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Professor venezuelano refugiado leciona na UFJF: ‘A violência não discrimina’

professor gonzalez felipe couri CAPA
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Rafael Alberto González González começou a lecionar nos departamentos de ciências sociais da Universidad Pedagógica Experimental Libertador, em 2008, e da Universidade de Carabobo, em 2011. Em ambas, exerceu a função de professor até a última semana que viveu na Venezuela, em 2019, após aguentar os tempos “mais violentos e difíceis” também nos dois anos anteriores. Cinco anos depois, ainda não sabe se os vínculos com as instituições estão mantidos. Até outubro de 2023, quando se mudou para Juiz de Fora – e para a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) -, e fez o doutorado na Universidade Federal da Bahia.

González afirma que uma expressão da crise venezuelana – que considera, além de política, social, econômica, institucional e até mesmo uma complexa crise humanitária – é o próprio estado das universidades públicas: “Elas foram muito atuantes nesses processos de questionamento e crítica ao governo, então sofreram muito nesses anos, em termo de orçamento, conflito com os organismos de segurança, com estudantes e professores detidos. Nesse contexto de violência generalizada, protesto e tensões desses anos, muita gente começou a sair”.

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Professor González lecionou em duas universidades da Venezuela, na Federal da Bahia e agora na UFJF (Foto: Felipe Couri)

A maioria sai por terra, pelas fronteiras, como a de Pacaraima, em Roraima. González vendeu seu carro para conseguir comprar uma passagem de avião, já que muitas companhias aéreas deixaram de prestar serviços no país nos últimos anos, diminuindo a oferta e encarecendo os bilhetes.

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Os amigos dele estão todos espalhados pela América Latina e Estados Unidos, “um reflexo dessa migração forçada”. Além deles, deixou no país natal os próprios trabalhos, os grupos de pesquisa e foi “tirado de um tecido social, das suas relações”. O que mais sente falta é da família – o pai, a mãe e as irmãs -, principalmente os sobrinhos, “porque estão crescendo”. Quanto a isso, não vê indícios de que a situação do país possa melhorar em curto prazo. Por ser refugiado, não pode retornar, e por ser caro, a família também não poderá vir a seu encontro.

O professor e os demônios da violência

“Vi professores detidos, grupos de segurança do Estado e forças especiais entrando na Universidade para deter e levar presos estudantes. Eu vivi situações nas quais a Universidade estava protestando e chegavam grupos de choque para violentar o pessoal, todo mundo tinha que sair correndo para se esconder. Não me contaram isso, eu vivi, nas universidades onde eu trabalhava, essa sensação de temor, de medo de dizer, de protestar, de inclusive ministrar uma aula e ter cuidado com o que ia dizer. Faz parte de como a crise tensionava cada uma das nossas compreensões de mundo”, relembra.

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O professor recomenda que os erros da Venezuela, mas também os cometidos pelo Brasil no passado, sirvam como aprendizados político e cidadão: “A gente não tem que chegar a situações de violência, ela nunca é o caminho. Quando se desatam os demônios da violência, ela não discrimina, todos somos vítimas”.

Brasil tem ‘musculatura democrática’

Embora cite falhas e leituras equivocadas nos dois casos, para ele fica claro que o Brasil é um país democrático, com instituições que funcionam, pluralidade política e garantia do Estado de Direito. “Ainda que tenha vivido um passado recente de bastante polarização, é um país que respira a democracia e eu não a vejo ameaçada. Muito pelo contrário, valorizo muito as possibilidades de viver o espaço público no Brasil, toda essa luta contra as fake news, isso faz parte de uma musculatura democrática”, analisa o estudioso, de forma totalmente diferente da Venezuela. “Não por acaso estou aqui”.

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Ele rechaça as análises de que o governo venezuelano tenha uma ideologia política ou socioeconômica. “O processo se desvirtuou. A elite que finalmente se instalou na Venezuela deixou para trás o projeto, tentou modificar a Constituição e virou uma pragmática da política que não tem ideologia além da manutenção do poder. Então, não utilizo esses qualificativos como comunista, quando falo da ditadura de Maduro, porque entendo que essa elite não tem discurso. É simplesmente essa aliança com as forças armadas que sustenta a manutenção no poder”, desmistifica o mestre em Ensino de História e doutor em Educação.

Educação latino-americana carece de integração

O novo integrante do corpo docente da UFJF também comparou o panorama das universidades em que trabalhou. Para ele, um dos problemas dos países do Sul Global é olhar pouco uns para os outros. Boa parte do próprio conhecimento sobre os teóricos e pensadores com que trabalha foi adquirida após chegar aqui. “As universidades venezuelanas não têm um forte contato com a Academia brasileira, estamos com um olhar mais para o Norte, Estados Unidos, Europa, e fazendo poucas políticas de vizinhança”, pondera.

Ainda que tenha reconhecido, inicialmente, a necessidade de um investimento não só brasileiro, como também dos países vizinhos, para consolidar a educação, González enxerga uma iniciativa. Na Venezuela, reconhecia uma perseguição política com as universidades, por serem “uns dos principais espaços para se pensar possibilidades de futuro, de país”, gerando falta de recursos e prejuízo em programas de fomento, por exemplo.

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Juiz de Fora se destaca no acolhimento

González garante que nunca sofreu nenhum preconceito e se sentiu muito acolhido no Brasil, mesmo que, “por ser venezuelano, sempre teve discussões, conversas, tensões”. “Mas, para mim, isso faz parte, precisamente, do que eu tenho saudade da Venezuela. Porque, no Brasil, existe um espaço público que garante isso, que você possa discernir, questionar.”

“Meu psicológico estava afetado com a crise da qual eu estava saindo, mas o Brasil me ajudou a olhar com calma para as coisas, pensar e valorizar o que eu acho importante: a tolerância, a democracia, e isso faz parte das minhas lutas”, relata o pesquisador, que chegou a Juiz de Fora pelo trabalho da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), um projeto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) com universidades brasileiras.

Ele acha a cidade “espetacular”, gosta das pessoas, do valor que tem a Universidade para o município e da “pegada patrimonial”. Além disso, percebe o fluxo de venezuelanos cada vez maior, nas escolas e no mercado de trabalho, acompanhado de uma preocupação das instituições: “Tem toda uma política para oferecer as melhores condições para que nós, que viemos de uma situação de crise, de emergência humanitária, que estamos em situação de mobilidade, tenhamos a possibilidade de refazer nossas vidas. Juiz de Fora é uma dessas cidades acolhedoras que aparecem no mapa do Brasil”.

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