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17 anos da lei Maria da Penha: a possibilidade de recomeço para mulheres

Casa da Mulher 2 fernando priamo
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“A vida começa quando a violência acaba”, disse a mulher que inspirou a lei Maria da Penha, que completa 17 anos de sanção nesta segunda-feira (7). Por meio do código que criminaliza todo o caso de violência doméstica, outras mulheres puderam ser testemunhas de sua fala. Como o caso da mulher que compartilhou sua história com a reportagem, que desabafa após conseguir distância do abusador: “Hoje eu vivo”.

Ainda na adolescência, em Matias Barbosa, ela conheceu o homem com o qual viria a ter três filhos. A partir de então, foram 13 anos de relacionamento abusivo. O que antes eram empurrões, viraram uma vassoura quebrada em seu braço, hematomas que a marcaram por meses até chegar em uma tentativa de homicídio.

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No começo do relacionamento, o namorado possuía nuances entre calmo e nervoso, e ela tentava acalmá-lo. Mas não demorou muito para que ele se voltasse também contra ela e os filhos. “Ele era rígido com as crianças, e elas também apanhavam, por isso eu entrava na frente”, revela a mulher. Diante das agressões das quais ela era vítima, ela chegou a fazer queixas da violência à polícia. Contudo, devido à pressão psicológica, mais tarde, ela as retirava.

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Com a expectativa de escapar das surras e ameaças, ela se mudou para Juiz de Fora. Na cidade, não havia ninguém por perto – o que a libertava dele, mas a colocava em risco pelo mesmo motivo. A mudança de cidade foi o pontapé para um recomeço e uma nova medida protetiva. Entretanto, os desafios persistiam.

Sem acesso a ela, o homem começou a recorrer aos filhos. “Ele ligava para as crianças e perguntava onde elas estavam, quem estava na casa e falava que precisava falar comigo sobre elas”, conta. “Ele começou a ir na porta da escola, buscar as crianças e ficar dando volta com elas na rua. Como ele é dependente químico, isso gerou receio.”

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A dinâmica explorada pelo ex-marido começou a gerar impacto intenso também na vida dos filhos. Quando a mais velha ia estudar, o homem se aproximava para tentar denegrir a imagem da mãe para a filha. “Às vezes, ela estava indo para a escola, mas voltava para casa ao vê-lo”, conta a mulher sobre a situação que fez a escola acionar o Conselho Tutelar. Orientada a fazer outro boletim de ocorrência pelo órgão, os filhos também conseguiram medida protetiva contra o pai.

O trauma os acompanhou pelo período que se seguiu. No silêncio da noite, a mulher temia que qualquer barulho que cortasse a calmaria fosse um prenúncio do ex-marido surgindo novamente em suas vidas. Já os filhos se sentiam atormentados pelo passado quando ligavam para a mãe e ela não atendia.

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Com ajuda de uma corrente de apoio e do acompanhamento da Casa da Mulher, atualmente ela reconstruiu sua vida. “Hoje posso dizer que eu vivo, porque antes não tinha expectativa de vida. Uma hora ele ia me matar, e eu achava que nunca ia me libertar.” Ela comenta que vivia sob a sombra de uma concepção herdada há décadas, em que quando um casamento não dá certo, a morte seria a única saída. Hoje, ela cuida dos quatro filhos – a mais nova fruto de outro relacionamento. A família é feliz em um ambiente de amor e parceria, superando todas as expectativas que já teve um dia.

Abusadores têm perfil comum

De acordo com Thaty Campos, especialista em relações de gênero e sexualidade, existe um perfil comum aos abusadores. “Uma das estratégias usadas para desacreditar a vítima é ser uma boa pessoa, um bom pai aos olhos da sociedade e, em quatro paredes, utilizar do ponto fraco da mulher, no caso os filhos, para violentá-la”, explica a pesquisadora, ao apresentar as similaridades com o ex-marido da entrevistada.

O uso dos filhos costuma ser uma estratégia recorrente para dominação, explica Thaty. Nessa relação de poder articulada pelo abusador, o medo é o principal instrumento, com o uso dos filhos para amedrontar a mãe. “Por isso, na maioria das vezes, as vítimas com filhos retiram a queixa, convivem com o abusador e mantém o relacionamento.”

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A importância de não estar sozinha

A Casa da Mulher realiza, desde 2021, o acompanhamento de 2.361 mulheres vítimas de violência doméstica. Mais do que um equipamento público mantido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, que fornece apoio jurídico, o local oferece a possibilidade de construir novos laços. Como no caso da protagonista da história acima, que encontrou a escuta nas psicólogas de lá.
Os atendimentos podem ocorrer por meio de encaminhamento por parte de vários segmentos, como assistência social, Polícia Militar, Polícia Civil e até a própria Delegacia da Mulher. Para isso, são identificados os cinco tipos de violência os quais a mulher encaminhada pode ser vítima.

As agressões psicológicas disparam como as mais registradas, com 1.865 casos contabilizados pela Casa da Mulher. Em seguida, aparece a agressão moral (1.245), física (537), patrimonial (346) e, por fim, sexual, com 117 ocorrências. As mulheres com escolaridade até o ensino médio aparecem como as mais atingidas, seguidas por aquelas com ensino fundamental.

Com o suporte oferecido pela Casa, as mulheres são encorajadas a saírem de situações de violência e abuso. Para atingir esse objetivo, a autonomia é estimulada a medida em que também são desenvolvidas ações de inclusão social. Conforme explica Maria Cristiane Ribeiro, coordenadora, as práticas elaboradas na instituição consistem em auxiliá-las na reconstrução de suas vidas.

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“O serviço social também busca promover a inclusão social e econômica das mulheres, por meio de capacitação e encaminhamento para empregos e programas de geração de renda”, explica Maria. Nesse sentido, o local oferece grupos reflexivos, práticas integrativas como yoga, dança circular, arte-terapia, oficinas, palestras, grupos de apoio, cursos e o Programa Auxílio-Moradia, benefício destinado a vítimas de violência doméstica e de gênero.

Rumo a novos avanços

A delegada Danielle Alves Ribeiro comenta que, apesar de muitos avanços, ainda há muito caminho a ser percorrido. Ela cita a demanda reprimida e os desconhecimentos da lei Maria da Penha e sobre o que é um relacionamento abusivo, além dos órgãos existentes de acolhimento à vitima.

“Temos feito campanhas de conscientização em escolas, reuniões, palestras e tudo isso ajuda. Mas o ideal seria uma educação nesse sentido desde a base”, observa a delegada. Para ela, o machismo estrutural dificulta o combate a culturas discriminatórias. Ela pondera, no entanto, que ações preventivas têm sido adotadas tanto em escolas quanto em patrulhas realizadas ela Polícia Militar. O trabalho, no entanto, deve ser feito em rede, aponta a delegada.

Dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) apontam que de 2021 até junho de 2023 houve 17 tentativas de feminicídio em Juiz de Fora. Destas, seis foram consumadas. Ampliando o escopo para violências doméstica e familiar, os números são ainda mais expressivos. Conforme levantamento da Sejusp, foram 2.368 casos registrados nos primeiros seis meses deste ano na cidade, alta de 133 registros ante igual período do ano anterior e 102 casos a mais em relação a 2021.

A delegada relata que o crescimento se dá, também, devido ao aumento das denúncias pelas mulheres. A localização central da Delegacia da Mulher e canais como o Frida ajudam no acesso aos direitos, elevando as taxas. “Temos tido avanços, mas é preciso mais. É uma questão cultural. Não adianta só penalidades, a gente precisa coibir o mal pela raiz”, defende a delegada.

A importância da lei Maria da Penha

Através da Lei Maria da Penha, medidas de proteção às vítimas foram instituídas, a penalização se tornou mais dura e os tipos de violência à mulher foram classificados em físico, psicológico, moral, sexual e patrimonial.

Com isso, as medidas protetivas podem ser concedidas, com a transferência da vítima para um equipamento de acolhimento, o afastamento do agressor do lar e a proibição de contato. Por direito, a mulher tem como realizar a manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses, caso ela precise se afastar.

Esse aspecto se estende também para recursos jurídicos, em que a vítima tem acesso a assistência, quando quer se separar ou precisa de orientações nesse sentido.

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