A possibilidade de adoção de praças pela população em Juiz de Fora foi instituída pela lei complementar nº89, de fevereiro de 2019. A norma permite que pessoas interessadas utilizem os espaços públicos de forma não onerosa e onerosa com exploração comercial, por meio da participação em editais. Apesar de a lei já estar em vigência, o dispositivo ainda é vago no que diz respeito à sua aplicação. Na tentativa de solucionar a questão, para que o projeto seja posto em prática, as Secretarias de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo e Planejamento, juntamente com a Empresa Municipal de Pavimentação e Urbanização (Empav), firmaram parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), cujo trabalho tem sido elaborar um diagnóstico que revele quais as demandas da população para cada praça de Juiz de Fora. Os trabalhos estão em fase inicial, e ainda não é possível indicar quando os espaços receberão os projetos de adoção, mas estudantes de faculdades de Arquitetura e Urbanismo da cidade já se preparam para iniciar a abordagem à população.
Um dos principais objetivos da norma é incentivar o envolvimento das pessoas com as praças, de modo que grupos organizados possam elaborar projetos de utilização dos espaços, que possam atingir diversas faixas etárias e dialoguem com as necessidades e potencialidades de cada localidade. Com a lei de adoção, a ideia é possibilitar que parcerias público e/ou privadas possam atuar na manutenção, execução e exploração de parte das áreas livres públicas de lazer da cidade, especialmente as praças.
É o que explica a vice-presidente do IAB, Aline Cruz. Ela diz que o IAB deve contribuir no processo de tradução da legislação de adoção de praças em editais específicos para cada um desses espaços, “especialmente no caso da adoção onerosa, que pressupõe maior intervenção no espaço. Entendendo sua função como promotor da valorização do arquiteto e urbanista na construção da cidade, o instituto optou por convidar as faculdades de Arquitetura e Urbanismo a contribuir para essa tarefa, auxiliando no fornecimento de dados técnicos sobre o perfil de cada praça e seus usuários. Há bastante material sendo produzido no âmbito acadêmico que pode e deve ser aproveitado pelo poder público, unindo os esforços em prol da melhoria da vida urbana. O papel do instituto neste processo é de um mediador, facilitando a comunicação entre a administração pública e o universo acadêmico.”
Sendo assim, os estudantes vão atuar para realizar uma espécie de diagnóstico urbano, que envolve o levantamento de dados quantitativos e qualitativos sobre o recorte analisado. “Qualquer intervenção física numa praça altera sua dinâmica de uso e, por isso, deve ser acompanhada e orientada para o desejo da população que dela usufrui, e em acordo com os potenciais e problemas específicos deste espaço. No caso das praças, será feita uma abordagem direta com os usuários para melhor compreender e atender as demandas desta população. Neste sentido há diversas ferramentas que podem ser usadas para ampliar a participação da comunidade nas tomadas de decisão sobre como usar o espaço da praça. Aqui entra também a participação das faculdades na elaboração e aplicação desta ferramenta”.
Editais
Ainda não há como prever em quanto tempo os projetos elaborados pela população começarão a ser implantados. Antes, é preciso pensar o protocolo de avaliação que será aplicado pelas diferentes faculdades nos diferentes espaços. A elaboração do edital para adoção das praças, conforme a vice-presidente do IAB, é responsabilidade da Prefeitura. As instituições de ensino superior devem fornecer os dados, objetivos e subjetivos, que devem servir de embasamento para a elaboração dos editais. “Tais editais tratarão de regulamentar as formas em que se dará a adoção onerosa das praças, garantindo o interesse público e a adequabilidade dos projetos ao objeto do edital”, explica Aline.
Caminhos já existentes
A cidade já conta com algumas iniciativas isoladas, que acontecem em algumas localidades e cujas propostas é realizar algo que se encaixe nas dinâmicas daquele lugar. Um dos projetos que poderá vir a se tornar uma parceria de adoção de praças é o “One Two”, realizado no bairro Ipiranga, na Zona Sul, por meio do qual são oferecidas aulas gratuitas de futsal aos meninos do bairro há, pelo menos, 15 anos.
O idealizador do projeto, o cozinheiro José Tarcísio Neves, incluiu na sua rotina acordar bem cedo aos sábados. Ele precisa estar com tudo pronto, porque as atividades do “One Two” começam pontualmente às 8h. Ele vai até a praça do bairro Ipiranga, onde começa a organizar os times de futsal na quadra. As partidas se encerram quando um dos times marca dois gols ou quando completam cinco minutos. Os times vão se revezando e mais meninos vão chegando ao longo da manhã.
Por volta das 10h, os garotos com mais de 10 anos começam a chegar. Os mais novos são liberados para que as outras faixas etárias também tenham sua oportunidade. As atividades se encerram ao meio-dia. “É muito gratificante. Tem sido muito bacana. Fizemos um intervalo, ficamos um tempo sem funcionar. Mas em maio de 2018, junto com toda a população, nós ajudamos a pintar a praça toda em parceria com a Polícia Militar. Foi quando os policiais perguntaram como poderíamos contribuir e eu retomei o projeto”, conta o idealizador.
Em todo esse tempo de dedicação aos jogos, Tarcísio testemunhou muitas histórias e fez parte da vida de muita gente. “Na minha ótica, deu muito certo. Todos eles me respeitam muito. Eu vejo alguns hoje que já têm família. Eles passam, se lembram, cumprimentam. Isso motiva muito.”
A utopia de Tarcísio é que todo mundo faça algo pelo lugar em que vive. “Não interessa em que segmento, pode ser no futebol, na capoeira, no vôlei, qualquer modalidade. Quando a gente se doa, dedica o nosso tempo, isso faz muito bem e melhora muito as relações e o lugar como um todo.”
Escuta ativa no ‘One Two’
As dificuldades pelas quais essas crianças e adolescentes passam acabam chegando de alguma forma à quadra do One Two. “No geral, a molecada que passa pelo projeto é muito boa. Vez ou outra chega um ou outro mais revoltado. Pensamos no que ele deve passar, relevamos e eles se tornam nossos amigos. Nesse tempo, aprendemos a conversar conforme a personalidade deles. Com alguns é preciso ser mais enérgico. Com outros não adianta, é preciso sentar e conversar de uma maneira mais tranquila.”
O idealizador, que hoje conta com a ajuda dos filhos Leandro e Artur e do amigo Jairo para levar a atividade, percebeu a necessidade de dar voz aos meninos do bairro. Encontrou, na paixão pelo futebol, o lugar do diálogo. “Eles não querem nem exigem muita coisa. Eles querem o papo, a presença, a paciência. Eu gostaria muito que as pessoas entendessem isso. O jovem da periferia se sente deixado de lado pelo poder público. A partir do momento que você se aproxima e escuta o que ele tem a dizer, ele passa a te respeitar, passa a ser seu amigo. Há uma barreira que parte da gente. Se começamos a chegar perto, vemos tem muita coisas que não precisa ser no tapa, na violência, no grito. Eles se tornam mais maleáveis. Enquanto tiver moleque interessado, eu estou aqui por ele.”
Ele pede que quem puder os ouvir, ouça. “Não vamos conseguir mudar o mundo todo, mas o que conseguirmos já é muito importante. Temos que manter essa linha, buscar flexibilidade para ouvir todo mundo e não olhar as pessoas com olhos tão pesados.”
Rockgol
O nome do projeto de Tarcísio carrega uma inquietação e uma paixão. Ele percebia que alguns dos meninos chegavam escutando pequenos rádios, que tocavam letras com conteúdos inadequados para a idade. “Comecei a levar um rádio meu, com músicas mais leves. Coloco no cantinho. Eles não precisam parar para ouvir, mas fica lá no cantinho tocando.”
Fã dos Beatles, Tarcísio viu no quarteto de Liverpool uma forma de trabalhar outras referências que ele não ouvia entre os participantes da atividade na praça do Ipiranga. “Sou muito fã dos Beatles, levo (o rádio) e junto minhas duas paixões: o futebol e a música. Se eu conseguir ensinar a eles um pouco sobre o esporte e sobre aqueles rapazes, fico satisfeito. A minha intenção é essa, que eles tenham caráter e sigam suas vidas.”
O One Two veio de uma conversa entre moradores do bairro. “Eu vi um garoto falando para o outro: ‘toca rápido. Um, dois, um dois! Vamos, one, two’, enquanto eles jogavam videogame. Como a ideia era fazer os meninos entenderem que não era para prender a bola, que era para pegar e tocar, ficou One Two”, conta, satisfeito.