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Falta assistência a pessoas com deficiência na saúde pública em JF

cadeirante felipe
Jean Oliveira espera há cerca de três anos para receber cadeira motorizada que facilitaria sua mobilidade. “Sinto que há um desprezo pela pessoa com deficiência em Juiz de Fora”, lamenta (Foto: Leonardo Costa)
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O Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CMDPD) deve enviar à Secretaria de Saúde, nos próximos dias , ofício cobrando respostas sobre a implantação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em Juiz de Fora. A intenção é convocar um debate entre a pasta, o Ministério Público e a Secretaria de Estado de Saúde (SES), uma das responsáveis pela implantação, para sanar diversos problemas detectados pela população que precisa deste serviço. A Ouvidoria Regional de Saúde recebe cerca de 30 manifestações mensais sobre a falta de assistência às pessoas com deficiência, média de quase uma reclamação formalizada por dia.

A decisão de provocar as secretarias para tentar dialogar sobre a questão surgiu durante plenária entre o CMDPD, o Conselho Municipal de Saúde e a Ouvidoria, realizada na última semana. Entre os problemas apontados pela população com mais frequência estão a falta de próteses, órteses e cadeiras de rodas, cujo serviço de referência é o Hospital João Penido. Outro problema seria a espera de cerca de dois anos para obter aparelhos auditivos para pessoas surdas.

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“A legislação vigente diz respeito à assistência a pessoas com todos os tipos de deficiência, mas há falhas na concessão de equipamentos e também de atendimentos, como fisioterapia. Também falta a realização de trabalhos com crianças autistas ou com deficiência intelectual, que precisam da intervenção de grupos interdisciplinares. Temos o programa de saúde auditiva, mas que funciona de forma mal estruturada. O Centro de Reabilitação do João Penido, por exemplo, perdeu profissionais e não tem fornecedor para conceder cadeiras de rodas, mas nada tem sido feito para resolver nenhum desses problemas”, pontua a ouvidora regional de Saúde, Samantha Borchear.

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Ela se refere à portaria nº 793, de abril de 2012. Assinada pelo Ministério da Saúde, a norma institui a criação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, com o objetivo de estabelecer diretrizes para a implantação de uma rede de serviços de reabilitação integrada, articulando pontos de atenção à saúde para pessoas com deficiência temporária ou permanente, progressiva, regressiva ou estável e intermitente ou contínua no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as diretrizes estão o respeito à autonomia, promoção da equidade e garantia de acesso e de qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional.

Omissão

“Há pacientes que estão tentando conseguir uma cadeira de rodas desde 2012.” Samantha Borchear”, ouvidora Regional de Saúde (Foto: Marcelo Ribeiro)

Apesar da legislação, o que se vê em Juiz de Fora atualmente é bem diferente, conforme a ouvidora. “Muitas unidades de saúde não têm profissionais capacitados, e as pessoas ficam à mercê de favores, de atendimentos eventuais de instituições não públicas. Essas pessoas são invisíveis. Elas têm direitos assegurados pela Constituição Federal, mas não têm acesso a nada. Em Juiz de Fora, em especial, a situação é caótica.”

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Segundo a presidente do CMDPD, Maria Valéria de Andrade, a demanda é grande e o sentimento é de omissão por parte do Poder Público. “O município não está devidamente preparado para atender a pessoa com deficiência e não tem encontrado estratégias para vencer essa situação. Para nós, é uma omissão muito grave, fruto da invisibilidade existente com relação a esse segmento, que é expressivo. Além disso, essa falta de posicionamento dos poderes executivos mostra uma incompetência muito grande politicamente falando.”

Além de enviar ofício à Secretaria de Saúde e à Secretaria de Estado da Saúde, o conselho também vai acionar o Ministério Público para participar do debate. “Como primeira medida, vamos fazer uma discussão sobre essa rede, porque a portaria é de 2012 e, até hoje, não ficou claro como ela funciona. Para nós, a existência dela é uma falácia. É preciso criar uma estrutura dentro das secretarias estadual e municipal que organize todos esses serviços. A portaria aponta um grupo condutor que sequer foi pensado. Criou-se uma junta reguladora que não funciona e não tem estrutura e só avalia e monitora o serviço”, relata.

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Para Valéria, o problema mais grave tem relação com a falta de cadeiras de rodas, próteses e órteses, também pontuado pela ouvidora regional como urgente. “O dever de conceder próteses e órteses é do Estado, que alega que não tem recursos. É sabido que os fornecedores não querem participar de licitações com baixo valor, mas não vamos deixar esta situação continuar. Todos os entes estão deixando de realizar seus papéis constitucionais de cumprir e zelar pela qualidade da vida da pessoa com deficiência e pela reabilitação, que é o mínimo que se espera para que a pessoa tenha uma vida digna e possa participar da sociedade”, lamenta.

Juiz-foranos aguardam concessão de cadeiras de rodas

A pequena Kauane Pereira de Oliveira tem apenas 7 anos, mas já é afetada pelas falhas na assistência a pessoas com deficiência. Ela tem paralisia cerebral e aguarda desde maio por uma cadeira de rodas com medidas ideais para o tamanho do seu corpo, essencial para sua mobilidade. Entretanto, o serviço do Centro de Reabilitação do Hospital João Penido, que deveria conceder a cadeira, está sem fornecedor e não há previsão para que ela e outras 139 pessoas na fila de espera sejam atendidas.

A administração do centro é de responsabilidade do governo estadual. Procurada pela Tribuna, a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado da Saúde (SES) informou, por meio de nota, que o processo de licitação para fornecedores de órteses, próteses e cadeiras de rodas está deserto, já que nenhum fornecedor se inscreve para a venda. Por isso, não haveria previsão sobre o tempo de espera para os pacientes que aguardam para serem atendidos no centro.

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Enquanto isso, a mãe de Kauane não sabe como resolver o problema. “Sou da Bahia e cheguei em Juiz de Fora em 2016, em busca de melhores condições de saúde para minha filha. Quando vim para a cidade, ela tinha outra cadeira, que estava estragada e machucava muito. Depois, consegui outra, por meio de doação, mas é pequena e não serve mais para ela. Desde então, estou tentando conseguir uma cadeira nova, porque a que ela tem é muito pequena e atrapalha o desenvolvimento dela”, conta Daniele Pereira, 26 anos.

“O município não está devidamente preparado para atender a pessoa com deficiência e não tem encontrado estratégias para vencer essa situação. Para nós, é uma omissão muito grave, fruto da invisibilidade existente com relação a esse segmento, que é expressivo.” Maria Valéria de Andrade, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Foto: Arquivo Pessoal)

Em busca de uma solução, Daniele está juntando dinheiro para tentar comprar uma cadeira de rodas, mas ainda não conseguiu a quantia necessária. “Disseram que iam me ligar para tirar as medidas dela. Depois de um tempo, eu liguei no hospital, e disseram que ia demorar muito tempo e que estava muito difícil, mas não me explicaram muito. Aí comecei a organizar um bingo para ver se consigo comprar com ajuda de outras pessoas. Já tenho R$ 3.200, mas é preciso R$ 6.550.”

Segundo a ouvidora regional, Samantha Borchear, o caso de Kauane não é isolado. “Muitas pessoas vêm à Ouvidoria precisando de cadeiras ou próteses. Há pacientes que estão tentando conseguir uma cadeira de rodas desde 2012. Na maioria dos casos, nossa única alternativa está sendo judicializar os pedidos, mas até o Poder Judiciário está dando as costas para os direitos difusos.”

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É o caso de Jean Rocha Oliveira, de 21 anos. Ele está na fila de espera para receber uma cadeira de rodas motorizada há três anos, mas até hoje não foi chamado para fazer as medições do tamanho. “Eu assinei os papéis para fazer o pedido da cadeira e passei nos testes necessários, mas não me chamaram até hoje para tirar minhas medidas. A única informação que me deram é que está sem fornecedor e que eu tenho que esperar.” Atualmente, ele usa uma cadeira de rodas simples, mas encontra dificuldades para se locomover. “A cadeira motorizada facilitaria muito minha mobilidade, porque as calçadas são muito irregulares. Conheço outras pessoas que precisam, e a resposta é sempre a mesma. Sinto que há um desprezo pela pessoa com deficiência em Juiz de Fora”, lamenta o jovem.

Município e Estado negam desassistência

Após ouvir os relatos, a Tribuna procurou a Secretaria de Estado de Saúde (SES) para esclarecer como é a assistência de saúde às pessoas com deficiência na região. A secretaria estadual se manifestou por meio de nota, e informou que os 94 municípios da macrorregião de Juiz de Fora contam com os seguintes serviços de reabilitação: física, no Hospital João Penido; ostomia, no PAM-Marechal; visual, na Associação dos Cegos; intelectual, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae); e auditiva, na clínica Dr. Evandro Ribeiro de Oliveira.

Calçadas irregulares atrapalham a mobilidade do cadeirante Jean Rocha de Oliveira, 21 anos. Ele aguarda a concessão de cadeira de rodas motorizada há três anos (Foto: Leonardo Costa)

Ainda conforme a assessoria da pasta, “os equipamentos funcionam de acordo com o credenciamento/habilitação que possuem nas suas referidas modalidades de reabilitação”, sendo o acesso a todos eles feitos através da Secretaria Municipal”. Segundo o texto, o instrumento a ser seguido para ampliação da rede é a Deliberação CIB nº 1.545, de 2013, que aprova o Plano de Ação da Rede de Cuidados em Minas Gerais, sendo que, no total, 254 pontos de atenção estão em funcionamento em todo o estado.

Sobre as atribuições municipais, o assessor de gabinete da Secretaria de Saúde, Ivan Chebli, garantiu que, pressionada pela reportagem e pelos órgãos autores do ofício, uma reunião será realizada nos próximos dias, com a participação dos dois conselhos e da ouvidoria. O objetivo é criar o grupo condutor municipal, previsto na portaria, para fiscalizar a rede já implantada na cidade. “Os grupos municipal e regional não foram implantados. Por isso, as instituições que assinarem o ofício serão convocadas para indicar pessoas para compor o grupo, com civis e pessoas com referência técnica. Além disso, vamos provocar a Superintendência Regional de Saúde para implantar o grupo regional e monitorar o fluxo de referência das outras regiões para Juiz de Fora. O grupo funciona com licença de regulação e pode sugerir adequações e até penalizações.”

Conforme o assessor, não há previsão de investimento para implantação de um Centro Especializado em Reabilitação (CER), também previsto pela portaria. “Desde 2004, o Estado vem programando investimentos, seja de recursos federais ou estaduais. Há um investimento estabelecido para implantação de um CER em cada região, mas para a região de saúde de Juiz de Fora não há previsão. No entanto, não quer dizer que não existem serviços de saúde direcionados para pessoas com deficiência. Além dos sete serviços de reabilitação, as pessoas com deficiência são usuários como quaisquer outros, mas são atendidos por meio de uma linha de cuidados com serviços vocacionados para atender suas necessidades.”

Questionado sobre as falhas na assistência no serviço de reabilitação física do Hospital João Penido, a pasta confirmou que existe uma fila para as órteses e próteses, mas afirmou que a resolução deste problema não depende do Município, “tendo em vista que esses equipamentos, materiais permanentes e insumos são adquiridos com recursos federais com tetos previamente definidos, estabelecidos pelo Ministério da Saúde e pela SES”.

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