A humanização do modelo de atendimento a pessoas com transtornos mentais exige não só mudança de paradigma, mas, principalmente, implantação de novas estruturas de saúde. Com cinco Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em funcionamento na cidade, dois deles por 24 horas, Juiz de Fora tem ampliado a sua rede de assistência, mas ainda enfrenta o desafio de alcançar uma cobertura territorializada, que se torne capaz de atender a população em todas as regiões do município. Na prática, a região Norte, uma das mais populosas, continua desassistida de Caps, contando apenas com o Centro de Atenção em Saúde Mental do Departamento de Saúde Mental localizado na Rua Tiradentes, no Bairro Santa Helena, região central. Mesmo nas áreas onde o centro está implantado, há problemas em relação à precariedade da infraestrutura, como é o caso do Caps Infantil (Caps I).
Localizado na Rua Engenheiro Moraes Sarmento, no Santa Catarina, o Caps I funciona há seis anos em uma casa alugada, porém inadequada para o atendimento de crianças e adolescentes com transtorno mental severo e persistente. As salas estão mofadas, em função de vazamentos constantes, o mobiliário sucateado, a cozinha sem condições de uso e a brinquedoteca, que deveria oferecer momentos lúdicos, está improvisada em um cômodo pequeno, onde os brinquedos são mantidos em caixas no chão. Apesar de o Caps I estar de malas prontas para o Bom Pastor, a manutenção do serviço por tanto tempo em um local como aquele é “constrangedora”, admite o próprio secretário de Saúde, José Laerte. Ele aposta, porém, que os problemas serão solucionados com a mudança para o novo endereço.
Acompanhamento
Por mês, cerca de 500 crianças são acompanhadas no ambulatório do Caps I. Outras 15 frequentam o serviço diariamente e participam das oficinas de fotografia, educação física, jogos, desenho, artesanato, jornal. A maioria dos usuários apresenta quadros graves de psicose e transtorno de conduta, além de uso de droga.
Muitos são filhos de usuários de crack que tiveram sequelas em função do uso da mãe no período gestacional e após o nascimento. Há situações de crises convulsivas na criança, em função da abstinência da droga, e outras de risco de vida, já que alguns filhos receberam droga dos pais para que dormissem. Os usuários são, em sua maioria, da classe baixa, e muitos experimentam mais do que a pobreza, mas o abandono familiar. “Muitas dessas famílias não se responsabilizam pelo filho. Eles crescem, e a gente não consegue fazer com que parentes façam adesão ao tratamento, porque estão mais preocupados com os ganhos secundários da doença”, explica Márcia Andrade Amoedo, psicóloga do Caps I, referindo-se aos benefícios financeiros previstos em lei.
De acordo com a equipe, um dos casos mais impactantes registrados no Caps é o de um adolescente de 14 anos com psicose e retardo grave que foi mantido em cárcere privado pela mãe. Na casa onde ele foi encontrado, havia um quarto fechado com grades, com espaço apenas para a passagem de comida. Exatamente em função do tamanho do problema é que o Caps I deveria ser um dos mais bem equipados da cidade, oferecendo espaço digno para meninos e meninas privados não de razão, mas de amor e cuidado.
Falta de médicos também é problema
O Caps é um serviço estratégico que tem como função cuidar das demandas de saúde mental dos municípios, a partir de atendimentos em atenção psicossocial de pessoas com transtornos mentais graves por meio de equipes multidisciplinares e de oficinas terapêuticas. Como um lugar de passagem, atende casos agudos. Após estabilizarem, os usuários são contrarreferenciados para as unidades de atenção primária à saúde (Uaps) de origem, devendo recorrer à rede básica de saúde do município. Criado há 23 anos, o Caps Casa Viva já superou os desafios de infraestrutura. Diferente do Caps I, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial a entrar em funcionamento na cidade conquistou a sede própria, na Rua Antônio José Martins, no Morro da Glória. A mudança para a nova sede ocorreu em março deste ano e garantiu mais espaço para as antigas oficinas de música, artesanato, alfabetização, ateliê de escultura, entre outros.
Por semana, 60 usuários frequentam o espaço que conta ainda com um ambulatório para consultas. O problema é que faltam médicos dispostos a receber salário inferior a R$ 2 mil. Outra questão diz respeito aos oito leitos de retaguarda para o atendimento de crises. Na prática, dois deles não foram implantados porque o cômodo projetado não comporta oito camas.
De mudança
Localizado na Rua Américo Lobo, no Bairu, o Caps II Leste também está de mudança para a Rua Floriano Peixoto. Por dia, o centro realiza uma média de 35 atendimentos, sendo referência territorial para oito Uaps e outros quatro bairros que ainda não possuem cobertura de postos de saúde: Manoel Honório, Bairu, Ladeira e Vitorino Braga.
Assim como o Casa Viva e o Caps Álcool e Drogas (AD), o Leste passará a oferecer atendimento 24 horas, quando terá oito leitos de referência. “Já tivemos que encaminhar nossos usuários para o Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP) por falta de leitos para atender a crise, embora, muitas vezes, o problema não seja só psicopatológico, mas familiar. Numa abordagem terapêutica, a intervenção medicamentosa não é a única, muitos contornos são feitos através da palavra”, explica a coordenadora Janaína Nogueira. Ela destaca que a consolidação da rede de atendimento vem sendo trabalhada através da articulação com os outros serviços de saúde e com a assistência social do município e que um dos objetivos do trabalho é fazer com que os profissionais da atenção primária se apropriem, conjuntamente com o Caps e os serviços residenciais terapêuticos, dessa clientela.
Proximidade com o usuário no Caps Álcool e Drogas
O Caps Álcool e Drogas vem passando por mudanças para estar mais próximo do usuário. No passado, os acolhimentos na cidade eram feitos somente com agendamento, algo difícil de dar certo, em função do público atendido. Agora, no entanto, quem chega no serviço é imediatamente acolhido. Com oito leitos de retaguarda para desintoxicação, o Caps AD mantém, ainda, atendimento individualizado de psiquiatria, psicologia, além de assistência de equipe multidisciplinar para o atendimento familiar e de grupo. Há ainda oficinas terapêuticas de marcenaria, jardinagem, culinária, artesanato, dança e música e uma sala de educação para jovens e adultos.
“Muitos usuários têm vergonha e dificuldade para chegar a uma sala de aula. Por isso, a parceria com a Secretaria de Educação foi uma conquista. Além disso, buscamos não só um projeto de tratamento, mas de vida. Nesse sentido, as oficinas têm um caráter terapêutico, mas também profissionalizante”, explica a coordenadora Viviane de Souza.
O professor de psiquiatria da Unicamp Luís Fernando Tófoli considera importante o trabalho que os Caps AD vêm realizando no país, mas destaca a necessidade de os serviços de saúde mental adotarem efetivamente a redução de danos, conforme prevê a Política Nacional de Saúde Mental, e isso inclui a adoção de consultórios de rua, além de implantação de salas seguras de uso. “Oficialmente, os Caps AD deveriam funcionar na lógica da redução de danos, porque essa é a política. Mas a gente vê tudo que se possa imaginar, como Caps funcionando pelo viés normativo, da abstinência, outros que funcionam na perspectiva da reza. A perspectiva da redução de danos é a seguinte: ir onde o sujeito está. Quem chega no ambulatório é quem naturalmente está mais interessado em parar de usar. Quem não está interessado em parar é quem poderia ser trabalhado numa perspectiva de diminuir o impacto dos efeitos nocivos da droga e aumentar as possibilidades de cidadania. Por isso, não adianta esperar a pessoa chegar ao serviço.”
‘O mais difícil é a mudança cultural’
Chegar ao Caps HU não é tarefa fácil. Embora o imóvel esteja localizado no movimentado Bairro São Mateus, ele não conta com nenhuma placa de identificação, o que dificulta o reconhecimento do serviço. A justificativa para a ausência de indicação de que naquela área é feito um atendimento público a pessoas com transtorno mental é que a permanência no local é provisória, já que uma nova sede está em construção no Dom Bosco. Na prática, porém, a unidade, criada há 12 anos, permanece no endereço provisório há pelo menos quatro anos. Diferentemente dos outros Caps, o do HU tem compromisso não só com a assistência, mas com a formação e ensino, mantendo a residência de psiquiatria e psicologia.
Apesar de o Caps HU estar localizado na Zona Sul, o território de atendimento é referente aos bairros Borboleta, São Pedro, Santos Dumont, Teixeiras e São Pedro. Um dos objetivos do trabalho é desenvolver projetos terapêuticos individualizados. “Os encaminhamentos são feitos de acordo com as demandas apontadas por cada usuário ou percebidas por nós. Outro trabalho é o monitoramento das residências terapêuticas, pois todas as casas são vinculadas a um Caps. Este é um momento chave para fazer a capacitação em serviço, a fim de que possamos construir propostas de cuidado condizentes com a perspectiva da reforma psiquiátrica. Se não tomarmos muito cuidado, tiramos do hospital, colocamos o paciente na residência terapêutica e no Caps, mas não devolvemos a liberdade. Fechar um dispositivo e construir outro não é o mais complicado. O mais difícil é a mudança cultural, para que a gente não reproduza nos Caps e nas residências o modelo manicomial”, alerta Sabrina Barra, assistente social do Caps HU.