Uma mesa de bar foi montada no centro do palco. Lá estão as pastas com repartições de plástico encapando as letras dos 25 sambas escolhidos para serem contados. Uma noite histórica e memorável. Dois copos de cerveja entre o violão, com tamanhos e formatos diferentes, e sempre “meio cheios”, para ser otimista. Tudo funcionando como tem que ser, na simplicidade de um botequim, esse espaço quase anexo a sua casa. Assim aconteceu o projeto “Cantando histórias e contando canções”, no Bar da Fábrica, reunindo os músicos Mamão e Marcio Itaboray na noite da última segunda-feira (5). Em um formato diferente, o motivo das composições, aqueles segredos sobre os bons e maus momentos, é revelado. Na “Cidade iluminada”, vão de bar em bar, cantando as histórias que costuram as canções.
Oh! Cidade Iluminada
Quantas Madrugadas vaguei por aí
Procurando os meus amores
E os amigos que não voltam nunca mais
Quantos bares já fechei
Procurando eu me perdi
(Cidade Iluminada / Mamão e Toinho)
O encontro de história e música aconteceu por insistência e vontade de Marcinho Itaboray, parceiro musical de Mamão. O evento foi organizado e planejado por Rodrigo Barbosa, que, entre sua vida acadêmica, é contador e escritor de boas histórias, mas também pesquisador da música popular. Além de já ter assinado composições do Bloco do Beco junto ao querido Armando Fernandes Aguiar, o Mamão.
“Mamão é uma figura diferenciada. É pedra não lapidada. Chegava com o ritmo e a letra, já saía música, mesmo sem tocar nenhum instrumento”, revela Marcinho, que o conheceu quando tinha 17 anos. Mamão e ele tocaram no mesmo festival em 1972, quando Mamão apresentou “Tristeza pé no chão”, gravada em seguida pela voz de Clara Nunes, que a fez ser tão difundida na história da música brasileira. Marcinho estava com seu grupo musical, o movimento de universitários, chamado A Pá, que organizava o Som Aberto. Após o festival, saíram para uma roda de samba, foi nesse dia que teve seu primeiro encontro com Mamão, que na época tinha seus 36 anos.
Ele e Marcinho assinam nove composições em conjunto, entre elas “Apesar dos pesares”, de quando Mamão estava indo à feira desafogar a angústia e terminou duas da manhã do dia seguinte com esse samba pronto. Marcinho o encontrou na rua e pelo semblante já reparou que não estava com seu jeito sempre alegre e de bem com a vida, desviou sua rota e de lá saiu a primeira parceria musical dos dois.
Eu canto samba porque sou feliz
E, apesar dos pesares
Sempre fiz o que bem quis
Eu vou cantar mais um samba agora
Pra mostrar que a tristeza não mora
Dentro do meu coração
(Apesar dos pesares/ Mamão e Marcinho Itaboray)
Uma história bem humorada foi “Samba da Bronca”, Marcinho começa dizendo sobre um sambista da cidade que estava sendo homenageado, e na ocasião Paulinho da Viola estava presente. “A namorada do Mamão estava lá dando asa pro Paulinho”, todo mundo reparou e começou a alertá-lo, ao que ele respondeu “Não tem problema, eu faço uma canção falando da saída da Mangueira”.
Agora
Eu vou pra Mangueira puxar um partido
Estou encucado, estou decidido
Deixei a Portela por causa delaSim, eu sei
Que atrás de um verso bonito ela perde a razão
Sim, estou sabendo
(Samba da Bronca/ Mamão)
A música é política, assim como a arte e seu bom humor. “Viver no regime militar era assim, tinha que mandar a letra pra censura. A música (Baianeiro) foi censurada, fui no Palácio do Catete resolver o problema. Perguntaram ‘Você tá brincando com o clero? com o padre?’, e falei ‘Não é padre! é compadre!”, Mamão cai na gargalhada.
Ai, eu sou baianeiro
Metade baiano, metade mineiroNo céu, digo: Salve o Padroeiro
Na terra, eu dou viva pro dinheiro
Padre baiano é macumbeiro
Padre mineiro é fazendeiro
(Baianeiro/ Mamão)
“Baianeiro” faz referência a Itamar Franco, ex-presidente e, na época, prefeito de Juiz de Fora. A letra é uma verdadeira piada com Itamar, e o mais engraçado é que Mamão ganhou o primeiro lugar em um prêmio por essa música, que devia ter sido entregue pelo prefeito na ocasião. “Estou esperando o prêmio até hoje, acho que não vou receber mais não…”, provoca Mamão. Ao perceber que a música era uma brincadeira com sua imagem, Itamar foi embora na hora sem premiá-lo.
Encontro de amigos
No palco, acompanhando os dois amigos, estava Maíra Delgado no pandeiro, Moacir no Cavaquinho e Rodriguinho no Surdo, um encontro de amigos, do palco ao público. Chegou um momento em que os dois contavam as histórias, e um companheiro da vida gritou da plateia: “quero dizer sobre esse dia também!”, complementando aquele enredo, o fio de realidade por trás de todo sentimento musicado.
A música é um lugar para o artista dizer tudo que lhe consome por dentro, entre figuras de linguagem e dizeres incompletos. Mas que para ele o sacia e proporciona alívio. O significado da arte é a gente quem atribui, não há um sentido verdadeiro, ela faz o papel de analista da nossa mente, e, ao encontro daquela obra, criamos nossa interpretação. Mas às vezes bate uma curiosidade inquieta de descobrir que aperto é esse de saudade no tamborim que Mamão sentiu? E aquela música “Última noite” que relata uma história de motel? E ainda “Beco do Balthazar”, um samba enredo em ré maior que deu origem ao Bloco e Bar do Beco? Em suma, Mamão fala mesmo é de seu amor por Juiz de Fora. “Eu já disse por diversas vezes que eu não saio de Juiz de Fora nem para ir pro céu.”
A noite terminou sem perder o tom, na espontaneidade após alguns copos de cerveja, de onde as boas ideias nascem. Foram se juntando aos poucos, o pessoal de fora foi se aproximando, e uma roda não deixou o samba morrer na noite de 5 de junho, que entrou para a história (aqui vale a pena o clichê). Bré Rosário pegou o pandeiro, Mário Tarcitano, o tamborim, Carioca, que compôs a maioria dos sambas do Beco, ficou ao lado de Mamão. Ritmando tudo estava Mestre Jansen. A banda não foi embora e adentrou madrugada afora com som. Bem no centro da cidade, no Bar da Fábrica, naquele ínterim entre o Mercadão Municipal. Foi bonito? Foi.