O homem de 45 anos morto com disparos à queima-roupa por um vizinho, sargento do Exército Brasileiro, não tinha passagem por violência doméstica. A informação, confirmada pela Polícia Civil à Tribuna, apresenta uma versão diferente da que constava no Registro de Eventos de Defesa Social (Reds) da Polícia Militar confeccionado na noite do crime. O homicídio ocorreu no dia 17 de março deste ano, no prédio em que vítima e autor moravam, na Avenida dos Andradas, região central de Juiz de Fora.
De acordo com a delegada responsável pelo caso, Camila Miller, da Delegacia Especializada em Homicídio, a PM, que prendeu o homem em flagrante, realizou o protocolo de praxe. “Não cabia uma versão aprofundada dos fatos, os militares apresentaram as informações que tinham no momento.”
A Tribuna perguntou à Polícia Militar se gostaria de se posicionar sobre o assunto, mas o órgão disse que caberia à assessoria do Exército, instituição da qual o suspeito faz parte, se manifestar. Já o Exército brasileiro do estado do Rio de Janeiro, local em que o sargento servia, fez a seguinte declaração por meio de nota: “A Seção de Comunicação Social do Comando Militar do Leste informa que as investigações estão sendo conduzidas pela Polícia Civil do estado de Minas Gerais, não cabendo a este comando comentar atividades de outros órgãos”.
À época do crime, o Reds da PM tinha como descrição da natureza principal da ocorrência “homicídio”. A natureza secundária foi preenchida como “atendimento de denúncia de infrações contra a mulher (violência doméstica)” e “vias de fato/agressão”. A polícia permaneceu das 23h às 6h no local da ocorrência.
Ainda no documento, o militar relata que teria ido apaziguar uma briga na residência ao lado. Segundo ele, teria ouvido uma mulher, 73 anos, pedindo por socorro, pois estaria sendo agredida pelo filho. Até o momento, a única pessoa ouvida pela Polícia Civil durante as diligências do caso, que ainda está em curso, foi a idosa – testemunha ocular e que se opõe à versão dada por ele.
À reportagem, a mãe da vítima se pronunciou pela primeira vez sobre o caso. “No momento, estou desolada e em estado de choque com tamanha brutalidade e com as mentiras contadas pelo investigado na delegacia para tentar se ver livre pelo homicídio que praticou, mas sempre estarei à disposição da justiça para esclarecer os fatos, pois meu filho nunca me agrediu e não existe legítima defesa alguma nesse crime”, desabafa a idosa.
Frente às histórias divergentes, Camila Miller destaca a sensibilidade do caso, tendo em vista que a vítima, que era servidor público aposentado por invalidez, tinha diagnóstico de esquizofrenia e que o suspeito é réu primário – condição esta que corroborou para que ele conseguisse liberdade provisória, no dia 20 de março, três dias após o crime, explica a delegada.
“Não dá para levantarmos uma bandeira de acusação ou defesa agora, a investigação terá que ter seu andamento para haver uma conclusão mais justa”, observa a delegada, que descreve as nuances que trazem complexidade para o caso. “O autor diz que a idosa pediu ajuda para ele, e a mãe da vítima conta que não pediu ajuda, mas que tinha ido para o corredor do prédio porque o filho estava agitado e tinha jogado um copo d’água nela, o que a fez falar que chamaria a polícia para ele. Então tem duas vertentes, agora, se de fato ela estava correndo risco e qual grau do risco, vamos analisar no final da investigação”, conclui.
‘Relação entre os vizinhos já era de animosidade’, diz delegada
Na ocorrência registrada na noite do crime, consta no campo de modo da ação criminosa, que a vítima possuía “comportamento agressivo com sua genitora e com seus vizinhos”. Contudo, os dois boletins em desfavor da vítima – e que são citados no documento – foram feitos pelo próprio sargento e sua esposa.
Para a delegada, esses registros demonstram que já havia uma relação conflituosa entre eles. “A gente pode falar que é uma briga entre vizinhos, a gente está verificando que já existia ali uma animosidade entre eles, já havia tido conflito entre eles anteriormente. Não de agressão, mas animosidade”, analisa.
O Reds mais antigo citado ocorreu em 31 de agosto de 2023. Na data, a esposa do sargento declara que era por volta das 6h40, quando o vizinho teria batido à porta e ela não abriu. Mais tarde, no entanto, ela teria saído com a filha, ainda criança, quando se deparou com homem no portão do prédio.
O vizinho teria solicitado a ela que o casal interrompesse o barulho de trazer de arma de impulso elétrico. Ela declarou que não tinha o equipamento na residência e, momentos depois, ele teria chutado o portão. No boletim, a mulher relata já ter “sofrido intimidação em datas pretéritas e que temia por sua segurança, por isso registrou a ocorrência”.
Um segundo episódio também foi retratado, em 3 de janeiro de 2024. Desta vez, foi o militar que havia acionado a PM, alegando que o vizinho teria danificado a sua porta com um chute e que a situação era frequente. Na época, a polícia tentou contato com o homem em sua residência, mas, segundo consta, “não fomos atendidos”, declararam os policiais responsáveis pelo caso na época.
O advogado da família da vítima, Heber Perotti Honori, se manifestou sobre o assunto, em nota enviada à Tribuna. “As únicas duas ocorrências policiais que existem contra a vítima foram registradas pelo próprio investigado e sua esposa, por divergências banais de vizinhança, o que pode inclusive indicar a premeditação ou o motivo torpe ou fútil do crime”, diz o texto.
O advogado também questiona a versão do suspeito, quanto ao relato que a mãe estaria sofrendo agressão do filho. “A idosa passou por exame médico que não constatou marcas de violência, não se justificando o uso de arma de fogo naquela situação.” O exame ao qual ele se refere foi feito pela mãe de modo independente, ainda aguardando a perícia técnica da Polícia Civil.
Os disparos
No depoimento da mãe à delegada, ela relata ter ouvido, ao todo, sete disparos. Ainda sim, não se sabe quantos tiros teriam sido realmente efetuados, sendo necessário um parecer técnico dos peritos – que identificaram que havia onze munições na pistola .9mm apreendida, que é de uso restrito das Forças de Segurança e tem capacidade para 18 balas. Já o militar teria dito, durante o flagrante, ter feito quatro disparos no total. O primeiro teria sido dado para “repelir a injusta agressão” quando a vítima teria avançado sobre ele. Durante a luta corporal que se seguiu, ele teria relatado ter feito outros três disparos, sendo que, destes, dois acertaram a vítima.
A delegada conta que a investigação vai apurar se houve excesso ou não na ação do autor. O primeiro laudo de necropsia anexado ao inquérito identificou que a vítima levou quatro tiros, no tórax, peito e perna – o quarto teria pego de raspão, deixando uma marca na região do tórax.
Leandro Faria, advogado do militar, informou que está mantida a liberdade provisória do militar, que havia tido a revogação tentada pela família. Diante do caso, ele emitiu uma nota, em que relatou estar aguardando a abertura do inquérito policial para apuração dos fatos.
Evento ‘Justiça por Daniel’
Em 19 de maio, domingo, o evento Skate Rock Fest vai realizar uma mobilização com bandas, DJs, exposição de artes visuais e campeonato de skate, no Beco da Cultura, às 14h, com a manifestação ‘Justiça por Daniel!’. O evento, sem fins comerciais ou lucrativos, ocorre para homenagear a memória da vítima que era artista plástico, skatista e eventualmente tocava como DJ.
Segundo Guilherme Melich, amigo da vítima e idealizador do evento, no velório os entes queridos se juntaram e pensaram na possibilidade de fazer uma homenagem a ele, com coisas que ele gostava. Ele conta que, por isso, vão participar da ação “vários artistas da cidade, preferencialmente, os que tiveram algum contato com Daniel e que o conheciam.”