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A cada dois emplacamentos, um acidente com moto acontece em JF

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Acidentes com moto são comuns em vários locais da cidade, como a região central, o que leva a uma normalização desses sinistros, segundo secretário da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora, Nicolas Santos (Foto: Leonardo Costa)
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A cada duas novas motocicletas que entram em circulação, um acidente envolvendo motociclista acontece na cidade. A proporção é fruto de um cruzamento entre o número de emplacamentos realizados pelo Departamento Estadual de Trânsito e das ocorrências divulgadas pelo Samu em 2023. Frente à realidade em que “tempo é dinheiro”, e a moto, meio de sustento, motoboys como Nicolas Santos rasgam as avenidas, todos os dias, na expectativa de voltar para casa. O panorama é confirmado pelos dados do serviço de emergência que atendeu 489 acidentes envolvendo motociclistas com carros, 14 com bicicletas, 252 por quedas e outras 68 colisões com outras motos, só neste ano em Juiz de Fora.

O início do trabalho de Nicolas como motoboy se deu ainda durante a pandemia. O ofício surgiu como uma necessidade em vista do desemprego e do papel de pai de dois filhos. “Foi uma janela bem específica: em 2019 iniciei o ano na minha antiga profissão (instrutor de autoescola). No decorrer do ano, comecei a trabalhar na Uber. No fim do ano, decidido a trabalhar na minha área de formação (gestão ambiental), iniciei uma mudança para a Serra do Cipó, mas a pandemia fechou o parque (Parque Nacional da Serra do Cipó) e atrapalhou meus planos e os de todo mundo.”

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Também foi nesse período que a correlação entre as taxas de acidentes de moto com a expansão das frotas se estreitou. Conforme observa o relatório sobre o cenário brasileiro das lesões de motocicletas no trânsito de 2011-2021, da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, foi uma tendência que se agravou justamente pela pandemia, “com crises estruturais do transporte público, demandas por serviços de tele-entregas, em sistemas de trabalhos precarizados e sem nenhuma garantia ou direito ao trabalhador, somada às vantagens que estes veículos (motos) apresentam como tráfego fácil, estacionamento, baixos custos de aquisição e manutenção”, observa o documento.

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Curva ascendente

Entre 2020 e 2021, 369 novos emplacamentos foram registrados pela Coordenadoria Estadual de Gestão do Trânsito (CET) em Juiz de Fora, o maior crescimento em seis anos. No ano seguinte, a frota de moto no município chegou à marca de 42.140 motocicletas, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em 2023, as motos passaram a representar quase metade dos novos emplacamentos de veículos na cidade.

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Acompanhando esse aumento na frota de motocicletas, os acidentes entre carros e motos, que são os que apresentam as taxas mais elevadas de incidência, também cresceram. No período de 1º de janeiro a 30 de outubro de 2022, o Samu registrou 433 atendimentos em decorrência dessa dinâmica de acidente; em 2023, são 489. Curva de crescimento similar pôde ser vista nos acidentes de moto com outros veículos no geral, como bicicletas, outras motos e até mesmo queda. Juntos, ano passado foram 689 casos; neste ano, já passam de 820.

Moto como ferramenta de trabalho

A procura por uma fonte de renda durante a pandemia foi o que levou Nicolas a trabalhar como motoboy, quase que instantaneamente. Embora ele tivesse formação em gestão ambiental, a realidade da maior parte das pessoas que recorreram ao segmento se deve à facilidade de se alocar no trabalho. E isso independe de formação específica, como explica o economista Bruno Dore. “Motoboy é uma profissão que vem crescendo há muitos anos justamente pelo trânsito da cidade, pela praticidade e pelo custo que é reduzido frente a algumas outras formas tradicionais de fazer o transporte de mercadorias, e acentuou durante a pandemia.”

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O economista também observa que neste período houve uma migração natural para o setor. “O número de pedidos de comida em casa cresceu e foi um hábito que ficou, devido à praticidade. Além de ser uma forma de emprego na qual você tem muita facilidade de se alocar no mercado. Para uma pessoa ser motoboy, ela não precisa ter uma qualificação ou grandes investimentos.”

Na visão do professor João Dulci, pesquisador em sociologia econômica e relações de trabalho na Universidade Federal de Juiz de Fora, é preciso resgatar, porém, o contexto de falta de dinamismo de vários setores econômicos brasileiros, como os de serviço. Isso faz com que as vagas que surgem nesse segmento sejam de baixa qualificação e, consequentemente, de baixos rendimentos. “Se o modelo econômico menos dinâmico se baseia na exploração da mão de obra, isso ajuda a explicar essa ideia muito difundida de precarização. De fato estamos falando de um trabalho muito desassistido, informal, sem regulação decente, com altas jornadas de trabalho”, expõe o sociólogo.

Motoboys: das entregas às reivindicações

As possibilidades de trabalho como motoboy vão desde vinculados a um aplicativo ou empresa a registrados formalmente como microempreendedores individuais (MEI). Usualmente com três turnos em uma jornada de trabalho que chega a 12 horas, o profissional se depara muitas vezes diante de um dilema entre esticar os três horários para receber mais ou descansar.

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No caso do cotidiano de Nicolas, a jornada variava dependendo da avaliação dele. “De forma geral, é um pouco fluido: combino o trabalho por aplicativo com ‘frilas’ em restaurantes, pizzarias e lanchonetes – depende da oferta. Digamos, por exemplo, que eu consiga uma oferta em uma pizzaria, que me garanta R$ 150, em média, por um turno de seis horas. Pode ser que eu consiga fazer esse valor no app, pode ser que não. Aí eu opto pelo que é garantido. Se um trabalho desses não surge, eu opto pelo app”, explica ele, à medida em que observa que já abriu mão de alguns serviços por ser mais útil descansar diante de uma proposta pouco rentável.

Ele comenta também existirem os casos em que o trabalho de mototáxi e Uber Flash (de transporte de objetos), são usados como um complemento de renda durante turnos extras. O trabalho exaustivo é muitas vezes levado a seu ápice, situação que Nicolas avalia ser comum nas grandes cidades. Embora ele nunca tenha passado por essa experiência em específico, colegas de trabalho compartilharam essa e outras dinâmicas na rotina de um entregador com ele.

Clientes mal-educados, subir em prédios, ser bloqueado pelas plataformas e a insegurança no trabalho são alguns tópicos dentro das “rodinhas de motoboys”. Diante disso, foi fundada a Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora, da qual Nicolas é secretário. A entidade faz parte da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos. Atualmente Nicolas se distanciou do tráfego das avenidas para fazer uma mobilização política pelo processo de regulamentação do trabalho por aplicativos, integrando o grupo de trabalho tripartite instituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego que discute, entre outras coisas, a segurança de entregadores de aplicativo.

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Perfil dos motociclistas vítimas de acidente

Uma das questões que mais afligem a categoria de entregadores é a segurança de seus integrantes. Os motoboys, expostos durante a pandemia, permaneceram sujeitos a outros tipos de riscos, que são os acidentes. O ditado comum, entre eles, é “a gente sabe que sai, a gente não se volta”. “Só este ano, perdemos 15 companheiros”, conta Nicolas.

A frequência com que acidentes acontecem com motociclistas fez com que os sinistros fossem normalizados, opina Nicolas. “Ando de moto como ando a pé, sem muita noção de que posso tropeçar a qualquer momento, mas na moto pode ser fatal. Isso tende a vir para a superfície e virar medo quando um dos nossos se acidenta: um misto de medo, tristeza e revolta é o que se sente, e também é o tom dos colegas nos grupos de WhatsApp – todo mundo fica meio filósofo”, ele diz, ao passo que acrescenta como isso repercute entre eles.

“Aí, família, tem que lembrar que a melhor entrega é a nossa, pra nossa família” e “vamo manter no talento que não compensa correr, olhaí o mano”, os demais motoboys comentam. Segundo ele, a verdade é que a correria do trabalho se impõe e eles retornam às ruas com o medo em um lugar bem guardado, até o próximo acidente.

Acidente de trânsito x acidente de trabalho

No boletim epidemiológico divulgado este ano pelo Ministério da Saúde, Minas Gerais ocupa a sétima posição na taxa de mortalidade entre motoboys no ano de 2021. No que se refere a internações, entretanto, o estado fica em 16º lugar, abaixo da média brasileira. Os números podem refletir a exposição desses profissionais durante a pandemia.

O estudo ainda abarca o perfil das vítimas fatais de motocicletas em lesões de trânsito. Há três anos, os óbitos eram registrados predominantemente entre o sexo masculino (88,1%), adultos jovens com idade entre 20 e 29 anos (30,8%), de baixa escolaridade, com 8 a 11 anos de estudo (39,6%), negros (64,9%) e solteiros (57,3%).

Para o doutor em sociologia João Dulci, esses dados refletem um problema brasileiro, que é a relação entre cor e renda média, comumente empurrando pessoas negras para estratos mais baixos. “Se somarmos as questões relativas à economia e às relações de trabalho, com esse segundo ponto, podemos entender que, sendo a maioria dos entregadores, os negros vão sofrer mais acidentes, até porque as longas jornadas e o trânsito violento do país só pioram esse quadro”, analisa o sociólogo.

Já a via pública é indicada como o principal local de ocorrência de óbito (49,5%) desses profissionais, de acordo com o relatório do Ministério da Saúde sobre o ano de 2021. De acordo com Nicolas, entretanto, os acidentes que ocorrem entram para as estatísticas de “acidentes de trânsito”, quando deveriam ser, segundo ele, “acidentes de trabalho”, uma diferença que ele avalia como fundamental. “A normalização (dos acidentes nesse ramo) não diminui a pressão: a gente precisa voltar pra casa”, reivindica Nicolas.

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