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Famílias buscam inclusão de estudantes com superdotação em JF

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Potencial intelectual acima da média, habilidades para as artes e capacidade de fala avançada são alguns dos aspectos que definem crianças superdotadas. O último Censo Escolar divulgado em 2022 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostrou que, em Juiz de Fora, havia pelo menos 28 alunos com altas habilidades/superdotação matriculados em escolas na cidade. Geralmente, a superdotação entra em pauta quando algum aluno se destaca academicamente, porém, ela pode estar presente em diferentes campos do saber. Apesar disso, o assunto ainda é desconhecido por parte da população e, na cidade, mães de crianças com altas habilidades relatam que o desconhecimento sobre a capacidade por parte da sociedade como um todo tem interferido no desenvolvimento desses alunos.

Aos três anos de idade, Erick já sabia dizer o nome de todos os planetas. Aos quatro, decorou as placas de trânsito. Esses são apenas uns exemplos do que o menino, que hoje está com 10 anos, conseguia fazer ainda bebê. De acordo com sua mãe, Flávia Almeida, Erick sempre teve um desenvolvimento rápido e aprende as coisas por conta própria. A família só descobriu a superdotação no início de 2020, quando ele estava com 6 anos. Entretanto, o processo foi e continua sendo marcado pelo desconhecimento sobre a superdotação por parte de profissionais da área da educação e também da saúde, segundo relata.

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Conforme Flávia, quando o menino começou os estudos escolares, surgiram algumas questões envolvendo a adaptação nas instituições de ensino. Sempre agitado, o pequeno chegou a se consultar com neurologistas e outros profissionais da saúde, que informaram que ele era apenas muito saudável e precisava, por exemplo, de atividade física. Pouco antes da pandemia, uma colega de Flávia atentou para o fato de que ele poderia ter superdotação, o que levou a família a buscar um atendimento especializado com uma neuropsicóloga, que confirmou as altas habilidades para artes, verbal e intelectual.

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“Os profissionais têm desconhecimento em relação às altas habilidades. O ideal seria que os professores já tivessem essa bagagem e conhecimento para identificar os alunos com altas habilidades, mas eles não têm. Uma vez que a profissional de fora identificou, nós levamos o relatório para a escola, mas eles também não souberam lidar.”

Erick já passou por oito escolas, entre públicas e particulares. Ele chegou a estudar em uma escola municipal e conseguiu passar pelo Centro de Atendimento Educacional Especializado (CAEE) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), período que, segundo Flávia, foi benéfico para o garoto. Porém, durante a pandemia, ele passou a estudar em uma escola particular e acabou perdendo o atendimento especializado.

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“Não quero criar um filho para ser o primeiro lugar na faculdade, por exemplo, não estou criando um vestibulando como troféu. O que quero é ajuda dentro do que ele precisa para desenvolver processos emocionais”, relata Flávia. “Quero que seja um ser humano tranquilo, em paz, com equilíbrio mental e emocional, e que consiga viver na sociedade e se sinta bem e incluído.”

Plano de Desenvolvimento Individual

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Conforme lembrado pela mãe de Erick, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação do Brasil prevê que alunos especiais, como é o caso daqueles com superdotação, tenham um plano de desenvolvimento individual (PDI). Tal material auxiliaria o aluno no processo de aprendizagem, focando em seu potencial e em suas necessidades educacionais. Entretanto, de acordo com Flávia, mesmo com a legislação e orientações da profissional de saúde que identificou as altas habilidades do Erick, ainda há dificuldades para conseguir esse atendimento especializado.

“A educação e desenvolvimento dos alunos com altas habilidades acontece na sala de aula. Eles aprendem diferente, então é necessário ter uma motivação diferente. Se em sala de aula não houver motivação e dinâmica diferente, mais prática, objetiva e estimulante, não vai funcionar nem para o aluno, nem pra escola”, aponta.

Facilidade em aprender

O desenvolvimento de habilidades desde muito cedo e a facilidade em aprender coisas novas são algumas das características das pessoas com superdotação. Por outro lado, a dificuldade em encontrar espaços de educação que trabalhem este potencial também tem se mostrado comum. A mãe de um menino de 10 anos com superdotação, que preferiu não ter a sua identidade e a do filho reveladas, relatou à Tribuna que há falta de compreensão não só por parte de instituições de ensino, mas da comunidade de uma forma geral.

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Neste caso, a família mudou para Juiz de Fora quando o menino tinha 3 anos. Conforme a mãe, ele começou a falar muito cedo e, quando estava no berçário, precisou ser acelerado para o maternal porque enquanto as outras crianças ainda diziam as primeiras palavras, ele já formulava frases. Ainda segundo relata, ele não possui uma habilidade específica, apenas maior facilidade em aprender aquilo que é do seu interesse.

“Ele não é aquela criança que vai aparecer em um programa falando ‘aquele pequeno gênio’. Ele não é assim, esse estereótipo dessa figura famosa ele não tem, pelo contrário, se ele não for bem atendido na necessidade dele, que ele tem uma necessidade especial de estimulação cerebral, ele vai começar a bagunçar na aula.”

Por conta disso, a criança já passou por situações desagradáveis em instituições de ensino, o que preocupa a família quanto à sua saúde mental. “É uma criança emocionalmente sensível e absorve tudo com mais facilidade, tanto as informações, quanto também os sentimentos dos outros”, conta. “As famílias (das crianças superdotadas) lutam por esse conhecimento e para serem assistidas porque não basta a escola ter uma sala de recurso, ter um plano educacional digital especializado para aquele aluno, se a própria comunidade escolar não reconhece aquela condição da criança.”

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Érick, de 10 anos, foi identificado com altas habilidades em 2020, e tem encontrado acolhimento em projeto artístico-cultural (Foto: Leonardo Costa)

Mobilização entre mães

Pensando na invisibilidade e no desconhecimento da sociedade em relação à superdotação, a supervisora pedagoga Marcileia Ribeiro iniciou uma mobilização entre as mães de crianças com altas habilidades em 2020, ao criar um grupo para promover palestras e rodas de conversas. A iniciativa partiu após uma psicóloga identificar altas habilidades em seu filho, Thiago, hoje com 15 anos de idade. Conforme Marcileia, o processo para esse reconhecimento foi demorado pela falta de informação sobre o assunto. Como profissional da área da educação, a busca por se inteirar em relação à superdotação se tornou ainda mais necessária.

“Existe um buraco muito grande na questão da visibilidade desses meninos. Quando se chega na escola, não conseguimos que a política pública, que já existe, possa colaborar com esses alunos porque, primeiro, não tem entendimento e, segundo, não se tem recurso para que isso realmente seja desenvolvido”, diz. “É preciso que a política pública saia do papel e venha para a realidade da escola.”

Para isso, Marcileia aponta a necessidade de se falar mais sobre a superdotação, a fim de mobilizar profissionais e mostrar as possibilidades de direito educacional que essas crianças possuem. Como exemplo, existe o avanço escolar, como Marcileia conseguiu para o seu filho, que adiantou o ano escolar duas vezes e, hoje, cursa o 3º ano do Ensino Médio tendo 15 anos de idade. Além disso, há também a suplementação curricular para proporcionar novas oportunidades e incentivar esses alunos.

“Muitas vezes, os alunos com altas habilidades sabem até mais do que os professores que estão na frente, então isso de certa forma causa uma dor, e essa dor, muitas vezes, não é compreendida pela família, não é compreendida pela escola, acham que às vezes é só um capricho ou que são problemas psicológicos”, aponta Marcileia. “Só que não é assim. Pela legislação educacional, os alunos com altas habilidades/superdotação têm direito a um Plano de Desenvolvimento Individual, para dar o suporte para esses alunos desenvolverem seus potenciais e seus talentos.”

Especialista reforça a necessidade de políticas públicas

Apesar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação prever orientações para os alunos com altas habilidades/superdotação, a possibilidade de oferecer enriquecimento curricular e avanço de escolarização ainda é um tabu no contexto escolar, de acordo com o professor e pesquisador do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, Emerson Duarte. Conforme o especialista, cuja pesquisa de doutorado em psicologia foi voltada para as altas habilidades, esta questão começa na base curricular dos professores, que, normalmente, não contempla a formação em altas habilidades.

“É o grupo de alunos da educação especial, porque eles demandam metodologia e processo de avaliação diferenciada, com ideia do enriquecimento e do avanço. Mas os professores não têm essa formação: muito mal em deficiência, muito mal em autismo e nada em altas habilidades”, diz.

Para o pesquisador, faltam políticas públicas para o atendimento a essas crianças e também processos de identificação formal. Em uma pesquisa desenvolvida com estudantes da Escola Municipal Gabriel Gonçalves, no Bairro Ipiranga, Duarte buscou oferecer oportunidade para o desenvolvimento de talentos dos estudantes da instituição e levantar discussões sobre as altas habilidades no contexto da rede municipal, onde atua como professor de educação física. A ideia foi disponibilizar dispositivos para que os professores identificassem os alunos que demonstrassem desempenho diferente dos demais.

Isso foi feito através de um questionário proposto pela pesquisadora Zenita Guenther, referência nos estudos de educação especial para superdotados. A partir dessa ferramenta, Duarte chegou a 25 alunos de dez turmas, que se destacavam em algum conteúdo. Esses estudantes foram convidados a visitar o Centro Universitário Estácio Juiz de Fora para conhecer laboratórios de diferentes áreas do conhecimento, como de fisioterapia, odontologia, engenharias, educação física e comunicação.

“Eu não queria o ‘top do top’, o maior aluno da escola. O que quisemos foi oferecer oportunidades para esses alunos que, muitas vezes, não conhecem isso”, conta. “A ideia foi aproveitar o espaço e as estruturas da Estácio. Não foram apenas os indicados pelos professores. Quem quisesse ir e a família autorizou, também foi, porque queremos dar oportunidade pra todo mundo.” Conforme o pesquisador, essa fase do estudo buscou motivar os estudantes, considerando que o processo de escolarização pode ser, muitas vezes, longo e difícil para que as crianças pensem em uma meta futura.

Como ressaltado por Duarte, muitas vezes, a identificação das altas habilidades acontece apenas em alunos que se sobressaem na área acadêmica, porém, elas também se encontram em outros âmbitos, como nas artes, na música, na educação física e na capacidade motora.

“Nós achamos que as altas habilidades vão aparecer pela nota da prova. Muitas vezes os alunos mascaram a nota da prova para ficar meio que escondido no processo, ou faz de qualquer jeito. Mas se você fizer um processo formal, você vai conseguir chegar neles, independente da nota”, explica. “Vão ser raros os que vão ter domínio do conteúdo de uma forma mais ampla. Alguns vão se destacar, por exemplo, no desenho, nas comunicações, na hora de falar ou de se argumentar.”

Acolhimento nas artes

Apaixonado por música e com o sonho de aprender a tocar bateria, Erick, filho da Flávia, encontrou no programa Gente em Primeiro Lugar, da PJF, um espaço onde se expressar artisticamente. Lá, ele participa das aulas de grafite e de percussão. A iniciativa tem se demonstrado um espaço de acolhimento não só para o garoto, mas para todos que levam consigo suas especificidades, de acordo com o coordenador-geral do Gente em Primeiro Lugar, Fernando Valério. Conforme o responsável pelo programa, tem ocorrido um aumento significativo de alunos com atendimento especial, como superdotação e pessoas com deficiências.

“Nós estamos em processo de formação e entendimento para que torne este lugar cada vez mais acolhedor”, explica. “Nós entendemos que, para este processo de acolhimento, é preciso estudo, embasamento, formação continuada, então quando pensamos em um processo educativo cultural, precisamos entender que programa precisa se preparar.”

Como destaca Valério, o programa, por si só, já é diverso, considerando que podem participar pessoas a partir de 6 anos, sem limite máximo de idade. Desta forma, durante as aulas, a iniciativa procura promover um espaço harmonioso, de maneira que os alunos conheçam as diferenças, entendam as individualidades e respeitem uns aos outros.

“Para nós, receber alunos como o Erick é, sobretudo, entender que o programa está cumprindo com sua missão de colocar gente em primeiro lugar, mas também de fazer jus ao direito ao acesso de cultura pensando na especificidade de cada um”, aponta o coordenador-geral.

O programa Gente em Primeiro Lugar oferece oficinas culturais gratuitas no Centro Cultural Dnar Rocha (Rua Mariano Procópio 973 Mariano Procópio). As aulas são de capoeira, artesanato, grafite, teatro, balé, samba, danças populares, danças urbanas, violão, percussão, teclado e novas tecnologias. O programa é gerido pela Funalfa e tem prestação de serviços da Associação Municipal de Apoio Comunitário (Amac).

Famílias podem solicitar atendimento especializado na rede pública

A nível municipal, a Secretaria de Educação (SE) da PJF mantém os Centros de Atendimento Educacional Especializado (CAEE), que atendem a alunos com superdotação, contribuindo na suplementação do ensino. De acordo com a pasta, atualmente, a rede municipal tem nove estudantes com a possibilidade de altas habilidades.

Conforme o órgão, o parecer para altas habilidades/superdotação deve ser feito por psicólogos e/ou equipe multidisciplinar. Com o documento em mãos, a família pode apresentá-lo no ato da matrícula na rede municipal para garantir o encaminhamento ao CAEE ou o AEE da escola.

“São utilizados jogos didáticos e pedagógicos que desafiam e ajudam a desenvolver as habilidades do estudante e estratégias de ensino compartilhadas com os professores das salas de aula onde o estudante está matriculado”, explica a SE sobre os recursos utilizados pelo CAEE no atendimento aos alunos com superdotação.

Rede estadual

Na rede estadual, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) informou que o atendimento aos estudantes com altas habilidades/superdotação faz parte da política de Educação Especial da pasta. “A assistência a esses alunos é realizada nas salas de recursos, para suplementar a aprendizagem, e em sala de aula, com estratégias de ensino-aprendizagem adaptadas às necessidades do estudante. Essa suplementação é realizada por meio de estratégias pedagógicas elaboradas de acordo com as áreas de interesse do aluno”, informou.

Além disso, a SEE aponta que conta com Centros de Referência em Educação Especial Inclusiva (CREIs), responsáveis pela formação dos professores por meio de cursos e orientações sobre estratégias pedagógicas que possam ser utilizadas dentro da sala de aula. Em Juiz de Fora, apenas um aluno matriculado na rede estadual de ensino foi identificado com superdotação, enquanto em todo o estado, são 163 estudantes. “Todas as escolas estaduais comuns são inclusivas e podem receber esses estudantes”, afirma a pasta.

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