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Cemitério Municipal 160 anos: Tribuna faz visita guiada pelo local

Cemitério municipal
(Foto: Leonardo Costa)
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“Tem alma ali, aqui e pra tudo quanto é lado”, diz Edil Spada, 57 anos, em tom descontraído, enquanto desce o chamado ‘escadão das almas’ que atravessa o Cemitério Municipal da cidade. Todos os dias, faça sol ou chuva, ele sobe ladeiras, abre covas, enterra os mortos, e tampa os túmulos. Coveiro há 32 anos, Edil conduziu uma visita guiada da Tribuna pela necrópole – que completa seus 160 anos neste sábado (2), Dia dos Finados. No local onde vida e morte se encontram, essa é a primeira reportagem de uma série que busca ser o retrato pelos olhos de quem, com as mãos, ajuda as pessoas a retornarem à terra e, pela memória, perpetua suas histórias.

A vivência do cemitério, seja a trabalho ou para visitar entes queridos, leva uma noção de perpetuidade para além de seus jazigos. O que na visão do doutor em História e professor de Patrimônio Cultural e História das Artes, Leandro Graziosi, é um meio de entender significados e costumes funerários. É assim com as histórias contadas por Edil, que ilustram contos populares em um cenário pouco usual, como os que abrigam vestidos de noivas deixados no túmulos de uma ‘quase’ santa, o jazigo da “bruxa”, os alimentos que brotam entre as covas rasas, e outros relatos.

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Não foi à toa que, neste ano, Edil foi contemplado com o Prêmio Amigo do Patrimônio de Juiz de Fora. A homenagem foi uma iniciativa da Prefeitura, através da Funalfa e do Departamento de Memória e Patrimônio Cultural, a fim de dar “reconhecimento aos saberes e narrativas difundidos sobre a memória da cidade e por fazer do Cemitério Municipal um espaço educativo, de fruição cultural e de valorização da memória”. 

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‘A morte é o que a gente tá acostumado’

Enquanto na mitologia grega Carontes era o responsável por guiar as almas pelo mundo dos mortos, Edil perpassa por entre os túmulos como um guia turístico. Nos locais onde não há qualquer placa de identificação – seja por furto ou ausência de revitalização por parte da família – , ele identifica quem foi enterrado por meio da memória. No local, que desde 1864 até hoje já soma mais de 20 mil túmulos e 170 mil pessoas sepultadas de acordo com a Prefeitura de Juiz de Fora, o trabalho do coveiro é também não deixar os mortos povoarem o esquecimento.

O caminho traçado por Edil começa na parte chamada de Cemitério Novo. No local, há personalidades que são conhecidas pela população juiz-forana e também conhecidos do próprio coveiro. “Neste túmulo aqui está um homem com quem trabalhei. Eu passo e sinto saudade, foi gente que me ensinou a trabalhar aqui. Ele, por exemplo, foi meu encarregado”, conta à medida que também acrescenta: “A morte é o que a gente tá acostumado, mas quando é a família, a gente fica triste. Porém, quando a pessoa está aqui, é porque já não tem mais jeito”, finaliza. 

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Outro figura familiar era um homem que sempre passava pelo cemitério e quando via os funcionários trajados com os uniformes, ajudava-os com alguma quantia em dinheiro. Isso durou por algum tempo até ele morrer, em 2005. Algum tempo depois, foram-se outras pessoas da sua família. “Está junto na vida e também na morte. Agora ali é tipo uma casa”, observa Edil sobre a implacabilidade do tempo. Ele mostra covas de pessoas que eram seus conhecidos, amigos de trabalh,  e também a sua própria “Esse aqui é o meu barraco!” exclama, enquanto faz um afago em um túmulo de azulejos pretos, no qual alguns familiares já repousam.

Homenageado com uma das principais Avenidas de Juiz de Fora, Itamar Franco, ex-presidente do Brasil, também está no Cemitério Municipal. Edil conta que choveu muito quando, no sétimo dia após sua morte, as cinzas do politico foram trazidas para Juiz de Fora, local em que permanecem até hoje, no jazigo de sua mãe, Itália Cautiero Franco.

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(Foto: Leonardo Costa)

Entre os túmulos mais visitados, ‘menina Palmira’ e ‘bruxa’

Ao longo do caminho entre as lápides, Edil lembra-se de como era comum muitas pessoas irem aos cemitérios, contar suas histórias, bater papo com os coveiros e visitar os mortos. Mas, conforme ele observa, as visitas – que pareciam uma tradição frequente dos mais velhos – têm diminuído. “Atualmente quase ninguém vem, esse costume não é mantido pelos mais jovens”, diz. Graziosi, professor de Patrimônio Cultural e História das Artes, esclarece que é por meio das diferentes pessoas que convivem nesse espaço que é possível observar e aprender sobre essas lembranças e esquecimentos. 

Mas há, também, aqueles túmulos que costumam ser mais comumente visitados por causa das histórias que carregam. Como o jazigo da menina Palmira, enterrada em 1878, aos 17 anos. Em 2013, uma reportagem do jornalista Mauro Morais, da Tribuna, narrou a origem da crença de que a jovem seria, na verdade, uma santa – fato até hoje não reconhecido pela Arquidiocese de Juiz de Fora. Segundo a lenda, após muito tempo do seu sepultamento, o túmulo foi aberto e ela ainda permanecia de “carne e osso”. 

“Seu Edil” conta que é devoto, e às vezes vai visitar o túmulo. “Uma mulher queria pintar e comprou as tintas”, conta. Apesar de não ser parte do seu serviço, ele se prontificou a pintar. O trabalho de conservação também é feito por ele. O local, recheado de placas de agradecimento pelas graças concedidas, tem as pedras lavadas e reposicionadas. “Uma vez uma mulher veio aqui vestida de noiva e, quando estava ao lado do túmulo, ela retirou o vestido e o colocou por cima. Por um tempo a gente deixa, mas depois tem que jogar fora”, relata ele sobre já ter visto um pouco de tudo ali, como é o “caso da bruxa”.

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“Tinha uma moça que vinha para o cemitério e andava montada em uma vassoura. Certa vez, acreditando que conseguiria voar ela, subiu em um túmulo e pulou!”. Ele conta que, como o esperado, a mulher acabou caindo. A história foi contada a ele por outro coveiro, logo quando começou a trabalhar no Municipal. As visitas dela eram frequentes, e seu jazigo ficava próximo a um túmulo que ele acredita ter sido da mãe dela. O local, ponto de encontro entre góticos, tem uma estrutura amorfa, e na cabeceira há o tronco grosso de uma árvore.

Parte da extremidade do lugar conta com parafina de velas coloridas já queimadas e também um terço pendurado. “Aquelas pessoas que fazem festa na cidade e são cheios de tatuagem gostam de vir aqui”, se refere ele aos góticos e o que acredita-se que seja o Festival de Bandas Novas, já conhecido no meio underground de Juiz de Fora. Os shows costumam ocorrer na Praça Antônio Carlos, que é próximo ao local.

(Foto: Leonardo Costa)

O que significam ‘os anjinhos’ do cemitério

“Olha como que ele está, ‘tadinho’!”, diz Edil, enquanto passa a mão pela cabeça de um anjo há muito tempo sem restauração, calejado pelo tempo. Os anjos de mármore ou concreto costumavam estar presentes nos jazigos de crianças, na parte mais nobre do cemitério – aquela construída em concreto. Esses túmulos são caracteristicamente menores, e ficam entre os demais. Contudo, na parte alta e de terra do cemitério, há uma ala que Edil chama de “os anjinhos”. 

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O trajeto começa com a subida de um morro íngreme, seguido de outro. O local era de terra, mas foi asfaltado na gestão do ex-prefeito Custódio Mattos. A dificuldade de carregar um carirnho se divide a cerca de dez mãos, conforme conta Edil. “A gente sobe isso aqui com dificuldade. Um vereador que se reelegeu combinou de comprar um carrinho para nós, agora estamos esperando.”

No caminho, há vários marcadores de concreto com números, que simbolizam lápides de crianças de até dois anos e meio de idade, “os anjinhos”. O acesso se dá por uma ladeira destes marcadores onde, devido à estrutura, não é permitido concretar. “Aqui é terra para enterrar terra na terra”, define o coveiro. Para ir até o local, os pais costumam carregar o caixão “no braço”. 

“Quando eu entrei, meu posto era ficar na capina. Mas nos enterros, eu me escondia atrás de túmulo que era para ninguém me ver. Até que o encarregado viu e disse: ‘a partir de semana que vem, você vai ficar com as covas’.'”, relata Edil. Então, no seu segundo dia de trabalho enterrando gente, ele conta que teve que abrir um desses espaços para “os anjinhos”. “Aconteceu em 1992, eu chorava mais que a família. Quando tem que enterrar alguém aqui, a gente já abre mais três covas”.

Cemitério para amputações, homem enterrado em pé e sacrifícios de animais

Acima de outro morro, local alto e mais isolado, Edil acena para onde seria uma ala não muito comentada sobre os cemitérios. “Ali as pessoas enterram as partes do corpo que foram amputadas ou removidas em cirurgia. Normalmente, colocam em uma caixa que vai ser enterrada. Não há caixão, nem visitas”, explica, ao virar em uma curva e chegar no “Cruzeiro das Almas”. O lugar, conforme o coveiro explica, é um local onde ele vê sacrifícios de animais, ou parte deles. “Sapo com a boca costurada, coração de boi com uma adaga fincada dentro…A gente tem que vir e limpar, colocar isso em um saco e jogar fora”, conta.

Ao descer do local, ele mostra um túmulo em que um homem foi sepultado em pé. Enquanto na Antiguidade isso significava um prestígio entre os católicos, no local o motivo é bem mais simples. “Ele era muito alto, mais de dois metros de altura, e teria que fazer um anexo ao túmulo ou enterrar de pé”. Ao lado do jazigo, há uma cova rasa onde brota uma couve, que Edil pega e oferece em tom brincalhão – ele já havia contado antes que o cemitério tem sido local de crescimento de mandioca, batata-doce, banana, abóbora, abacate e mamão. 

Embora há quem coma frutos do cemitério, o professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Luiz Menini Neto, não recomenda. “Não é possível saber de antemão o que tem de produto químico no solo. Ele ou a água podem ser contaminados por produtos utilizados em embalsamamento dos cadáveres e que poderiam ser liberados no solo depois de um tempo, absorvidos e incorporados pelas plantas – embora não seja muito comum”, explica. 

Ele também desmistifica a crença popular de que o solo de cemitério é mais fértil. “Não necessariamente. Na verdade, será tão fértil quanto o é o solo típico da região, dependendo do nível de manutenção que ele receba”, explica o professor. O que poderia transformar o lugar em ambiente para tantos frutos é justamente a solitude própria desses ambientes, onde diversas espécies de plantas podem crescer sem serem perturbadas.

Ainda durante a descida, uma vez que o trajeto foi até uma das partes mais altas do cemitério, Edil chama atenção para o túmulo de pessoas que foram homenageadas como “heróis de guerra”. Embora a honraria, a princípio, leve a pensar que se trata da Segunda Guerra Mundial, o caso é local e identifica as vítimas de uma das maiores tragédias da história de Juiz de Fora: a explosão, em 1944, da Fábrica de Estojos e Espoletas de Artilharia do Exército (FEEA), que vitimou 14 pessoas, sendo 11 mulheres e três homens, no paiol 4 da fábrica. 

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(Fotos: Leonardo Costa)

Ritos funerários e a memória

Grande parte das memórias sobre o Cemitério Municipal são guardadas por coveiros como o Edil, que se tornam um patrimônio à medida que preservam um.  A antropóloga e professora da UFJF Cristina Dias da Silva destaca a oralidade como tradição cultural capaz de construir “uma capacidade coletiva relacionada à destreza na comunicação oral e à memória histórica de um povo”. É isso que ele faz pela cultura da cidade.

O hábito de contar histórias e as transmiti-las faz parte de como a sociedade dá sentido à vida. “Quem nunca ouviu o conselho de um parente sobre como quer ser tratado após morrer? Ou sobre como lidar com a saudade? Essas coisas não se aprende nos livros pura e simplesmente”, provoca a professora. 

Ela também destaca que essas concepções são repassadas por “parentes, amigos e vizinhos que nos guiam, porque assim também foram guiados antes de nós, em uma linha de transmissão cuja continuidade é ao mesmo tempo tênue e duradoura, cotidiana e complexa. Somos aquilo que ouvimos e que contamos aos outros. Somos a palavra dita e cantada antes, durante e depois de nós”, finaliza. No que se refere à transmissão de contos através dos ritos funerários, o que ronda essa cultura é o que talvez seja uma das maiores questões da filosofia: as noções de vida e morte, e seus respectivos significados. 

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