A Polícia Militar de Minas Gerais enviou, pela primeira vez, um militar para atuar na Missão de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Sudão. Devastado por conflitos internos, pobreza extrema, doenças e insalubridade, o país africano recebe auxílio de outras nações para lidar com o problema. O selecionado foi o tenente Gabriel Felipe Pereira, de Juiz de Fora, que ficou no país durante um ano e retornou ao Brasil na última semana. Ele foi também o primeiro brasileiro a participar da missão no Sudão, juntamente com policiais militares dos estados do Paraná e do Rio Grande do Norte.
O oficial, que atuou na cidade El Fasher, esteve no local em um momento histórico: a queda de um governo ditatorial, que esteve no poder nas últimas três décadas. A mudança foi precedida por manifestações violentas, sendo que o tenente Gabriel Felipe foi o responsável por capacitar a polícia sudanesa em assuntos relacionados à ordem pública e operações de paz.
A Missão das Nações Unidas no Sudão (Unamid) tem como objetivo contribuir para a implementação do processo de paz no país. O Sudão, que antes da separação do Sudão do Sul possuía o maior território na África, enfrentou mais de 20 anos de guerra civil. O conflito que devastou a nação deixou mais de dois milhões de mortos e cerca de quatro milhões de refugiados, num cenário de estagnação socioeconômica.
Para ser convocado em 2019, o tenente Gabriel Felipe começou sua preparação em abril de 2016, sendo aprovado em uma seletiva em Porto Alegre (RS). Em dezembro do mesmo ano, foi selecionado para um estágio de preparação para missões de paz no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, no Rio de Janeiro. “Foram quatro semanas nesse estágio, junto com policiais de outros estados e militares das Forças Armadas. Em seguida, fiz outros cursos da ONU até ser convidado para a missão. Viajei para o Sudão em janeiro de 2019, onde fiquei pelo período de um ano.”
Tenente atua contra pobreza extrema em campos de refugiados
Em solo africano, tenente Gabriel Felipe passou por um período de adaptação que durou cerca de duas semanas. Após esse tempo, o policial foi enviado para a cidade de Zalingei, onde foi responsável pela realização de patrulhas em campos de refugiados e vilas. “Levantávamos informações sobre os lugares e as carências dos residentes. Foi uma atividade muito bacana, pois víamos resultados. Se uma vila estava, por exemplo, sem água, fazíamos o relatório para órgãos da ONU, que enviavam aquilo que eles estavam necessitando. São locais de uma pobreza extrema. É uma experiência para a vida, um crescimento pessoal. Antes de estar lá, não dá para ter noção da realidade que eles enfrentam, é muito diferente de uma favela no Brasil. As famílias lá vivem em um casa de barro com cerca de cinco metros, e é tudo o que elas têm. Eles fazem uma refeição e não sabem se farão a próxima. Observar esta situação é um enriquecimento enorme, de passar a dar valor a pequenas coisas, à vida, e a conhecer o que é, de fato, precariedade.”
PM ensina operações de paz e ordem pública
Depois deste período, o tenente da Polícia Militar de Juiz de Fora concorreu a uma vaga para a área de treinamento, uma posição estratégica na Unamid. Ele foi selecionado para ser oficial de treinamento da ONU, sendo responsável pela capacitação operacional da polícia sudanesa. Com o lema “Pela paz e pela ordem”, foi ele quem conduziu os treinamentos e cursos de operações de paz, ordem pública e métodos de detenção. “Nosso trabalho é ajudar a aprimorar as condições de policiais e civis, para que, quando a missão terminar, eles tenham condições de caminhar com as próprias pernas. Em Juiz de Fora, como eu já trabalhava na Companhia de Policiamento Especializado, me incumbiram de ministrar os cursos de ordem pública, que incluía conhecimentos sobre controle de distúrbios civis e manifestações e uso de equipamentos menos letais. Coisas básicas para nós, mas que para eles é muito importante. Quando eu fui movimentado para esta seção, em abril, ocorreu um golpe militar com a destituição do presidente Omar Al-Bashir.”
Segundo ele, já estavam ocorrendo protestos pedindo a saída do chefe do poder, mas com o golpe, a população, que queria um governo civil, ficou ainda mais insatisfeita, pois colocaram outro general no controle do país. “Neste momento histórico, o curso de Ordem Pública virou uma necessidade para eles. A polícia sudanesa estava perdida, caminhando em círculos, sem preparo e capacitação alguma. O foco foi treinar estes militares que atuam nas unidades de choque do Sudão, de forma que passassem a atuar de maneira técnica e com respeito aos direitos humanos”, explicou.
Outro curso ministrado pelo policial juiz-forano foi o de Operações de Paz, uma demanda do governo sudanês, que ainda tenta melhorar suas relações externas, buscando capacitação para preencher requisitos para participar da ONU. “Fui nomeado para desenvolver o curso, sua matriz curricular e material. Em dezembro, eu o apliquei na capital do Sudão. Foi o primeiro curso de Operações de Paz da história do Sudão. É muito importante que os policiais tenham estes conhecimentos e também possam replicá-los. É um marco inicial na guinada para o aprimoramento das relações exteriores do país.”
Momentos de isolamento, falta de comida e malária
Depois da queda do general Omar al-Bashir, o novo governo, formado por um conselho militar, e que administrará o Sudão por um período de transição de dois anos, cortou as comunicações no país, no intuito de frear as manifestações. “Na base da ONU, o sinal de internet era por satélite, mas como todos começaram a usar, ficou sobrecarregado. Era impossível falar com a família por telefone, por exemplo. Para carregar um áudio curto de WhatsApp, gastava-se mais de dez minutos. A base chegou a ficar fechada e não podíamos ir para rua. Até que começou a faltar comida e outros itens básicos, já que o país estava parado e o transporte não funcionava. Nos momentos mais críticos, tínhamos que recorrer ao macarrão instantâneo.”
Além da infraestrutura precária do país, havia a preocupação constante com as doenças prevalentes no Sudão, como malária, cólera, febre tifoide e febre amarela. “Colegas que estavam na missão comigo faleceram de malária. Outros ficaram muito doentes e precisaram voltar aos países de origem. Eu não saía do meu quarto durante a noite, já que é neste período que o mosquito que transmite a malária costuma picar. Foi tenso, mas muito bacana ter participado da missão de paz e poder ver o país se livrar de um governo autoritário que se mantinha no poder desde a década de 1980.”
Troca de experiências com outros países
Para o tenente, que após a volta para o Brasil foi transferido para o Comando de Policiamento Especializado em Belo Horizonte, sua estadia de um ano no Sudão tem uma relevante importância para a PM. “Além da questão da representatividade, nunca houve um policial militar Minas Gerais no Sudão. Não é só o Brasil representado, é Minas Gerais. São mais de 100 países que atuaram conosco, e eu consegui adquirir muito conhecimento de outros países. Consegui aprimorar meus conhecimentos, por exemplo, em relação à técnica portuguesa de choque ensinada para a polícia sudanesa. Também pude coletar informações da ONU, sua estrutura administrativa e operacional. Eu coletei essas informações e trouxe para Minas Gerais. O que for bom, podemos aplicar aqui. Com certeza, esses conhecimentos poderão ser utilizados para aprimorar e desenvolver a parte operacional e administrativa da polícia.”