O clichê “existem dois tipos de motociclistas, os que já caíram da moto e os que ainda vão cair”, faz uma previsão pessimista, mas ao mesmo tempo traduz a vulnerabilidade de quem se desloca pelo trânsito de moto. Dados do Observatório de Segurança Pública Cidadã da Secretaria de Segurança Pública do Estado mostram um total de 1.036 registros de acidentes envolvendo motocicletas e motonetas em Juiz de Fora no primeiro semestre deste ano, o que representa uma média de 40 acidentes com estes veículos a cada semana. Ao todo, 197 casos a mais que o mesmo período do ano passado, um aumento de 23%. Deste total, 831 ocorrências são de acidentes com vítimas e 205 não tiveram feridos. Houve, portanto, aumento nos dois tipos de registro, já que, no ano passado, o número de acidentes com vítimas chegou a 658 e os sem vítimas foram a 181.
A Polícia Militar tem outro levantamento, mas os números assustam da mesma maneira. De acordo com os dados da corporação, foram 1.044 registros de acidentes envolvendo motocicletas de janeiro a junho de 2017, quase 60 casos a mais que em 2016, quando foram contadas 987 ocorrências. Ainda de acordo com a PM, as líderes da tabela de tipos de acidentes com motos mais comuns são as colisões laterais com 392 casos, seguida por 229 choques e 153 quedas de pessoas dos veículos (ver quadro), entre os dias 1º de janeiro e 23 de setembro. As localidades com mais ocorrências foram o Centro e o Bairro São Mateus, 286 e 149 registros respectivamente.
Mesmo com os dados em mãos, o assessor de Comunicação da PM, major Marcellus Machado, afirma não ser possível precisar quais são os fatores que contribuem para o crescimento. “Os números absolutos mostram aumento, mas não permitem afirmar o que pode ter influenciado esse resultado. As motocicletas são veículos que permitem um deslocamento mais rápido e fácil, reduzindo o tempo de espera no trânsito. Mas essa facilidade tem um outro lado, que é a maior vulnerabilidade”, reconhece.
Os flagrantes de direção sem os cuidados indispensáveis, que causam a maioria dos acidentes com motos, fazem parte da rotina da PM, diz o major. “Quando temos motos que saem ziguezagueando na frente de motoristas de táxi, ônibus e caminhões, por exemplo, há uma predisposição a ocorrência de acidentes. Acidentes como choques em objetos inertes, colisões (traseiras ou frontais), abalroamentos, estão entre as ocorrências que registramos no nosso dia a dia.”
Transporte público caro estimula venda maior de motos
O professor do Departamento de Transportes da UFJF, José Alberto Castañon, explica que a motocicleta entrou de maneira diferente no Brasil e no Oriente. Na China e no Japão, por exemplo, a moto chegou para substituir a bicicleta, como uma evolução dela. “No Brasil, com a crise econômica, a falta de dinheiro, o transporte público caro, o usuário percebeu que, com o dinheiro gasto no transporte público, poderia passar a pagar a prestação de uma motocicleta.” Ou seja, nesse caso, a moto não substitui a bicicleta, ela vem como alternativa para o transporte público deficitário.
Castañon afirma que a política de financiamento de motocicletas “é assassina”, pois expande a quantidade de motos nas ruas e faz com que elas entrem em conflito com os outros veículos. Por isso, é preciso levar em conta a frota de motocicletas que também cresceu em 1.289 unidades em 2016, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Em 2015, a cidade tinha um total de 31.861 motos. Já no ano passado, o número chegou a 33.150, sendo que ainda não há dados de 2017 na plataforma do IBGE. “Desse modo, enfrentamos uma superpopulação de motocicletas, uma pressa histórica de quem tem a possibilidade de chegar mais rápido, mas sofremos com a falta de uma legislação mais rígida e efetiva.”
‘Eles não têm experiência e acabam morrendo’
Todos esses fatores somados à inexperiência de quem precisa utilizar a moto, seja como alternativa para os ônibus, ou profissionalmente para driblar as dificuldades provocadas pela crise, tornam o trabalho de evitar sinistros mais árduo. “Os mais jovens vão às concessionárias e encontram entradas de R$ 1. O cara não tem um emprego, precisa pagar a moto e, então, começa a fazer entregas, e cadê a experiência deles?”, questiona a motofretista Maza Dias, que atua na área há 19 anos. Ela ressalta que, diante da facilidade em adquirir uma moto, muitos escolhem modelos com uma capacidade muito alta, ao invés de começar por unidades menos potentes. “Eles não conhecem a força que um veículo com 300 cilindradas tem, por exemplo. Eles não têm experiência e acabam morrendo, ou ficando mutilados, por causa disso.”
Ela frisa que o despreparo visto nas ruas é muito grande. ” É preciso ter um bom treinamento, porque um acidente de moto não é brincadeira, ele acontece em segundos. É fundamental evitar que eles ocorram. Além disso, nunca podemos perder o medo. Não devemos ter vergonha de falar que temos medo, porque, enquanto ele está presente, o respeito também está.” Na opinião de Maza, é preciso ampliar a presença da fiscalização, para evitar, principalmente, as irregularidades que acontecem durante a noite.”Há estabelecimentos que empregam quem aparecer e oferecer o serviço pelo menor valor. Não é errado correr atrás, vivemos uma fase muito difícil de emprego no país, mas é preciso preparar essas pessoas para não perdermos tantas vidas.”
‘Marginalizados’
“Todo mundo diz que corremos muito e não temos educação, mas muitos motociclistas são derrubados quando param no sinal amarelo, isso é muito comum. Ainda tem muito motorista que interpreta o sinal amarelo como impulso para correr mais”, exemplifica Dutra. Maza lembra que, quando alguém chama um motofretista, precisa entregar algo com urgência. “Aquela pessoa que está andando com pressa em uma moto pode estar levando um documento importante, transportando uma bolsa de sangue, um material cirúrgico, um órgão para transplante que vai salvar uma vida. A responsabilidade é muito grande. É uma profissão muito bonita, mas ainda somos muito marginalizados. Precisamos que as pessoas nos vejam com mais carinho, com mais cuidado. Como pais, mães, filhos.”
Velocidade leva medo a pedestres
A aposentada Terezinha de Jesus, 65 anos, atravessava a faixa de pedestres da Avenida Itamar Franco, na esquina com a Rio Branco, por volta das 14h, do último dia 19. Cuidadosamente parou no meio da via, quando percebeu que o tempo para atravessar a outra metade seria insuficiente. Ela parou, mas outros pedestres resolveram seguir, mesmo precisando dar alguns passos mais apressados ou até mesmo correndo, antes de o sinal abrir para os carros.
Ela diz que a postura cautelosa é, entre outras coisas, influenciada pelo medo das motocicletas. “As motos aparecem do nada. Os motoristas de carros, às vezes, fazem um sinal para que possamos passar, nos dão essa preferência, mas logo em seguida aparece uma moto e nos coloca em risco. Muitos motociclistas não nos respeitam. Eu presto muita atenção sempre, tento até observar por cima dos carros, para me certificar de que não vem nenhuma moto entre os corredores.”
Infelizmente, a atitude de Terezinha não é regra. Segundo o professor José Alberto Castañon, embora sejam feitas muitas campanhas educativas, a sinalização mostre o que é permitido ou não fazer e a fiscalização esteja presente, os hábitos precisam ser modificados. “O que falta mesmo é a educação e não é a educação formal. É aprendizado familiar, em que as pessoas aprendem a atravessar na faixa, por exemplo. Falta um investimento maciço em educação. Esse é um problema grave, que assola o país inteiro. Mesmo que nas escolas já tenhamos as informações, precisamos ensinar o motorista a respeitar as faixas de trânsito e todas as outras regras também.” O trânsito brasileiro é um ambiente estressante, também constata Castañon. “Ele cria esse conflito. Quem está de um lado sempre está mais certo que o outro, esse cenário gera um problema muito sério.”
Imprudência, negligência e imperícia
O tripé da culpa, formado por imprudência, negligência e imperícia, quando se trata da motocicleta no trânsito tem impacto em várias frentes. O primeiro impactado é o condutor porque a carroceria do veículo é seu próprio corpo. “Por mais que inventem airbags, ferramentas, capacetes, até um tombo mais leve pode ter consequências muito sérias. Nossa característica de procurar comprar equipamentos mais baratos, não testados e de baixa qualidade, também pode causar ferimentos mais graves”, pontua o professor José Alberto Castañon.
Impacto na saúde
Em Juiz de Fora, o número de quedas de motos atendidas chegou a 777 até 15 de setembro, de acordo com a Secretaria de Saúde. O número total do ano passado foi de 1.172. A secretaria explica que não é possível filtrar o número de mortes causadas por acidentes com as motos. De acordo com o médico Clorivaldo da Rocha Corrêa, diretor adjunto do Hospital de Pronto Socorro (HPS) e diretor interino de Urgência e Emergência, esse número está dentro de uma série histórica, em que há uma flutuação sazonal. “No verão, temos um número maior de acidentes, mas a média vem dentro dos padrões dos anos anteriores. Como o motociclista fica mais exposto, a gravidade dos acidentes costuma ser maior.” Ele diz que as situações mais frequentes são atendimentos após acidentes por conta de ultrapassagens proibidas, falta de manutenção dos veículos, excesso de velocidade e desrespeito às regras de sinalização e tráfego.
Para pensar no impacto que os acidentes de moto geram, o médico afirma que é preciso observar muitas situações. “No acidente, o primeiro atendimento é feito pela urgência. Chega no HPS, vai ser radiografado, fazer exame de sangue, tomografia, ser medicado e ficar em observação. Nesse primeiro momento, se não tiver nada e for liberado, já usou esses serviços todos. Só para o diagnóstico. Se tiver alguma coisa, como uma fratura na bacia, vai ficar internado para operar.” Depois, ainda ficará afastado das atividades laborais até se recuperar, o que vai gerar um custo ao sistema previdenciário.
“Ainda temos os custos da reabilitação, porque ele passa pela fisioterapia para retornar às condições prévias, e, muitas vezes, não consegue. Então, se consegue voltar para o mercado, se reequilibra. Além desses custos, temos outros: desde a perda de produtividade, do dano ao veículo e à sinalização, que às vezes acontece, temos o custo do resgate, da remoção da vítima, do veículo. Também há o dano ao patrimônio, que pode ser lesado. O acidente não é uma boa para ninguém.” Por isso tudo, Corrêa conclui que o principal caminho é a prevenção. Ele se junta ao coro de que a educação é o caminho para a mudança deste cenário.
Dpvat: motos no topo das estatísticas
O Boletim Estatístico da Seguradora Líder Dpvat indica que a motocicleta representou a maior parte das indenizações pagas por acidentes. Com um total de 141.964 casos, as motocicletas respondem por 74% do total no período de janeiro a junho deste ano, embora ocupem apenas 27% do total da frota. Entre as regiões, a Sudeste fica em segundo lugar na estatística, com 56.373 indenizações pagas, 29% do total, perdendo apenas para o Nordeste, com 32%. Os sinistros pagos por acidentes envolvendo motocicletas somam 21.329 pagamentos em Minas Gerais. Os motoristas são os que mais receberam indenizações, um número que chega a 15.354. Entre os condutores também há o maior número de registros de pagamentos por morte, 832 no total. “Parece notícia antiga, mas, infelizmente, não é. Os motociclistas continuam no topo das estatísticas de trânsito e sempre com números preocupantes. A análise e disseminação das estatísticas do Seguro DPVAT pode contribuir para o desenvolvimento de ações de prevenção de acidentes mais efetivas”, alerta Ismar Tôrres, diretor-presidente da Seguradora Líder DPVAT.