“Ensinamos as meninas a sentir vergonha. ‘Fecha as pernas, olha o decote.’ Nós as fazemos sentir vergonha da condição feminina, elas já nascem culpadas. E crescem e se transformam em mulheres que não podem externar seus desejos. Elas se calam, não podem dizer o que realmente pensam, fazem do fingimento uma arte. Conheço uma mulher que odiava tarefas domésticas, mas fingia que gostava, pois fora ensinada que ‘uma boa esposa’ tem de ser ‘caseira’. Ela por fim se casou. A família do marido começou a reclamar quando seu comportamento mudou. Ora, na verdade, ela não mudou. Apenas se cansou de fingir ser o que não era”, o trecho acima faz parte do discurso “Nós somos todos feministas”, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, que se destacou, mundialmente, por sua luta pela igualdade entre os gêneros.
Ainda de acordo com Lara, é necessário reconhecer que essas violências são fruto de uma construção histórica, na qual a condição da mulher foi estruturada a partir de relações de opressão e de desigualdade de gênero. “Isso tem como alicerce uma sociedade machista e patriarcal. Esses pilares, unidos a outro que é o racismo, vão produzir, historicamente, essas violências e vão criar diferentes condições de vulnerabilidade ou de sofrimento para as mulheres”.
Dessa forma, não se pode considerar que a violência ou os abusos direcionados às mulheres são os mesmos para todas. “Existem diferentes formas e afetam de diferentes modos as mulheres, por exemplo, as mulheres negras, as transexuais, as mulheres pobres, moradoras de zonas periféricas dos centros urbanos. A desigualdade vai se destacar nesse sentido”, pontua Lara.
Ao trazer à tona essa reflexão sobre a violência naturalizada contra as mulheres, a Tribuna inaugura, neste domingo (8), Dia Internacional da Mulher, a série “Na pele delas”. Ao longo da semana, a cada dia, uma mulher irá contar aos leitores como foi impactada, transformada ou até ferida, ora por comportamentos e situações, ora por palavras e gestos, na sua condição de ser mulher. Neste domingo, a atleta de futsal Marina Loures conta como não deixa de se posicionar ou apontar situações em que o machismo se faz presente na sua vida e de outras mulheres.
Venda nos olhos
Para as mulheres, às vezes, é muito difícil detectar esse tipo de abuso, e essa venda nos olhos tem ligação com a formação da subjetividade de cada uma e está relacionada com a cultura, o contexto histórico e questões políticas e econômicas. “Podemos dizer que nós mulheres fomos formadas a partir de uma subjetividade patriarcal, ou seja, que reconhece o modelo patriarcal como supostamente “correto” e que vai produzir o que é considerado normal ou anormal na nossa sociedade. Então, temos dificuldade de detectar essa violência, porque estamos normatizadas, enquadradas dentro desse modelo de sociedade, que vai legitimar, muitas vezes, o lugar de mulher mãe e dona de casa como um lugar supostamente correto”, considera.
Há muitas mulheres que se colocam como culpadas no que diz respeito aos comportamentos abusivos. Na visão de Lara, essa culpa tem ligação com um cenário machista e sexista. “Aprendemos que devemos sorrir para determinadas situações, que não pode sentar de determinada forma, que se deve agir de determinada forma para conseguir um casamento. Então, há uma série de coisas que colocam as mulheres nesse lugar de culpa.”
Momento de instabilidade
Dados estatísticos não conseguem traduzir a realidade dessa violência que não se escancara, mas o contexto histórico atual, que aponta para mudanças de comportamentos, pode provocar insegurança tanto nos homens quanto nas mulheres na lida entre os sexos, gerando abusos. Lara Calais pondera que o momento é marcado por mudanças que envolvem grandes ondas de pensamento e disputa de narrativa. “Temos uma grande onda conservadora que tenta manter determinados processos e temos uma grande onda de resistência feminista, que vem trazendo avanços significativos para a vida das mulheres. De fato, vivemos um momento instável, porque essas mudanças estão em pleno acontecimento.”
Para ela, a tecnologia é um elemento forte na contemporaneidade, que obriga reflexões sobre o modo como as relações subjetivas e objetivas estão sendo mediadas por ela, principalmente com o advento das redes sociais. “Considero que existe uma potência grande, quando se consideram as diferenças geracionais. Por exemplo, mulheres, entre 40 e 50 anos, que tiveram uma formação sobre o que é ser mulher muito relacionada ao casamento, a situações de trabalho e à família, e mulheres, de 30 anos, que tiveram condições relacionadas a estudo, marcando diferentes condições de ser mulher em nossa sociedade, com episódios distintos para negras e trans. E há ainda uma geração mais recente, que tem relações diferentes com o próprio corpo, com a sexualidade, com a experiência na relação com o outro, com a tecnologia e que vem de fato conseguindo entender que as mudanças estão acontecendo e que existem avanços para as diferentes experiências de ser mulher.”
Lara assinala que os movimentos sociais, os coletivos e as expressões artísticas têm feito resistência, luta por garantia de direitos e denúncia desses abusos e violências. “Temos conseguido criar fissuras nesse modelo de sociedade que possam trazer mudanças efetivas para essas condições de desigualdades que nós vivenciamos.”
Desafios e o papel do homem
Apesar dos avanços, ainda há desafios para que a mulher tenha sua dignidade respeitada, como a superação e criação de estratégias para o enfrentamento contra o machismo. Além disso, Lara ressalta que é preciso explicitar os movimentos femininos e as conquistas conseguidas ao longo do tempo, como também questionar a ideia de dignidade. “Porque a dignidade pode ser diferente a partir do lugar de quem olha. Costumo dizer que depende do tamanho da montanha de privilégios em que estamos sentados em cima. Então, se estou sentada numa montanha de privilégios muito alta, vou olhar o que é dignidade a partir de uma perspectiva. Se a minha montanha é baixinha, uma vida digna, boa ou “correta” é outra coisa. Então, costumo falar de uma vida ética, que crie condições para que as mulheres sejam respeitadas e protegidas por políticas públicas. E, por último, que se reconheçam as diferenças e haja atuação a partir delas, pois se continuarmos com um único modelo sobre o que é ser mulher, vamos continuar perpetuando esses abusos na sociedade.”
Quanto ao papel do homem nessa conjuntura? “Ele precisa de ser um componente importante nessa luta, nessa construção ou desconstrução. Os primeiros elementos para que ele não cometa esse comportamento abusivo é o reconhecimento de si como sujeito construído pelo machismo. Esse é o passo mais importante, ou seja, dar abertura para o entendimento do machismo, porque, muitas vezes, o que vemos é uma posição defensiva como se o feminismo fosse o contrário do machismo, e não é. O machismo tem a ver com a relação de violência, de opressão em relação ao outro. Já o feminismo traz a luta por garantia de direitos”, afirma a professora.
Clique aqui e confira a primeira matéria da série “Na pele delas”, com a juiz-forana Marina Loures.