Ao menos 22 mulheres e meninas foram vítimas do crime de estupro em Juiz de Fora, em 2022, de acordo com dados da Secretaria do Estado de Segurança Pública (Sesp). Desse total, a metade dos registros foi de estupros consumados contra vulneráveis. A realidade local reflete um cenário de violação dos direitos das mulheres que vem sendo ainda mais debatido, na última semana, com a repercussão do caso da atriz Klara Castanho e da menina de 11 anos que estava sendo impedida pela justiça de realizar um aborto legal. Nesse contexto, especialistas discutem a dificuldade de combater violências e preconceitos sofridos por mulheres nessas situações.
A advogada especialista em direito das mulheres e advocacia feminista, Camila Rufato Duarte, elucida que a realidade desse número no município reflete um dado que também já foi divulgado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que revelou que cerca de 53,8% das vítimas de estupro no Brasil são meninas de até 13 anos. “Nesses casos, o estupro é presumido. Não importa se ela namorava com o agressor, se ela já tinha experiência sexual anterior e etc. Uma criança com menos de 14 anos não tem juridicamente condições de consentir”, diz.
A advogada Simone Porcaro, atuante em direito de família, explica que os crimes de estupro têm diferentes tipificações, e que no caso do estupro de vulnerável consumado o crime é cometido contra menor de 14 anos. Há, também, os casos em que o indivíduo tem qualquer tipo de deficiência que inviabiliza o consentimento, está passando por uma enfermidade ou está sob o efeito de substâncias alcoólicas ou ilícitas e, por isso, não tem condições de poder recusar o ato. Além disso, Camila Rufato Duarte esclarece que o crime de estupro ocorre não só quando há conjunção carnal (através da penetração vaginal ou anal), mas também nos casos em que há um constrangimento para a prática de um ato libidinoso (qualquer ato de cunho sexual).
Para ela, esse dado chama a atenção porque, nesses casos, “o crime é praticado, na grande maioria das vezes, por pessoas que têm convívio doméstico com essa criança”. Simone acrescenta que, nesse contexto, ainda há um envolvimento emocional em que a criança pode ser “convencida de que aquilo é algo comum, ou até haver ameaça contra a família para inibir a denúncia”.
Como aponta Danielle Alves Ribeiro, que responde pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher ( Deam) de Juiz de Fora, esses crimes sexuais são marcados pelo chamado “escândalo do processo”, fazendo com que a vítima tenha muito medo de denunciar. “Acaba afetando a integridade física, emocional e psicológica da vítima. Ela não conta nem para seus familiares”, explica. Como também é um crime que não costuma ter testemunhas, a delegada afirma que há o medo, por parte da pessoa que sofre a violência, de ser desacreditada. No crime de estupro de vulneráveis ainda há outras dificuldades, já que as vítimas, quando crianças, nem sempre sabem explicar exatamente o que aconteceu. Conforme a policial, por essa razão, o encaminhamento para uma delegacia especializada é tão importante, já que lá existe “todo o suporte e estrutura para que a vítima se sinta segura e acolhida”
Subnotificação e constrangimento das vítimas
Apesar de as especialistas concordarem que, nos últimos anos, está havendo mais apoio para que as vítimas denunciem os casos, a subnotificação ainda é um grande problema. “Existe uma cultura de que a culpa é da própria vítima, de que ela deve se sentir envergonhada ou culpada”, explica a advogada Simone. Camila, do Comitê de Combate à violência contra a mulher do Grupo Mulheres do Brasil JF, também acrescenta que o julgamento social, a falta de punição adequada para os agressores e a descrença quanto ao relato também são fatores bem importantes e que costumam inibir essas denúncias.
Por isso, as participantes do coletivo Maria Maria, Luanda Santos e Glaucy Herdy, também afirmam que, apesar do dado ser alarmante, pode ser pior ainda, pois muitas mulheres de fato não denunciam ou nem sabem da possibilidade de denunciar, porque ainda não entenderam bem a violência pela qual estão passando. Outro fator que costuma deixar as vítimas mais inibidas é a revitimização que ocorre nas delegacias. “Além de submeter a vítima ao exame de corpo de delito, a mulher é obrigada, muitas vezes, a recontar o pesadelo da violência vivida várias vezes em uma delegacia”, diz.
Para Simone, essa subnotificação pode inclusive ter aumentado nos últimos anos considerando o cenário de pandemia, principalmente nos casos de pessoas vulneráveis. “Isso pode ter acontecido inclusive pela falta de informação que deixou de ser levada de forma mais próxima pelas escolas. Além disso, quando as pessoas têm atividades fora de casa, têm menos contato com os agressores”, diz. Os dados do levantamento da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos revelam que pelo menos 75,9% dos casos de abuso contra crianças e adolescentes ocorrem dentro das suas casas, sendo 40% das agressões realizadas pelos próprios pais ou padrastos – o que cria, nesse sentido, uma dificuldade ainda maior em denunciar.
Educação sexual ajuda a combater o estupro
A advogada Simone esclarece que é devido a esse cenário que a educação sexual é tão fundamental e que ela deve ser feita pela escola e também pelos responsáveis. “É muito importante que exista conversa sobre isso, que os meios de comunicação levem essas informações e deixem os pais atentos ao que os menores possam estar passando”, explica.
O coletivo Maria Maria também reforça que, apesar de haver muita moralização em torno do debate sobre os direitos reprodutivos e da educação sexual, essas pautas fazem parte da luta por direitos das mulheres. No entanto, elas avaliam que o assunto ainda não avança de maneira séria no Brasil “devido ao tratamento moral e conservador com que são discutidas”.
Processo de doação legal
Com as discussões causadas pelo caso da atriz Klara Castanho, que optou por fazer a doação do recém-nascido que pariu após sofrer violência sexual, o assunto da doação legal também ficou em alta. De acordo com a promotora de Justiça de Direito da Educação, da Criança e do Adolescente, Samyra Namen, o processo de doação em Minas Gerais começa a partir do programa do Tribunal de Justiça chamado “Entrega Legal”. Nele, a gestante se dirige à vara da infância para entregar a criança e é ouvida em uma audiência para confirmar que é isso mesmo que ela quer. Após esse processo, ainda há 10 dias em que a mãe pode fazer o pedido de arrependimento, ou seja, voltar atrás no processo de adoção. Caso isso não ocorra, a justiça passa a ser responsável pela criança.
“É bem melhor que essa criança seja criada por uma mãe adotiva que vai dar todo o carinho, do que por uma mãe que não quer ou não tem condição de dar esses cuidados”, ela diz. Pela vivência prática na área, Samyra explica que cada gestante tem um motivo para tomar essa decisão e, nem sempre, é por conta de um estupro. “Essa entrega pode até não parecer, mas é um ato de amor”, diz.
Ela informa, ainda, que a entrega é um processo legítimo no qual a gestante comparece na frente do juiz e abre mão dos direitos e deveres de mãe, algo bem diferente do que ocorre no abandono de incapaz. Nesse segundo caso, a responsável deixaria a criança exposta a um perigo concreto sem o menor envolvimento legal. No caso da atriz, com base nas informações divulgadas, a promotora afirma que “o processo legal foi perfeito’.
As gestantes que desejam fazer a doação podem se dirigir diretamente à vara, ou até comunicar o desejo na maternidade e acionar o hospital para fazer este contato. “A gestante antes de parir já pode acionar a justiça, e a vara já se programa para entregar a criança para um casal adotante”, diz. Quando uma família quer adotar, por sua vez, a vara da infância faz uma habilitação da adoção, pedindo alguns documentos do indivíduo e analisando se há condições de ser adotante. “Eles entram em uma lista de acordo com os perfis”, ressalta Samyra.
Procedimentos e atendimentos em Juiz de Fora
Em Juiz de Fora, a Secretaria de Saúde, com o setor de Saúde da Mulher, afirma que no caso de abusos sexuais no município, as mulheres devem se dirigir ao HPS para o atendimento de Risco Biológico. Lá, vai contar com a estrutura de uma equipe multidisciplinar “a fim de possibilitar o melhor acolhimento dessa usuária”. Nos casos de estupro consumado, é recomendada a utilização de medicação profilática contra HIV e hepatite B, o uso da pílula do dia seguinte e ainda é realizado um atendimento social e psicológico.
A secretaria também afirma que o Departamento de Saúde da Mulher, Gestante, Criança e Adolescente (DSMGCA) atende quando há necessidade de consulta ginecológica. “Muitas vezes o relato não ocorre de imediato, podendo acontecer dias, semanas ou meses depois da violência. O relato pode ocorrer em qualquer Unidade de Saúde”, esclarece a pasta.
No momento de fazer a denúncia, o coletivo Maria Maria orienta que as mulheres compareçam na Casa da Mulher ou em outra delegacia especializada, pois nesses locais “há profissionais capacitados para lidar com essas circunstâncias de acordo com a lei”. Elas defendem, ainda, que os espaços assim também contem com um preparo mais estruturado para que as mulheres não passem por novas violências durante a denúncia.
A advogada Camila explica, por fim, que há três hipóteses de aborto legal no país em que a gestante pode fazer o pedido: a gravidez resultante de violência sexual, a gravidez que coloca em risco a vida da gestante e a gravidez de feto anencéfalo. “O entendimento, hoje, é que não há nenhuma obrigatoriedade de boletim de ocorrência ou de decisão judicial”, informa. A decisão deve ser comunicada pela mulher, e o procedimento deve ser realizado gratuitamente pelo SUS, pois se entende que a exigência “apresenta um constrangimento que a vítima não precisa tolerar”.
Coletivo repercute efeito do caso Klara Castanho
Para o Coletivo Maria Maria, o episódio envolvendo a atriz Klara Castanho chama atenção por todo o processo de violência que foi narrado. “O caso é um absurdo em várias questões, começando pelo tratamento desumano que ela recebeu dos agentes de saúde”, explica a especialista em gênero e sexualidade Glaucy Herdy. Para as representantes do coletivo, também choca a “publicização e espetacularização de uma ocorrência que diz respeito apenas à vida privada dessa mulher, independentemente do fato de ela ser ou não uma pessoa pública”.
De acordo com Luanda Santos, que é professora e doutora em saúde, isso é um exemplo de como o direito de escolha, para mulheres, nunca é dado sem uma série de julgamentos – e como o processo da maternidade parece ser compulsório, seja qual for o caso. “Klara estava totalmente amparada no seu direito legal de entrega voluntária. Mesmo assim, ela foi julgada e condenada, exposta em praça pública, sem direito de defesa”. Elas afirmam, ainda, “que um país no qual uma mulher precisa vir à público reivindicar o respeito a um direito assegurado por lei, só pode ser um país que odeia mulheres e meninas”.
O caso, na visão do coletivo, acaba revelando bastante como a questão ainda é percebida e debatida no país. A reivindicação do movimento feminista que é trazida por elas é de que “o aparato legal do Estado e o tratamento do sistema de saúde evoluam visando a uma formulação menos moralista e mais igualitária”.