A pandemia do coronavírus impactou de forma intensa as principais áreas da vida de toda a população. Afetou os relacionamentos com o distanciamento físico, trouxe perda de emprego e da renda e ainda causou preocupação sobre contágio. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Adhanom Ghebreyesus, alerta para a necessidade de investimento em serviços de saúde mental, desde o início do enfrentamento ao vírus.
Segundo o professor do Departamento de Psicologia da UFJF, Telmo Ronzani, um dos coordenadores e idealizadores do projeto ‘Calma Nessa Hora’, que oferece o acolhimento básico para pessoas que estejam passando por situações difíceis, desde o início do serviço, mais de duas mil pessoas de todo o país fizeram contato com o serviço. “Nos surpreendemos com o retorno positivo. Vimos casos de pessoas com muito desespero, não só pela Covid-19, mas também pelas outras consequências da pandemia, como desempregos, relações familiares e até mesmo casos de ideações suicidas, que precisaram de intervenção e encaminhamento para serviços de saúde”, relata.
O professor ainda ressalta que há grandes barreiras de acesso aos tratamentos, com a indisponibilidade dos serviços em algumas cidades e regiões, além da suspensão de atendimentos presenciais em alguns casos.
Telmo pontua que o resultado indica ainda uma cobertura baixa de atenção à saúde mental no país e uma demanda alta, em contrapartida. “Precisamos de mais oferta, principalmente do setor público. As pessoas que nos procuram não têm condições de pagar. Vemos a importância de expandir o cuidado. Com maior divulgação, melhores condições de trabalho e melhor estruturação dos serviços.” Ainda mais levando em consideração que a saúde mental prescinde de um cuidado contínuo, que não é solucionado em apenas uma consulta. Além disso, persiste o preconceito que se tem sobre a busca por atendimento em saúde mental.
No Centro de Valorização da Vida (CVV) serviço nacional que oferece apoio emocional e prevenção ao suicídio, por meio de ligações gratuitas para o número 188, não houve aumento no número de atendimentos. No entanto, o assunto pandemia aparece nas conversas. O que é considerado natural quando algo dessa natureza ocorre, porque as pessoas que buscam o CVV dividem suas angústias, medos e ansiedades, independente de suas fontes de origem.
De acordo com a voluntária e atual presidente do posto do CVV em Juiz de Fora, Letícia Coelho, a unidade aguarda os treinamentos para que possa começar a receber as ligações, algo que deve acontecer nos próximos meses. Ela conta que mesmo sem que o serviço tenha começado, os contatos com as pessoas enfatiza a presença de emoções e sentimentos mais aflorados e instáveis.
Há pouco mais de um mês, ela conta que recebeu um pedido de ajuda de uma pessoa que identificou ideações suicidas em uma pessoa idosa. “Vemos que todos os tipos de pessoas, de crianças a idosos são afetados e precisamos estar atentos às necessidades de quem está por perto.”
Letícia salienta que é preciso ter em mente que todos, inclusive os voluntários, estão lidando com todas as complexidades do momento. Ela acredita que a empatia seja a palavra-chave para lidar com os desafios impostos pela presença do vírus. De modo que agora, mais do que em qualquer outro momento, as pessoas devem oferecer a escuta ativa, estar mais atentas.
“Observar as redes sociais, quais são os conteúdos que a pessoa compartilha. O que os textos e imagens dizem? Se há a temática de morte ou de desistência, de perda de valor. Se a pessoa se afasta, não quer conversar, é outro sinal que deve despertar o alerta. Quem perceber essas situações, além de deixar a pessoa desabafar, deixando que a outra fale e, junto com ela, pensar no que fazer para mudar aquela situação, também pode ligar para o CVV e pedir orientação.”
É importante, conforme Letícia, mostrar que, ao contrário do que a pessoa com algum sofrimento mental pensa, ela não está sozinha. Então, se for necessário, se oferecer para ir junto a uma unidade de saúde ou um hospital.
Dia de conscientização
O dia 10 de setembro é guardado como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Em Juiz de Fora, foi aprovada a lei de autoria do vereador José Mansueto Fiorilo (PL), que reserva a data na Câmara para atividades voltadas para a educação e prevenção, com o intuito de cercar e reduzir a incidência de tentativas e de auto extermínios consumados. Como nesse momento a recomendação é de distanciamento social, ainda não serão executadas ações presenciais.
De acordo com o levantamento feito pela assessoria de Fiorilo junto à Secretaria de Estado de Defesa Social, com base em registros da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e do Samu, de janeiro até 2 de setembro, foram notificadas 99 tentativas de suicídio e 25 auto extermínios consumados. No ano passado, de janeiro a dezembro, foram 180 tentativas e 40 mortes.
A preocupação maior, de acordo com o vereador, são os jovens de 19 a 30 anos, que somam 43 casos, e as pessoas de 31 a 45 anos, com 33 ocorrências. Ele destaca que é preciso garantir que eles possam chegar ao tratamento. Ele ainda salienta que o maior número de registros ocorreu na Zona Sul da cidade, seguido das Zonas Nordeste e Leste.
Sabendo que a depressão é um dos fatores que pode estar relacionado ao suicídio, Fiorilo também aguarda a tramitação de um projeto de lei que aponta ações para a prevenção e tratamento da doença. “O projeto chama a atenção de toda a sociedade para a depressão, que é uma doença grave e de difícil tratamento. De modo que as pessoas mais próximas, um vizinho, um amigo, ou irmão, possam ajudar e saber como tomar providências, procurar um médico e oferecer apoio.”
‘O mundo inteiro tinha que fazer terapia’
A consciência de que precisava cuidar da saúde mental só foi despertada pela jornalista e empreendedora Larissa Garcia quando ela procurou a terapia pela primeira vez. “Fui pedir um socorro. Estava super angustiada. Minha avó foi diagnosticada com esclerose lateral amiotrófica. A sensação de impotência foi me despertando outras sensações ruins.” Larissa morava em Juiz de Fora, longe de sua cidade natal, Campo Belo (MG).
Na época, ela também estava escrevendo o trabalho de conclusão de curso e terminou um namoro. “Quando cheguei na terapia, descobri que era ansiedade o que tinha. Ansiedade é um problema que precisa de tratamento, como qualquer outro. Ela tem picos, dias muito difíceis, dias tranquilos e dias muito bons.” Passar pela terapia foi um processo maravilhoso, segundo a jornalista. Mas depois de alguns meses, ela considerou que estava melhor e parou por conta própria o tratamento.
“Esse foi meu erro, longe do psicólogo, fiquei pior e vieram outros problemas. Procurei de novo em março desse ano, desde então, leio muito sobre saúde mental para buscar o que é melhor para mim. A minha terapeuta é muito didática, me explica tudo o que está acontecendo comigo e eu ganho consciência”. Ela acredita que os atendimentos, agora feitos pela internet, foram relevantes para enfrentar a pandemia com mais serenidade. “Se não fosse a terapia, estaria muito mal. Fiquei muito tempo sem ter contato com a minha família, estou desde janeiro sem ver meus amigos e tenho essa necessidade do abraço, do contato. Fora isso, estou trabalhando o triplo, mesmo dentro de casa.”
O tratamento deu à Larissa a sensação de segurança, que leva ao autoconhecimento. Ela narra que agora conhece ferramentas que a ajudam a identificar como se sente e a como lidar com as situações. “Acho que o mundo inteiro tinha que fazer terapia, porque todo mundo passa por algumas coisas na vida e no tratamento você melhora, aprende a resolver essas coisas.”
Em suas redes, ela compartilha o que aprende na terapia com as pessoas, porque entende que ainda é preciso derrubar tabus e que quanto mais informação as pessoas tiverem, maior é a chance de buscar por ajuda. “Queria que mais pessoas tivessem consciência da importância desse cuidado. Sei que vai fazer diferença, digo que é um investimento.”
Reorganização da atenção em saúde mental
A gerente do Departamento de Saúde Mental da Secretaria de Saúde da Prefeitura, Maryene de Paula, explica que o sistema exigiu uma adequação rápida às orientações de combate ao coronavírus. Ela afirma que, apesar de não ter os números de atendimentos do período, foi percebido um aumento de casos que não são tão graves, principalmente das pessoas que sentem maior necessidade de contato. Ela considera que, para o efeito terapêutico ser efetivo, essa distância física foi um primeiro complicador importante. A medida, de certa forma, limitou a atuação e o cuidado.
“Isso acontece porque a saúde mental trabalha atualmente pela via da abordagem psicossocial. Não mais aquele modelo clássico ambulatorial. Vemos a pessoa como um todo. Temos o trabalho de atendimento individual, mas temos outros recursos como oficinas e grupos terapêuticos, que foram inviabilizados pela pandemia”, explica a gerente. Isso afetou não só as iniciativas feitas em grupo, mas também as visitas domiciliares e hospitalares.
Foi necessário, então, desenvolver um outro modelo de cuidado, com o reforço da articulação com a atenção primária. “Era necessário reduzir esse trânsito do paciente pela cidade, então, buscamos esse contato, porque as unidades básicas estão mais próximas dos territórios.” Outra iniciativa foi intensificar o contato via telefone, assim como o monitoramento. Nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os usuários têm um profissional de referência, e eles mantiveram contato telefônico constante. Ainda segundo Maryene, os Caps continuam funcionando.
O foco do atendimento ambulatorial, porém, está voltado para casos mais delicados. Os outros têm a orientação do contato por telefone e, se alguma crise ocorrer, o atendimento é feito presencialmente, porque, segundo a gerente, não tem como mantê-los à distância. Quando é preciso receber o usuário, toda a etiqueta de cuidados para a prevenção do coronavírus é utilizada. Além desses, outros cuidados também foram incorporados; medicações injetáveis, por exemplo, são aplicadas na casa dos pacientes.
O modelo de atendimento psicossocial, segundo Maryene, diz que o sujeito em crise, expressa por meio de um sintoma, que algo não está indo bem. Ao contrário do modelo manicomial, não se resume à internação e medicação, mas à reconstrução do caminho da vida. Com a pandemia, segundo ela, o sistema entrou em crise. Partindo do mesmo princípio, segundo ela, é possível afirmar que a maior lição para o trabalho, é o sintoma que indica a necessidade de reinvenção da vida.
Apesar de ter base em conhecimentos multidisciplinares, em áreas como Psiquiatria, Psicologia, Serviço Social, Enfermagem, entre outros, a gerente reforça que a atenção não conta com técnicas prontas. “Cada pessoa é um sujeito, e o cuidado precisa ser feito para ela, de maneira singular. Com a base de formação e a criatividade, que respeita a singularidade de cada um, norteamos o nosso tratamento.”
Embora o sofrimento não seja muito bem acolhido, tendo em vista que as pessoas são cada vez mais incentivadas pelas redes sociais a mostrarem sempre uma vida perfeita, para ela é preciso assumir que precisamos de cuidados. Ela ensina que um sofrimento vira adoecimento quando impede que se faça atividades cotidianas, como estudar, trabalhar, se relacionar, e a angústia é uma barreira para que ela siga a vida normalmente.
Quando percebe algo nesse sentido, deve procurar um profissional da unidade básica mais próxima. Nos bairros em que não tiver essa unidade, o usuário pode buscar orientações ligando para algum Caps ou para o próprio Departamento de Saúde Mental, por meio do telefone: (32)3690-7797. Mas ela ainda reforça que é preciso falar sobre o que causa o sofrimento, pedir ajuda a quem for mais próximo.