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Detento da Ariosvaldo, Charles Henrique da Silva conquista vaga na UFJF

Charles Henrique da Silva Divulgacao
2Charles Henrique da Silva Divulgacao
‘Meu plano é entrar na sala de aula quando sair daqui e continuar na faculdade, para depois fazer direito. Vivemos tempos difíceis, mas a educação abre caminho para muita coisa’, diz Charles Henrique da Silva (Foto: Divulgação)
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“Se o Governo investisse mais na educação, as pessoas teriam mais empatia umas com as outras, porque o preconceito é muito ligado à ignorância. Vivemos em uma sociedade que é muita preconceituosa, principalmente com presidiários e negros.” Esse foi o tom da redação escrita pelo detento juiz-forano Charles Henrique da Silva, no último Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para Pessoas Privadas de Liberdade, que teve como tema: “A falta de empatia nas relações sociais no Brasil”. Aos 33 anos e após muita dedicação aos estudos, mesmo atrás das grades, ele conseguiu nota 880 – a segunda maior pontuação de texto no Enem Prisional em Minas Gerais – e já está com a pré-matrícula feita no curso de Administração da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Charles atribui a conquista de uma vaga em instituição de ensino superior pública a seu esforço e também à rede de apoio encontrado por ele na Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires, no Bairro Linhares, Zona Leste, onde cumpre pena há quatro anos, após passar dois no Ceresp. “Trabalho durante o dia aqui na fabricação de sacolas plásticas – parceria com a Hiperroll Embalagens -, mas conseguia ler no horário do almoço e estudar à noite. Quando eu tinha alguma dúvida, pedia ajuda à pedagoga Leilane Rizzo. Sempre gostei de estudar, mas aqui encontrei mais oportunidade”, contou o detento, em entrevista à Tribuna.

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Ele cursou e concluiu o ensino médio já dentro da unidade prisional e depois passou a se dedicar aos livros, apostilas e simulados para conseguir uma boa nota no Enem, realizado em fevereiro, que possibilitasse sua entrada na universidade por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). No exame anterior, Charles já havia conseguido pontuação para a área de ciências exatas, mas preferiu tentar novamente para melhorar o resultado e entrar em um curso de sua preferência.

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Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), o Enem para Pessoas Privadas de Liberdade existe desde 2010. Em Juiz de Fora, apenas Charles conseguiu vaga em universidade pública desta vez, pelo Sisu. No ano passado, o feito foi realizado por dois presos da cidade e, em 2019, por um. De acordo com a pasta, não há levantamento em relação aos períodos anteriores.

Os acautelados que fizeram a prova do último Enem ainda podem utilizar a nota para conseguir uma bolsa de estudos em faculdade particular, via Programa Universidade para Todos (Prouni). Só na Ariosvaldo, 80 presos realizaram o Enem Prisional, que tem o mesmo grau de exigência e dificuldade daquele aplicado fora das penitenciárias. As provas deste ano foram feitas por 4.210 detentos de 156 unidades prisionais de todas as regiões do estado.

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Ainda conforme a Sejusp, dos 288 jovens e adultos do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) inscritos no último Sisu, 15 conseguiram acesso a alguma universidade pública, como as federais de Minas Gerais (UFMG) e de Uberlândia (UFU) e a Estadual de Montes Claros (Unimontes). Além da administração, estão entre os cursos escolhidos: ciências sociais, hotelaria, agroecologia, matemática, letras, ciências biológicas, engenharia agrícola e ambiental, física e ciências da religião. A lista dos selecionados inclui presos de duas cidades próximas a Juiz de Fora: Barbacena (Campo das Vertentes) e Muriaé (Zona da Mata).

Sala e computador na penitenciária

O detento juiz-forano Charles conta que, apesar de seu gosto pela leitura, tinha dificuldade na hora de elaborar um texto. “Eu tenho mais facilidade com exatas. Como estava tendo nota baixa em linguagem, me dediquei mais e treinei bastante a escrever. É muito concorrido, e sabia que se me dedicasse teria uma pontuação melhor. Mas a nota da redação foi uma surpresa.” Mesmo ainda cumprindo pena em regime fechado, ele vai conseguir iniciar o curso de graduação, porque as primeiras disciplinas serão na modalidade de ensino remoto, devido à pandemia. Uma sala e um computador já foram providenciados na penitenciária.

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“A unidade me proporcionou estudar à distância. Sempre quis fazer universidade e ter curso superior. Escolhi administração pela nota que eu tive, mas um dia ainda quero cursar a Faculdade de Direito”, revela Charles que, a cada dia, aprende mais sobre as leis com sua própria experiência. “Quero entender um pouco mais e poder ajudar as pessoas. Meu plano é entrar na sala de aula quando sair daqui e continuar na faculdade, para depois fazer direito. Vivemos tempos difíceis, mas a educação abre caminho para muita coisa.”

Com esse pensamento, ele tenta ser multiplicador em seu meio. “Gosto de incentivar os outros presos, porque muitos aqui são capazes, mas ficam desanimados. Parece difícil, mas transformando o tempo ocioso em produtivo, estudando e trabalhando, ganhamos remissão (de pena) e ainda conseguimos outras oportunidades.”

‘Enxergamos a pessoa e não o crime que cometeu’

A diretora de Atendimento da Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires, Lidiane Aquino, acompanhou bem de perto o processo que levou o detento Charles Henrique da Silva à UFJF. “Eu gosto de frisar que essa conquista dele representa muito, porque é um exemplo de superação, dedicação e resiliência. Mesmo diante das dificuldades, ele correu atrás do que queria, e isso tem muito significado para todos nós.” Ela destaca o esforço e acompanhamento da pedagoga da unidade, Leilane Rizzo, nessa trajetória de sucesso. “Ela é muita engajada, faz um trabalho muito bom e ajudou muito o Charles na preparação para a redação. Temos que valorizar os profissionais da educação.”

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Como gestora e representante do sistema prisional, Lidiane observa que há muito estigma em torno do sistema carcerário e até mesmo do trabalho desenvolvido nas unidades de custódia e ressocialização dos indivíduos em cumprimento de pena privativa de liberdade, que inclui assistência à saúde e psicossocial, familiar, religiosa, jurídica, além da oferta de trabalho e ensino profissionalizante. “Dentre esses pilares destaco a educação como um mecanismo eficiente, por ser algo que abre muitas possibilidades. Esperamos muito que o Charles consiga vivenciar isso e ser reintegrado à sociedade em melhores condições.”

A diretora acrescenta que há muito desconhecimento sobre a vida entre muros, por isso a divulgação em relação ao exemplo de Charles é ainda mais importante. “Ele é muito esforçado, trabalha o dia todo e estuda à noite. Procura por livros, é muito interessado, tem essa sede de sair do ócio e de participar. Tem um comportamento exemplar, até de trato e conversa com as pessoas. É um acautelado muito tranquilo e sereno.” Lidiane pondera que o papel dos trabalhadores do sistema prisional não é julgar. “Temos nossa missão institucional e precisamos nos despir de preconceitos. Enxergamos a pessoa e não o crime que ela cometeu. É o ser humano que precisa ser evidenciado.”

Tem um significado ainda maior: além de ser presidiário, é negro e de periferia

Lidiane ressalta que os desafios enfrentados por Charles têm um significado ainda maior já que, além de ser presidiário, ele é negro e de periferia. Antes de morar nas celas, vivia com a família no próprio Linhares. “Ele tem essa carga de estigma de uma sociedade preconceituosa, mas quebra o paradigma. Esse movimento que ele está fazendo é um exemplo, sem dúvida. Esperamos que tenha muito sucesso na vida ao terminar de cumprir a pena.”

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Quando voltar à liberdade, Charles vai poder frequentar a universidade federal e também aproveitar o melhor da vida ao lado de seu filho, de 9 anos. “Todo dia temos que procurar sermos melhores. As pessoas erram de várias formas, às vezes por escolha própria ou por influência. Mas quando temos bons exemplos, temos que melhorar, seja por meio de religião, educação ou diversas outras escolhas.”

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