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Poder Público intensifica abordagens à população de rua

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Atualizada às 17h17

Carrinhos e cobertores servem de abrigo na Rua Professor Oswaldo Veloso, no Centro (Foto: Fernando Priamo)

Quem segue apressado pelo Calçadão da Rua Halfeld e passa pelo cruzamento com a Rua Batista de Oliveira pode não perceber que, entre panos e caixas dispostos próximo ao Cine Palace, vive um homem e dois cães que o acompanham. Invisível para uns, a presença dele causa incômodo a outros que chegam a desviar o olhar. A cena não é única no Centro. Perto dali, na Praça da Estação, outro grupo encontra abrigo próximo às escadarias da antiga estação ferroviária. Outros pontos de Juiz de Fora percorridos pela Tribuna também tornaram-se abrigos de pessoas, como as ruas Professor Oswaldo Veloso e Mister Morre, também no Centro, as proximidades da Caixa Econômica Federal, em São Mateus, e a Praça da República, no Poço Rico. Eles compõem um grupo mapeado pelo primeiro diagnóstico sobre as pessoas em situação de rua divulgado no fim do ano passado, quando havia 879 cidadãos nessa condição. Diante da percepção de aumento desta população nas ruas identificado pela Prefeitura mesmo sem dados atualizados, principalmente no Centro, e também motivados pela manifestação de juiz-foranos nas redes sociais, ações de abordagem do Poder Público serão intensificadas a partir desta semana.

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O relato das pessoas que estão próximas a alguém em situação de rua contempla a complexidade da situação. “É algo que tem trazido transtorno para quem é comerciante e trabalha na praça, mas também para os pedestres em geral. Algumas pessoas em situação de rua que ficam alcoolizadas causam brigas, e o fato de elas estarem deteriorando o patrimônio precisa ser levado em conta. Eles fazem cabanas, levam colchões. Chegaram a quebrar janelas. A Prefeitura precisa tomar atitude porque não sabemos o que fazer ou a quem recorrer. Ao mesmo tempo, temos que olhar a situação deles também. Eles estão em situação de vulnerabilidade e não podem continuar assim”, comenta Ronan Cezário, que trabalha na Praça da Estação desde 1999. Ele ainda relatou que a equipe de abordagem já esteve no local algumas vezes, mas que o trabalho não seria suficiente para convencê-los a buscar outras alternativas.

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Quem vive nas ruas também tem seus lamentos, muitas vezes, até mais graves. Em uma espécie de cabana, coberta com lona preta, sustentada por pedaços de madeira, Rodiney de Souza vive com a companheira, em uma espécie de corredor, ao lado da agência da Caixa localizada na esquina entre a Avenida Presidente Itamar Franco e a Rua Padre Café, no São Mateus. Rodiney passa os dias e as noites nas ruas desde os 10 anos, quando deixou a casa dos pais e foi viver com amigos. Hoje, com 40 anos, relata ter vivido em outros pontos, como a Rua Santo Antônio, Centro, Rua Severino Meireles, Alto dos Passos, entre outros. “O mais difícil de estar nessa situação é a quantidade de humilhações pelas quais passamos. Nos chamam de vagabundos, mas ninguém tem coragem de nos dar uma oportunidade de trabalho. Somos confundidos com bandidos, com usuários de drogas, e a polícia já me bateu para me tirar de alguns lugares.”

Na Praça da Estação, homem tenta se proteger do frio com caixas de papelão (Foto: Marcelo Ribeiro)

Ele relata já ter utilizado serviços prestados pelo Município. Por meio dessas iniciativas, por exemplo, teve acesso a documentos. Mas ele e a companheira perderam os papéis com o tempo. “Nos prometeram acesso ao auxílio aluguel, mas não deu em nada. Já estive no albergue (Núcleo Cidadão de Rua). Lá dentro é bom, mas da porta para fora, o entorno é horrível. Tem muita briga, muita droga, muita bebida, por isso, eu prefiro mesmo ficar afastado. Queria ter a minha própria casa, o meu canto.” Rodiney explicou que tem um desentendimento com os irmãos e que a mãe morreu há mais de seis meses. “Não tenho como ficar com eles”, afirma. Alguns comerciantes do entorno dizem que o casal não costuma causar problemas. “Acreditamos que as pessoas que moram perto da agência bancária fiquem mais incomodadas. Mas eles não costumam nos abordar, não nos pedem nada, ficam na deles.”

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Esse estigma sofrido pelas pessoas em situação de rua está ligado a uma série de mitos, conforme o sociólogo Igor Rodrigues. “Quem mais incomoda é quem vive e dorme na rua. Eles pertencem ao menor grupo. Falamos de uma extrema pobreza urbana. Muitos os chamam de vagabundos, mas eles trabalham exaustivamente, entre 12 e 14 horas diárias. Não estamos falando de bandidos. Também não estamos falando de usuários de drogas, embora alguns façam uso. Temos que entender que o caos social não é culpa deles”, considera.

Ele conta que a dinâmica dessas pessoas pela cidade foi alterada, e elas passaram a se fixar em nichos frequentados e habitados pelas classes mais altas, onde há maior circulação de recursos, que podem ser captados por eles. “Isso gera um atrito social”, avalia. Por isso, segundo ele, é preciso quebrar todos esses mitos e começar a enxergar essa parcela da população com suas características e necessidades. Essa situação revela as dores do crescimento. Ao passo que experimentamos um crescimento urbano considerável, houve falhas no desenvolvimento social. Crescemos e crescemos mal. De forma que uma parte da sociedade foi muito bem atendida, mas a outra foi exposta a uma série de dificuldades em longo prazo.”

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Vários setores
Na última semana, o prefeito Bruno Siqueira (PMDB) solicitou que as secretarias e os setores da administração que perpassam institucionalmente pelo tratamento de algum aspecto relacionado à população em situação de rua se reunissem. A intenção é intensificar as ações de abordagem, diante da percepção do Poder Público de aumento do grupo, principalmente na área central, além da cobrança vinda da sociedade. Ficou decidido que as Secretarias de Desenvolvimento Social (SDS), Saúde (SS), Segurança Pública e Cidadania (Sesuc), Atividades Urbanas (SAU), Comunicação Social (Secom) e o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (Demlurb) devem aumentar a presença nas ruas. A ação conjunta, já feita em frequência semanal, passará a ser realizada quatro vezes ao dia, com o intuito de coibir um aumento ainda maior da população.

‘Trabalhamos para não chegarmos a ter uma cracolândia’

De acordo com o titular da Secretaria de Desenvolvimento Social, Abraão Ribeiro, pontos como a Praça dos Três Poderes, no Largo do Riachuelo, a esquina da Avenida Itamar Franco com a Avenida Rio Branco, e da Rio Branco com a Rua Sampaio, a Rua Mister Moore, também próximo à Rio Branco, e o local em que Rodiney dorme com a esposa, na esquina da Rua Padre Café com a Avenida Itamar Franco estão entre os focos da ação. “É fundamental que a sociedade saiba que nós não podemos remover essas pessoas. É um direito constitucional que elas permaneçam nas ruas. No entanto, acúmulo de lixo e desordem pública não são direitos. Cada secretaria vai trabalhar com o que está dentro da sua competência. A Saúde, por exemplo, leva o consultório na rua, o atendimento do Centro de Atenção Psicossocial (Caps), e a SAU evita a ocupação irregular de calçadas e vias”, pontua o secretário. O número de migrantes que se fixam na cidade também é grande, de acordo com o secretário. A Prefeitura emite entre 80 e cem passagens por mês, para que as pessoas possam voltar para a cidade de origem. Um gasto que deveria ser feito pelo Estado, mas, como está atrasado desde 2015, foi assumido pelos cofres municipais, conforme o secretário.
Ele detalha que a ação visa a vencer a resistência das pessoas em situação de rua em aderir aos equipamentos públicos disponíveis, como o Núcleo do Cidadão de Rua, Casa da Cidadania, Casa de Passagem para Mulheres e Centro Pop. Abraão afirma que é preciso ressaltar que, junto à população em situação de rua, há usuários de álcool e outras drogas, e que se tratam de condições diferentes. Assim como a das pessoas que trabalham nas ruas, como os catadores de materiais recicláveis. “Trabalhamos para não chegarmos a uma situação de ter uma cracolândia em Juiz de Fora. Por isso precisamos de ações coordenadas, para não exagerarmos com as pessoas em situação de rua, sem ficar aquém com a questão do tráfico, que é tão séria e complexa quanto. Há uma determinação expressa do prefeito em manter uma abordagem extremamente humana.”

Abraão orienta as pessoas que não colaborem para a fixação da população em situação de rua. Segundo ele, esses cidadãos recebem uma série de doações e optam por não procurar equipamentos que apresentam regras. “Não estamos falando que as pessoas devem deixar de ser caridosas ou solidárias. Mas será muito mais fácil de resolver a situação se essas doações fossem destinadas às instituições que dão apoio e para os equipamentos que os atendem. Eles recusam o atendimento porque recebem muito mais coisas onde estão instalados. Sabemos que as pessoas fazem essas doações com as melhores intenções. Mas elas não tiram essas pessoas da situação em que se encontram. A postura não deve ser de ajudar dentro daquela opção que ela fez. Mas ajudá-la a deixar essa condição, em que está exposta e em vulnerabilidade”, reforça. De acordo com o secretário, há três direcionamentos possíveis, quando se quer ajudar. A primeira é acionar a abordagem social pelo telefone 3690-7770, que funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 23h, e aos sábados e domingos, das 7h às 19h. O segundo é não alimentar e nem doar roupas e cobertores e o terceiro é procurar o Secretaria de Desenvolvimento Social, situado na Rua Halfeld, 450, 5º andar.

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Diagnóstico e apontamentos

O primeiro diagnóstico sobre a população em situação de rua de Juiz de Fora foi lançado no final do ano passado. O documento composto com metodologia científica identificou à época 879 pessoas vivendo em situação de rua. O perfil traçado pelo trabalho mostrava que 82% das pessoas do grupo são homens, 78% são negros e a faixa etária predominante fica entre 26 e 41 anos. O estudo mostra que a maioria sofreu violência moral (70%) e patrimonial (63%). Na época, foram identificados três grupos. O primeiro formado por pessoas que passavam os dias e dormiam nas ruas, composto, naquela época por 242 pessoas. O segundo por 141 indivíduos, que passavam os dias nas ruas e buscavam os centros de acolhimento para pernoite e, por fim, 496 pessoas que passavam os dias nas ruas, mas têm uma residência na qual pernoitam.

A partir do estudo, de acordo com Abraão Ribeiro, políticas públicas para essa população deveriam ser revistas e reformuladas. Elas estão sendo tratadas, segundo ele, na composição do plano plurianual 2018- 2021, mas há uma dificuldade grande de direcionar ações identificadas como necessárias, sem contar com um aporte de recursos que permitam fazer adequações necessárias nos equipamentos.

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Para o sociólogo Igor Rodrigues, que participou da elaboração do diagnóstico, é preciso ir muito além do quantitativo. Ele explica que a situação da população em situação de rua passa por um problema estrutural da cidade. É preciso pensar não só porque o tamanho dessa população aumenta, mas tentar entender também porque ela não diminui. “O comércio de Juiz de Fora, a infraestrutura econômica está muito concentrada no Centro. Então, essas pessoas que vivem o extremo pauperismo, elas migram para onde há maior circulação de bens, na tentativa de angariar recursos. E a especulação faz com que essas pessoas não tenham como se alojar no Centro. A cidade não criou uma política de contenção dessa especulação, nem de construção de moradias de baixo custo.”

Rodrigues também comenta que outra questão importante é a reorganização da rede de atenção a esses indivíduos, que não deve ser unicamente de assistência. “O primeiro passo seria criar uma rede de desenvolvimento social. Porque ela vai guarnecer a estrutura desse cidadão e investir na promoção. Falamos em medidas de capacitação, em ações jurídicas, de saúde.”

Não há, por exemplo, albergues para casais. “Um dos problemas que o diagnóstico aponta é a fragilidade dos vínculos sociais. Então, o que deveria acontecer é o estímulo desses vínculos. No caso de um casal que está em situação de rua, um dos cônjuges precisa ir para o albergue masculino e o outro para o feminino. Eles acabam se separando na hora de dormir, mas eles querem dormir juntos. Então, a falta de adequação causa políticas com baixa aderência. Porque não se estrutura de acordo com a realidade social desses indivíduos”, comenta Igor. Há um questionamento conservador sobre essa matéria, “alguns poderiam dizer: mas albergue não é motel”. No entanto, segundo o sociólogo, por meio de iniciativas como essa, poderiam ser trabalhadas políticas de natalidade, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, oferecimento de preservativos. “Se cria ambiente para ele é melhor do que fechar os olhos e ignorar.” Igor Rodrigues lembra ainda: “Aquele indivíduo que possui um carrinho de material reciclável, por exemplo, não vai dormir no albergue, porque ele não vai ter onde deixá-lo. Então, dorme embaixo do veículo. Por isso, sobram vagas nesses serviços, porque eles não se adéquam ao que essas pessoas precisam.”

Necessidade de repensar modelo de albergue

O sociólogo defende que o modelo atual de albergue deveria ser repensado. Um caminho possível, segundo ele, seria criar um sistema mais individualizado e, ao mesmo tempo, dê ênfase ao coletivo. “Essas são algumas das pautas históricas do movimento da pessoa em situação de rua. Você tira um pouco da tutela do Estado sobre esses indivíduos, pensando em uma progressão. Guarnecendo os eixos centrais da vida, como saúde, segurança e alimentação. O albergue, da forma como é atualmente, não atende as necessidades e características dessas pessoas.” Rodrigues reforça que é preciso agir desde agora, enquanto ainda é possível fazer o que ele nomeia de ‘revolução social’, antes que ela se torne um processo irreversível. “Precisamos sair de uma perspectiva liberal, conservadora, de que eles vão conseguir sair dessa situação sozinhos, que basta querer. Essa é a visão que o senso comum tem. Mas eles estão se esforçando, querem melhorar e não conseguem. Por isso precisamos da colaboração da sociedade e ter ousadia e coragem para sair do lugar comum. Porque a maioria das políticas públicas do país, nesse âmbito, têm sido fracassadas. Juiz de Fora pode ser pioneira, mas precisamos pensar na cidade que queremos para o futuro”, avalia.

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