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Oito suicídios de policiais civis em MG alertam para saúde mental

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“Entreguei minha filha com 100% de autoestima, e eles me devolveram ela morta.” O desabafo é do marinheiro mecânico aposentado Aldair Drumond, 62 anos, pai da escrivã da Polícia Civil Rafaela Drumond, 31, vítima do próprio tiro no dia 9 de junho deste ano na casa da família, no município de Antônio Carlos, no Campo das Vertentes, a cerca de 100 quilômetros de Juiz de Fora. “Temos que lutar contra o assédio moral, porque ele mata”, alerta ele, sobre o possível gatilho que teria levado a policial da Delegacia de Carandaí a desistir de viver. O caso dela teve desfecho inesperado na última semana, quando o delegado investigado por condescendência criminosa – por ter se omitido de supostos assédios e crime de injúria praticado por investigador da equipe – aceitou acordo do Ministério Público, que consiste em pagar R$ 2 mil para ter o processo arquivado.

Lamentavelmente, Rafaela não está sozinha nas estatísticas de autoextermínio na instituição de segurança pública mineira: dados do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil (Sindpol/MG) apontam que cinco investigadores, um delegado e um médico legista também tiraram a própria vida, apenas em 2023.

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Para além dos suicídios, o sinal vermelho sobre a saúde mental desses policiais ganhou contornos dramáticos em outra ocorrência recente de repercussão: no dia 22 de novembro, uma delegada de Belo Horizonte, 39, ficou mais de 30 horas confinada em seu apartamento, no Bairro Ouro Preto, na região da Pampulha, e teria efetuado quatro disparos contra policiais civis que cercaram seu imóvel, supostamente por temerem que ela cometesse autoextermínio. Enquanto era acuada dentro de casa, ela fez uma live pelo Instagram, acusando colegas de assédio: “Eles tiraram minha saúde, vocês não têm ideia do que fizeram. Foi torpe, foi vil.”

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Segundo o Sindpol, a delegada vinha fazendo tratamento psicológico e esteve afastada. Na transmissão ao vivo, ela diz que deveria ter retornado ao serviço um dia antes. “Trabalho para pagar psiquiatra e advogado”, dispara a servidora em outro trecho. Ela recebeu voz de prisão em flagrante por tentativa de homicídio contra os policiais, os quais não foram atingidos, e foi internada em um hospital.

“Ela não estava doente, afastada, apenas com algumas perseguições e denúncias na Corregedoria que parecem não quererem dar andamento”, denuncia uma familiar em boletim de ocorrência. “Os policiais insistiram, em frente à porta da delegada, onde alegavam que estavam lá para saber se ela estava bem. Os investigadores não tinham mandado, ordem superior, sequer motivo que justificassem suas presenças”, completa a denunciante. De acordo com a Polícia Civil, a Justiça decretou, a pedido da defesa da delegada, o sigilo das investigações.

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Militante da causa

“O caso da delegada é bem similar ao da minha filha e também houve disparo. É muita pressão psicológica”, comenta Aldair Drumond. “Acredito que ela vinha sofrendo, segurando aquilo. Fico pensando que, se eu soubesse, poderia ter mudado alguma coisa”, sofre o pai, que virou uma espécie de militante da causa e recebe mensagens de todo o país. Em uma delas, uma mulher diz: “O senhor é pai da Rafaela? Lembro dela todos os dias. Decidi hoje pedir exoneração do meu cargo público e buscar algo melhor… o psicológico grita por ajuda.” Para o mecânico, essa tem sido uma forma de ajudar a própria filha, indiretamente. ” Dezenas de moças me procuraram relatando assédio na Polícia Civil. Deus ouviu minhas preces, e estou conseguindo fazer isso. Sinto que minha filha está ao meu lado, dentro de mim.”

Segundo ele, a policial teria sofrido importunação sexual em uma festa em agosto do ano passado. “A autoestima dela desabou, não suportou. Relatou para o delegado que, ao invés de tomar atitude e passar aos superiores, foi assediando, fazendo pressão psicológica. Ela, filha de gente pobre, ficou com a cabeça a mil, pensando que iria perder o emprego.” Ele acredita que o fato dela ser bonita agravou a situação de assédio, enquanto ter armamento facilitou o desfecho trágico. “O delegado poderia ter retirado a arma, percebendo que não estava bem. Ela não teve qualquer acompanhamento psicológico.”

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RAFAELA DRUMOND, escrivã da Polícia Civil morta em junho, em foto de 2018, entre os pais, Zuraide e Aldair (Foto: Arquivo pessoal)

A escrivã era a caçula de duas filhas. “Posso afirmar, como pai de vítima, que a Polícia Civil é uma instituição com modos das décadas de 1960/70, da época da ditadura. Estão entrando muitos jovens modernos, evoluídos e, quando chegam nessa instituição retrógrada, acontecem coisas assim.” Na visão dele, entretanto, não são apenas os homens que cometem assédios. “É um regime assediador. Só de entrar no prédio da Corregedoria em Belo Horizonte pude sentir aquela áurea.” Inconformado com a tragédia familiar, o mecânico acredita que a vida de sua filha poderia ter sido diferente, caso houvesse mais sensibilidade da instituição, por meio de trabalhos de assistência psicológica. “Ela estava trabalhando há três anos. Acompanhei a entrada dela, era apaixonada pela Polícia Civil. A felicidade dela era contagiante, como se fosse criança. Mas, com o tempo, foi perdendo aquele amor.”

Policial detalha rotina de assédios e perseguições

“Minha expectativa era atuar na frente operacional, trabalhar em uma especializada. Sempre gostei muito dessa área investigativa, e na Acadepol nos ensinam tanto… Mas a realidade não foi coerente com isso. Por ser mulher, no início da carreira era jogada em funções diferentes da atividade policial, como ficar na secretaria, atender ao público, funções ‘secundárias’ que os policiais homens não faziam”, conta uma policial civil do 4º Departamento de Juiz de Fora, que teve sua identidade preservada para não sofrer represálias. “Tive dois surtos, crise de ansiedade e ataques de pânico. Na primeira vez, pedi afastamento por cerca de um mês. Na última, não cheguei a afastar. Mas preciso fazer uso diário de ansiolíticos e de remédios para dormir.”

Apesar da difícil rotina, a policial tem esperança de transformações na instituição em que um dia sonhou em trabalhar. “Vejo uma pequena evolução com as novas turmas e com a entrada de mais mulheres, mas ainda é um ambiente machista, muito mais hostil com as mulheres. A maioria sofre com questões de conduta e assédios por parte de alguns colegas.” Ela mesma revela ter sido vítima, mais de uma vez: “Já fui agarrada por um colega dentro de um depósito e por outro numa sala. Na verdade, foram tentativas, porque eu, particularmente, sei me defender. Mas, se não soubesse, não imagino qual seria o desfecho dessas ‘investidas’. Isso foi quando entrei na polícia, mas já tinha passado por tanto constrangimento e discriminação que nem quis levar esses casos ao conhecimento da chefia, pois sempre que denunciamos somos acusadas e mal vistas, como se fosse um comportamento normal e aceitável.”

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O assédio não ficou restrito àquele ambiente. “Já fui perseguida na rua por colegas de trabalho até de outras instituições da segurança pública. Sofria mais assédio quando entrei na polícia, por ser nova na instituição e ter pouco mais de 20 anos.” Mesmo com os constrangimentos, a policial levou outras situações ao conhecimento dos superiores e acabou sofrendo novas intimidações. “Muitas vezes tentei e fui recriminada. Houve ocasiões de ligarem para os agressores, contarem o que eu havia relatado e não fazerem nada. Eu tinha que voltar a conviver com eles na delegacia e ainda sofrer outros tipos de violência, como ser chamada de dedo-duro, ouvir que eu só podia era gostar de mulher ou que era mal amada. A maioria dos colegas sabia dos fatos e ignorava.”

Humilhaçao pública

Ao longo de sua carreira, a policial chegou a ser perseguida pelo chefe. “Fui humilhada no corredor de uma delegacia pelo delegado regional, que me perseguiu por muito tempo e me assediava constantemente. Nenhum colega se manifestou, nem nesse episódio de humilhação pública. Na verdade, quem acabou respondendo sindicâncias fui eu. E tive que mudar de delegacia para cessar os assédios e perseguições.” Nas formas mais “sutis” de assédio, ela recebia cantadas e ouvia comentários “absurdos”.

A mulher que desejava apenas trabalhar livremente sem opressões constantes também viu servidoras adoecerem ao seu lado. “A maioria das mulheres desenvolve doenças psiquiátricas/psicológicas por sofrerem uma pressão ‘diferenciada’. Recentemente, uma delas passou por uma situação constrangedora ao dizer que iria denunciar a conduta de um colega. Ao pedir que policiais testemunhassem a seu favor, eles se recusaram, e ela ainda sofreu uma série de ameaças veladas e pressão para não tomar providências. Por fim, a taxaram de doida, pois o policial – com vasto histórico de abusos contra outras colegas – disse que ela havia se enganado, chegando a persegui-la e ameaçá-la.”

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Sociedade machista é refletida na própria instituição

Segundo Givanildo Guimarães, suplente na diretoria regional do Sindpol, várias questões canalizam e apontam para o assédio moral, inclusive institucional. “Existe uma hierarquia muito rígida, casada com limitações no direito de reivindicação. Por exemplo, as forças policiais não podem fazer greve. Isso obviamente dificulta o enfrentamento dos problemas, e eles aparecem de forma mais agravante: assédio moral, perseguição, falta de transparência com a base das forças policiais.” Na opinião dele, a situação é ainda mais crítica para as mulheres, as quais ainda estão sujeitas a assédio sexual.

A experiência dele na regional de Juiz de Fora passa por perseguições, com transferências e remoções de servidores sem as devidas justificativas. “Recebemos muitas reclamações no sindicato sobre a falta de transparência em processos de promoção interna e de seleção para administradores de curso.” Os afastamentos médicos também são alvos constantes de questionamentos, conforme Givanildo. “Falta sensibilidade no reconhecimento dessas licenças, principalmente das psiquiátricas. Existe um adoecimento, sim, da categoria, com casos relevantes de suicídio, que precisamos considerar.”

Ainda no âmbito regional, ele cita caso de policial que teve a licença psiquiátrica suspensa pela perícia, mesmo estando acompanhado por médico, sendo obrigado a retornar ao trabalho, sob o risco de ter o salário cortado. “São coisas absurdas que vemos de adoecimento”, dispara o sindicalista, acrescentando o desrespeito à questão salarial, como a recomposição não cumprida pelo Governo estadual e os atrasos das promoções. “Ficamos atados, porque temos essa dificuldade de exercer o direito de greve. Todos esses problemas refletem na questão do suicídio, com pressão e ambiente mais propício a assédio moral.”

Para o representante do Sindpol, em relação às mulheres, a sociedade machista é refletida na própria instituição. “Atravessada por essa questão do assédio sexual. Existem casos que sinalizam nesse sentido, de perseguição com a servidora porque havia algum interesse (pessoal).”

Assédio moral não fica restrito às mulheres

Como investigador e presidente do Sindpol/MG e da Federação Sudeste dos Trabalhadores Policiais Civis, Wemerson Oliveira vê com muita preocupação a saúde mental da categoria, principalmente em Minas, pelos adoecimentos. “Tudo por excesso de trabalho, falta de acompanhamento e de perspectiva profissional. Sem contar que lidamos o tempo todo só com tragédia, infelizmente. Nós, que investigamos os crimes, estamos sempre em contato direto, tanto com o crime quanto com o criminoso e as vítimas.” Segundo ele, isso vai sendo somatizado na vida do servidor. “Como ele não tem acompanhamento periódico do Estado, vai adoecendo. Muitas vezes tem que, por si só, descobrir aquela doença e se tratar sozinho.”

O sindicalista encaminhou, em julho, à chefia pedido de acompanhamento periódico dos policiais, ao menos uma vez por ano. “Para que ele seja tratado se for detectado algum tipo de adoecimento ou estafa.” Ele destaca que, apesar de vivermos em uma sociedade machista, e as mulheres estarem mais vulneráveis, o assédio não fica restrito a elas. “O assédio moral não vem carregado pela identidade de gênero, mas pela condição de subordinação dentro da unidade policial. E as mulheres, infelizmente, acabam sofrendo também o assédio sexual.”

Ainda assim, o assédio moral é tido como o mais frequente dentro da instituição de segurança pública. “Temos um modelo de polícia que acaba colaborando para que isso aconteça.” Como exemplo, ele cita a carreira de investigador: “Quando ele chega ao último nível especial, não tem mais para onde crescer. Um investigador com 20, 25 anos de experiência começa a ser chefiado por um delegado que tem 23, 25 anos de idade, que muitas vezes nem trabalhou antes. Para se sentir superior acaba assediando aquele policial, como já vi muitas vezes: ‘eu que sou o delegado, sou o chefe e eu que mando’. Isso atrapalha muitas vezes até investigações.”

Oito suicídios em Minas Gerais em 2023

Wemerson critica o que classifica como falta de transparência do atual Governo estadual: “A última divulgação de servidores afastados foi de junho 2022, quando 46 estavam licenciados por motivo de doença, sem especificar o tipo.” Sobre os suicídios, ele desconhece tentativas. “Sempre se consumam, porque o policial sabe exatamente onde efetuar o disparo para acabar com sua própria vida. Só este ano tivemos oito suicídios em Minas. Isso é muito preocupante.”

PC garante acompanhar dados de saúde mental

A Polícia Civil de Minas Gerais garante acompanhar os dados sobre saúde mental, eventuais casos de suicídio e outros crimes violentos por meio da Diretoria de Saúde Ocupacional. Dados estatísticos sobre o tema, no entanto, não são divulgados “com o intuito de preservar a família das vítimas, garantir o direito à privacidade, evitar alarmismos e análises descontextualizadas sobre casos individuais que possuem motivações multifatoriais”.
A instituição destaca ter inaugurado em 10 de novembro a sede do Centro Biopsicossocial, no Hospital da Polícia Civil (HPC), em Belo Horizonte, com serviços de atenção integral à saúde, voltados ao bem-estar físico, mental e social dos servidores e de seus dependentes. Além disso, realiza campanhas, como o Janeiro Branco e o Setembro Amarelo, com enfoque na prevenção ao suicídio e à promoção de condições psicológicas mais saudáveis.

“Também por meio do Hospital da Polícia Civil, a instituição presta atendimento psicológico clínico, em sessões presenciais e por teleconsulta, para servidores da ativa, aposentados e dependentes, da capital e do interior. A unidade dispõe, ainda, de plantão psicológico, com escuta especializada, sem necessidade de agendamento. Os interessados podem entrar em contato pelo WhatsApp (31) 99807-9670”, finaliza, por meio de nota.

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