“É justamente na representação viva da realidade que está oculto o mistério de nossa presença aqui, lá fica descoberta a tragicidade insuperável da vida. Seu caos e paixão. Sua unicidade e incompreensibilidade.” Para a escritora ucraniana Svetlana Alexijevich, prêmio Nobel de Literatura de 2015, a história só se humaniza quando as mais distintas vozes são ouvidas. A história tem histórias. Nessa perspectiva, a Tribuna inicia neste domingo, 7, o resgate das trajetórias e da saudade que as estatísticas não dão conta de informar.
Familiares e amigos podem encaminhar relatos para a redação pelo e-mail redacao@tribunademinas.com.br ou pelo WhatsApp (32) 99975-2627, contribuindo para a formação de um memorial sobre as vítimas de Covid-19 em Juiz de Fora.
De acordo com o professor da Faculdade de Comunicação Social da UFJF Wedencley Alves, em episódios como o que vivemos, tanto jornalismo quanto população em geral passam a naturalizar o número crescente de vítimas. “Um acidente de avião fatal para 200 ou 300 pessoas tem um impacto maior do que nosso dia com três vezes esse número em óbitos. Só ontem (terça-feira, 2), morreram 1.200 pessoas no Brasil. São três Boings caindo. Já imaginou três aviões caindo em solo brasileiro de uma vez só? Seria um acontecimento de extrema dor, noticiado por até um mês de cobertura. Hoje temos, há alguns dias, três aviões caindo por dia. Algo inimaginável. E gera um efeito anestésico, o que só acontece em pandemias e guerras”, argumenta ele, coordenador do grupo Sensus, sobre comunicação e discurso com ênfase em questões de saúde.
“A naturalização é um risco que se coloca para a cobertura jornalística e para a sensibilidade das pessoas”, reconhece Alves. “Iniciativas de humanização são importantes para que não percamos os limites da sensibilidade humana”, afirma o autor do livro “Os sentidos da corporeidade: a inscrição simbólica do corpo em discursos contemporâneos” (Appris, 2018). Uma dessas iniciativas conta com a contribuição de Ticiana Werneck, que assina o perfil de Terezinha Nascimento Lopes. Carioca radicada em São Paulo, a jornalista hoje dedica duas horas de seus dias ao portal Inumeráveis, memorial on-line dedicado às vítimas no novo coronavírus no Brasil criado pelo artista Edson Pavoni.
“Tem mexido muito comigo, porque o luto é um tabu, evitamos falar ou falamos com poucas palavras. O que fazemos é a celebração da vida dessas pessoas, para que sejam lembradas, suas histórias sejam lidas”.
O site, que cresce dia após dia com a ampliação no número de vítimas no país, conta com a contribuição de familiares ou amigos, que preenchem um formulário e os voluntários escrevem, com as informações, um texto-tributo e uma epígrafe. Antes da publicação, um grupo checa alguns dados, garantindo que se tratam de vítimas do coronavírus. “Histórias de vida sempre me moveu muito”, diz Ticiana, voluntária também no Museu da Pessoa. A jornalista ainda oferece sua escrita à famílias que queiram eternizar relatos de seus integrantes. Ela entrevista e narra a trajetória de pessoas comuns.
“A gente só sente quando chega perto de nós. Mas quando lemos essas histórias, nos aproximamos dessas pessoas. Quando pego para escrever, vejo traços tão familiares. Uma pessoa com a mania de dormir de meia, por exemplo. Eu tenho mania de dormir de meia! A outra adorava a casa cheia. Minha tia é assim! Outro só falava alto. Meu melhor amigo é assim! As pessoas são muito parecidas, independentemente da idade ou de onde moram. Pegamos perfis do Brasil inteiro e percebo como somos semelhantes. Quando a gente lê essas histórias de gente tão parecida com a gente ou com alguém de quem a gente gosta, sentimos a gravidade do que vivemos, das perdas que estamos tendo”, emociona-se ela, uma das primeiras voluntárias no hoje grande grupo formado pelo Inumeráveis.
Assim como os números são relevantes para o mapeamento de um cenário de risco coletivo, as palavras também se fazem essenciais para que a vida se sobreponha, alerta o professor e pesquisador Wedencley Alves.
“O grande paradoxo do noticiário é conjugar toda a cobertura, com levantamento de dados e estatísticas, sem deixar que a necessidade dessa cobertura leve a uma anestesia da sensibilidade. Neste momento é que precisamos de iniciativas de sensibilização. É fundamental se preocupar com a massificação das vítimas. Esse é um fenômeno discursivo com que a mídia tem que lidar. E, justamente, porque ela tem que saber lidar que não pode deixar as vítimas e as dores caírem no esquecimento.”
Clique nas fotos abaixo e confira as histórias: