego em um lugar, faço um ‘censo’ mental, conto quantos negros há no ambiente. A universidade, como a maioria dos espaços, ainda é majoritariamente branca. Essa solidão da pessoa negra traz consequências para a saúde física, mental, para o convívio social, a vida afetiva, a autoestima, em diversos níveis. É preciso fazer com que o homem negro deixe de ser ‘elemento suspeito'”, opina ela.

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