Um abaixo-assinado realizado por estudantes já ultrapassou as três mil adesões. A coleta digital que ainda está em andamento denuncia pelo menos 20 suspeitas de fraudes nas cotas chamadas de PPI (Pretos, Pardos e Indígenas, conhecidas como cotas raciais) na última edição do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e do Programa de Ingresso Seletivo Misto (Pism) da UFJF. O documento finalizado deve ser entregue à Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) da UFJF ao final do prazo de coleta das assinaturas. Em contato com o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e com representantes de movimentos sociais e estudantis, os alunos cobram providências da universidade para a apuração de ocorrências envolvendo calouros com fenótipo branco (características observáveis) que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas para conseguirem uma vaga e, em outros casos, tentariam burlar as regras relativas à renda per capita das famílias. A Diaaf também confirmou em reunião com o DCE a composição da banca de verificação da autodeclaração, que deve ser finalizada em março. Os critérios usados na ação de fiscalização devem ser listados e elaborados junto com os movimentos, conforme a Diretoria.
Além das possíveis fraudes denunciadas pelos estudantes, há oito processos instaurados contra discentes da UFJF suspeitos de fraude, de acordo com levantamento feito pelo Jornal Estado de São Paulo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e que envolve outras instituições do país. Este número de oito processos não bate com os registros que a UFJF diz ter feito no último ano, que geraram duas apurações contra quatro alunos e cinco respostas a questionamentos feitos pelo Ministério Público Federal (MPF). O MPF também confirmou o recebimento de duas representações com denúncias feitas por cidadãos sobre o mesmo assunto nesse ano, no entanto, as queixas ainda não foram distribuídas aos procuradores.
Abaixo-assinado
Um dos proponentes da petição, que preferiu não ser identificado, explicou que a maioria dos calouros que frauda o processo se inscreve para as vagas dos grupos A (de quem pertence a uma família cuja renda per capita seja igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e se autodeclare preto, pardo ou indígena) e do grupo B (mesma situação da renda, porém, sem a autodeclaração). “Levaremos as assinaturas à Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), para a Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) e para o Conselho Superior (Consu) da UFJF. Entendemos que a autodeclaração vira um documento. Se você se autodeclara algo sem ser, comete crime. Sabemos que algumas universidades estão cancelando matrículas e têm seguido as bancas de verificação. A UFJF precisa de uma ação assim, para evitar a utilização das vagas por grupos para os quais elas não foram criadas.”
O diretor da Diaaf, Julvan Moreira de Oliveira, explicou que a listagem feita pelos estudantes ainda é composta por candidatos. Somente com o encerramento das matrículas do Sisu e do Pism poderia ser tomada alguma medida. Julvan afirmou que alguns dos inscritos nem chegaram a fazer a pré-matrícula pedida pela instituição. “Confirmando a matrícula e também a denúncia, abrimos a comissão de investigação, que tem o prazo de 30 dias para avaliar o caso. Nesse prazo, trâmites legais são seguidos, como por exemplo, a notificação do estudante com o prazo de cinco dias para a apresentação da defesa com documentos. Caso seja deferido, é aberto processo administrativo e a comissão tem mais 30 dias de trabalho até a decisão final. Se for deferida,o aluno é desligado da UFJF.”
Os discentes defendem a necessidade de dar maior publicidade às investigações. Eles acreditam que mostrar a apuração pode ajudar a sensibilizar as pessoas. “Com uma maior divulgação, os alunos criam confiança nos mecanismos de denúncia que a instituição oferece. Muitos acham que a denúncia não dá em nada ou têm medo porque não sabem que a queixa pode ser feita de forma anônima”, diz a integrante do Afronte e da coordenação executiva do DCE, Ana Emília Carvalho. Para os acadêmicos, é uma necessidade pressionar a universidade, para que a política de cotas seja, de fato, cumprida. “Os alunos podem procurar os meios para fazer as denúncias, buscando os órgãos para que as medidas necessárias sejam tomadas de maneira eficaz”, ressaltou Naiara Marques de Britto, graduanda em direito na UFJF e integrante dos coletivos Práxis Negra e Grupo de Estudos Raciais (GER).
Os números obtidos via Lei de Acesso à Informação ajudam a situar a UFJF em relação ao país. Os oito processos indicados pelo levantamento colocam a Federal na sexta posição em número de queixas. Em Minas, a instituição ocupa o segundo lugar, ficando atrás apenas da Universidade Federal de Viçosa (UFV), com 48 processos. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) é a primeira em número de registros, com 239. Mas o número, de acordo com o pró-reitor de Graduação, Cassiano Caon Amorim, não é o mesmo que a instituição recebeu de denúncias. Em 2017, conforme o pró-reitor, dois processos foram apurados. Eles chegaram à administração por meio de denúncias registradas pela Ouvidoria da UFJF.
Em cada um deles, há dois alunos denunciados. Após apuração, a situação de dois não teve qualquer irregularidade encontrada, mas no caso dos outros dois foram identificadas fraudes e as medidas indicadas pelo regimento da UFJF foram tomadas. Os estudantes passam por processo administrativo disciplinar. Esses casos, segundo Cassiano, estão relacionados ao curso do ensino médio em escolas públicas e também à cotas de PPI.
Além dos dois processos, Cassiano ainda disse que o Ministério Público Federal acionou a UFJF pedindo informação sobre a situação de cinco estudantes que podem também ter sido denunciados. “Nesses casos, nós respondemos aos questionamentos do Ministério Público e não temos resposta sobre o que foi questionado ou sobre o que respondemos. O que vem via Ouvidoria também é protegido, a Prograd não tem acesso a quem fez a denúncia, se é individual, jurídica, ou feita por algum coletivo. Chegou, temos que apurar “, destacou o pró-reitor.
Cassiano ainda frisou que toda e qualquer queixa que se queira fazer nesse sentido passa pela Ouvidoria. Seja ela a geral ou a especializada. Ambas funcionam no prédio da Reitoria. “Elas são registradas em protocolo federal, então temos um prazo para responder. Temos vários tipos de cotas, desde o mínimo de 50% aplicado aos estudantes de escolas públicas, passando por renda, PPI e agora também para deficientes. Também é importante lembrar que cada uma delas tem uma legislação específica, que garante o acesso dessas pessoas. A UFJF está atenta a isso e se esforça para melhorar, cada vez mais, sua política de acesso.” O pró-reitor também reafirmou que a UFJF não está irregular em relação à aplicação da legislação. “Quando falamos na lei, falamos em autodeclaração. O que não significa que as universidades baseadas no princípio constitucional da autonomia não possam criar seus critérios de acesso com base na lei.”
Número de denúncias tem se tornado cada vez maior
Segundo dados do Centro de Gestação de Conhecimento Organizacional (CGCO), a UFJF registrou 16.869 ingressantes por cotas entre 2006 e 2017. O número de denúncias sobre o uso indevido da política tem se tornado cada vez maior, mas a professora de História e coordenadora de formação da Organização de Mulheres Negras e Conhecimento (Candaces), Giovana Castro, lembra que elas são recentes, já que as políticas começaram a ser implementadas em 2004/2005 e foram oficializadas em 2012. A importância da apuração das denúncias, de acordo com ela, passa por três aspectos muito sérios sobre o Brasil. O primeiro seria o racismo institucional. “Os professores estão em sala, veem que os alunos são cotistas, mas nada é dito.
Muitos deles discordam da política de cotas e não veem nenhum problema que um estudante branco pleiteie uma vaga na cota racial e curse a faculdade nessa vaga, porque individualmente não acreditam na necessidade de ascensão social da população negra.” Além de combatê-lo, segundo Giovana, é preciso permitir que a população excluída historicamente por pessoas dessas instituições tenha direito de ocupar seus lugares.
O segundo ponto citado pela professora é a branquitude, o privilégio de ser branco no país. “Naqueles cursos que sempre foram majoritariamente brancos, como Medicina, Odontologia, Direito, é só pegar uma foto de formatura de qualquer turma para ver que a elite dos cursos é sempre branca. Somos um país com população negra enorme e não temos visibilidade nessas áreas. Então, é preciso fazer um processo de enfrentamento do privilégio de ser branco no Brasil.”
Já o terceiro ponto seria o da existência de uma democracia social ou a ideia de que ‘somos todos iguais’. Ela afirma que o país é racista e precisa encarar isso, e as cotas não fizeram do país racista, apenas mostrarão o quão racista ele é. “O Brasil caiu em um engodo na década de 1960, e as pessoas engoliram essa história, porque lhes é conveniente. Então, qualquer um que negue isso usa o ‘ah, mas se ele se esforçar consegue’. Essa meritocracia vem em completo desencontro com as estatísticas do país. A população negra é a maior vitimizada em crimes, que está mais próxima da linha da pobreza, mais à margem da escola, com menor empregabilidade, que tem a maior dificuldade de voltar ao trabalho após a demissão.”
De acordo com o diretor da Diaaf, Julvan Moreira de Oliveira, estamos em um processo, que precisa ainda de muitas ações de conscientização, além da apuração e verificação, em função da resistência de alguns grupos em relação às cotas. “A situação não é simples e começa nas casas, quando adolescentes que prestam o Enem tentam burlar as normas, muitas vezes com o aval dos pais. Que formação é essa dada a esses filhos? Precisamos discutir isso.” Giovana acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido: “Mas fico feliz porque essas denúncias, em muitos casos, são feitas por alunos que estão dentro da universidade, elas partem deles, porque as universidades estão sendo pressionadas a tirar as cotas do papel e implementá-las, de fato. É preciso que elas sejam usadas para quem foram criadas.”
‘Efeitos do racismo são sentidos desde a educação infantil’
Giovana Castro destaca entre as ações de verificação a possibilidade de uma autodeclaração consubstanciada. Por meio de parcerias com movimentos sociais, as comissões conversam com o aluno para saber quais são as experiências que ele tem enquanto negro. “Porque a questão não é apenas se ver como negro. É ser visto e tratado como negro e ter em sua trajetória de vida a percepção de que a sua cor é um fator de exclusão social a econômica. Essas experiências são muito nítidas, os efeitos do racismo são sentidos desde a educação infantil. Os enfrentamentos ao racismo, as exclusões, são cotidianas.Para quem tem o fenótipo branco, essas experiências não são parte de sua história. Então a ideia não é criar um tribunal, é permitir que o aluno para qual a vaga foi criada a ocupe.”
Não há, conforme o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), uma regulamentação específica para tratar da verificação da veracidade da autodeclaração. A referência existente é a lei 12.900/14 que fala sobre a reserva de vagas para pretos em concursos públicos. Para essa lei, há uma orientação normativa, que define os critérios. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) enviou, de acordo com a assessoria do MDH, ofícios para todas as universidades e constatou que muitas constroem suas comissões diante das denúncias. A Seppir também encaminhou ofício ao MEC e ocorreu a retomada do comitê de monitoramento, para a discussão das questões. “A Seppir defende que é necessário que as universidades possam instituir mecanismos de controle para garantir que as vagas sejam de fato ocupadas pela população negra”, disse o órgão em nota.
O diretor de Ações Afirmativas, Julvan Moreira, ressaltou que o trabalho de composição da comissão da UFJF deve ser apresentado em breve. Após finalizar o trabalho, a intenção é apresentá-lo aos estudantes e aos movimentos sociais. A reunião para a avaliação dessa proposta deve ser marcada nas próximas semanas para dar continuidade ao diálogo. Porém, os alunos defendem que a construção da política de verificação deveria, desde o início, ter sido feita com a participação de todos os setores. “É fundamental que essa discussão seja mais aberta, assim como precisam aumentar os canais de diálogo com o DCE e com os movimentos. Estamos levando nossas sugestões para a Diaaf e para a Prograd”, destacou a estudante pertencente ao Afronte e à coordenação executiva do DCE, Ana Emília Carvalho.
O pró-reitor Cassiano Caon afirma que a proposta das bancas é recente e demanda um debate amplo, com participação de muitos sujeitos para que seja uma construção democrática. “Experiências com decisões rápidas nesse sentido foram desastrosas. Por isso, é preciso ter muito cuidado e atenção.” Embora não goste do termo comissão de avaliação, a professora de História e coordenadora de formação do Candaces (organização de Mulheres Negras e Conhecimento), Giovana Castro, reitera que a autodeclaração é o princípio básico de reconhecimento racial e é, portanto, a porta de entrada para ações fraudulentas. Como são ações que infringem a lei, precisam ser vigiadas. Há várias ações possíveis nesse sentido. Ela exemplifica com a experiência da Universidade de Santa Maria (RS), que foi a primeira a usar um comitê de avaliação. “É uma medida amparada pela Justiça, por jurisprudência. Com esse sistema, as fraudes diminuíram de maneira significativa.”
Sobre as críticas de que se pode criar um Tribunal dentro das Universidades, Giovana considera que essa é uma forma de evitar que o aluno nitidamente branco possa fraudar. “Eles nunca se declararam pretos no Brasil, justamente por estarem em um fenótipo muito diferente dos pretos. Pela primeira vez no país colocou-se uma discussão que, declarar-se preto, é um fator de acesso a igualdade de oportunidades. Coisa que até então, não existiu. Ser preto no Brasil sempre foi fator de vulnerabilidade social.” Além disso, há uma questão de fundo moral ressaltada pela professora.Pois, quem frauda, entende que é lesado de alguma forma. Ou seja, não entende, ou não alcança que a cota é promoção de igualdade e oportunidade. “A cota vem como medida de foco fundamentalmente emergencial para corrigir 400 anos de distorções históricas. A universidade pública não foi pensada para o aluno egresso de escola pública, prioritariamente pobre (e a pobreza, no Brasil, tem cor, é preta). As coisas não foram feitas para que esse aluno chegasse à universidade pública. Muitas pessoas continuam sem entender isso.”