A principal mudança trazida pelo PL 1459/2022, conhecido como PL do Veneno, é a limitação do papel da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) no registro de novos agrotóxicos. O esvaziamento da competência dos dois órgãos federais também se estende à reavaliação de pesticidas já autorizados, mas cujos efeitos nocivos tenham sido objeto de novas pesquisas científicas.
As novas regras aprovadas pelo Senado em novembro preocupam ambientalistas e profissionais da saúde por retirar poder de técnicos e cientistas dessas duas áreas na tomada de decisão sobre agrotóxicos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem até o dia 27 de dezembro para vetar ou sancionar o PL. Em caso de veto, porém, o Congresso pode derrubar a resolução de Lula.
Pela atual Lei de Agrotóxicos, em vigor desde 1989, o Ministério do Meio Ambiente, por meio do Ibama, e o Ministério da Saúde, através da Anvisa, compõem um sistema tripartite ao lado do Ministério da Agricultura e da Pecuária (Mapa). Hoje, cada um desses órgãos tem poder de vetar as aprovações de agrotóxicos. No entanto, o PL desmonta esse sistema e concentra no Mapa a palavra final.
A Repórter Brasil ouviu servidores da Anvisa e do Ibama para entender os principais impactos dessa desestruturação. Na avaliação dos entrevistados, a atuação do Ministério da Agricultura tem se mostrado refém dos interesses das principais multinacionais fabricantes desses produtos.
Essas empresas têm por estratégia questionar evidências científicas reconhecidas internacionalmente para manter o Brasil como um dos principais mercados de agrotóxicos proibidos na Europa. Temendo as consequências de um protagonismo da Agricultura, os servidores dos órgãos ambiental e da saúde vêm se pronunciando pelo veto ao PL do Veneno.
Conflito de interesses
“A Anvisa perderá o poder de proibir substâncias que sejam de alto risco para a população brasileira”, afirma Yanda Torres, diretora financeira da Sinagências, sindicato que representa os servidores da Anvisa.
O órgão publicou uma nota no início do mês afirmando que a nova lei “põe vidas brasileiras em risco” ao flexibilizar o registro dos agrotóxicos. O texto destaca um “flagrante conflito de interesses” em deixar o poder de decisão sobre agrotóxicos exclusivamente com o Ministério da Agricultura.
“A gente vê com muita angústia esse retrocesso. O Ibama e a Anvisa vão se tornar meros coadjuvantes”, afirma Clara Costa, diretora da Asibama-DF, que representa os servidores do Ibama. Na semana passada, a Repórter Brasilteve acesso com exclusividade a uma nota técnica do órgão reivindicando seis “vetos essenciais” aos artigos da nova lei de agrotóxicos _ dentre eles, o trecho que versa sobre a redução de competências do órgão ambiental e do órgão sanitário.
Em resposta à Repórter Brasil, a Anvisa informou que avalia o impacto da nova lei nos processos de trabalho da agência e se manifesta apenas no âmbito do processo legislativo. O órgão destacou também que “sempre estará comprometido com a saúde da população”.
Foco em negócios, não em saúde
De acordo com dados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Anvisa, um em cada quatro alimentos de origem vegetal no Brasil tem resíduos de agrotóxicos proibidos ou em quantidades acima do permitido. Os dados são de 2022 e foram divulgados em 6 de dezembro, uma semana após a aprovação do PL do Veneno.
O relatório destaca a redução de 0,55% para 0,17% no número de amostras com risco agudo de contaminação, entre 2018 e 2022. Segundo a Anvisa, esse resultado positivo pode ser atribuído à proibição ou à restrição de ingredientes ativos como o carbofurano, inseticida usado na cultura de frutas e hortaliças.
O processo que proibiu o carbofurano é didático para entender o que pode acontecer daqui para frente. Considerado altamente perigoso pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e proibido na União Europeia e em países como os Estados Unidos e o Canadá, o produto pode gerar efeitos neurotóxicos e teratogênicos (anomalias). Ainda assim, o Ministério da Agricultura foi contra a proibição do uso do produto.
“O Mapa contribuiu com consulta pública em 25 de fevereiro de 2016, discordando da proposta de proibição do Carbofurano devido à relevância desse produto para o controle de pragas agrícolas em culturas economicamente importantes como a cana-de-açúcar e o café”, relatou a Anvisa em parecer técnico que, por fim, vetou a substância.
Segundo o engenheiro agrônomo Vicente Almeida, servidor por 13 anos da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), as proibições de ingredientes ativos de novos agrotóxicos são resultado principalmente dos pareceres da Anvisa e do Ibama, na contramão do posicionamento da Agricultura.
“As proibições acontecem para preservar a saúde humana e o meio ambiente, e a análise sobre essas áreas não é competência do Mapa. O ministério se manifesta apenas sobre a eficácia do agrotóxico para combater o fungo, a bactéria ou o inseto em questão”, explica. De acordo com Almeida, o Mapa “sempre se posiciona pela manutenção de moléculas”, mesmo que antigas, “porque são de interesse da grande indústria para manter seus lucros elevados”, opina.
Segundo Almeida, a atuação da Embrapa não pode ser considerada isenta. “Acompanhei de perto a fragilidade da Embrapa frente à sua autonomia no sentido de subsidiar a população brasileira com informações livres e não viciadas por interesses econômicos precisa avançar muito”.
A assessoria de imprensa do Mapa emitiu uma nota genérica em que, dentre outras coisas, afirma que “o volume de liberação [de agrotóxicos] não tem relação direta com Governo e sim com a melhoria da eficiência da Administração Pública para atendimento dos prazos estipulados em Decreto e para se adequar à necessidade de harmonização com os avanços científicos na obtenção de registros de produtos mais modernos e menos tóxicos”.
Por meio de nota, a assessoria da Embrapa afirmou que “suas pesquisas sempre se embasam em critérios técnicos e científicos e jamais se pauta em interesses políticos ou se submete a pressões ao realizar o seu trabalho. Mediante o exposto, afirmar que existe uma captura da Embrapa e do Mapa de maneira geral pelas principais empresas do setor dos agrotóxicos torna-se uma afirmação infundada e que carece de bases de comprovação”. Clique aqui para ler a íntegra das respostas.
Acusações de perseguição
Almeida atua hoje como pesquisador na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Em 2018, ele foi demitido da Embrapa após publicar um artigo científico sobre o aumento do consumo de agrotóxicos em decorrência da adoção de sementes transgênicas, ao contrário do discurso padrão das empresas do setor.
O pesquisador considera que há uma “clara captura da Embrapa pelas grandes corporações”. Ele afirma que as multinacionais dos agrotóxicos se reúnem semanalmente com as chefias da empresa.
Almeida acredita que sua demissão se deva a motivos políticos. Ele ganhou uma ação na Justiça e retornou ao trabalho em 2020. No entanto, foi afastado novamente meses depois de ser reintegrado. Hoje, ele coordena a Rede Irerê de Proteção à Ciência, que busca a criação de uma Comissão da Verdade para investigação da perseguição de cientistas no Brasil.
A suposta perseguição de empresas a servidores não se restringe à Agricultura. Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador de Saúde Pública na Fiocruz e ex-gerente geral de toxicologia da Anvisa, conta que foi exonerado do órgão em 2012 após denunciar fraude em assinaturas de laudos toxicológicos na análise de agrotóxicos.
Na época, após a exposição do caso na imprensa, a Anvisa informou que abriria uma auditoria para analisar a denúncia. Meirelles afirma que nunca prestou depoimento ou sequer soube da ocorrência da auditoria. A Repórter Brasil consultou o órgão sobre a existência da auditoria sobre o caso, mas não obteve resposta.
Meirelles lembra que grande parte de seu trabalho à frente da toxicologia da Anvisa envolvia explicar às empresas de agrotóxicos o porquê das negativas nos registros de produtos. “O setor tentava desqualificar o órgão e seus técnicos. Se não conseguiam por via política, iam para a Justiça”.
Ameaça à biodiversidade
De acordo com Clara Costa, da Asibama-DF, não apenas os processos futuros de reavaliação de ingredientes ativos serão prejudicados caso a nova lei seja sancionada sem vetos pelo presidente Lula. Ela explica que a nova legislação entrará em vigor assim que for publicada, criando uma insegurança jurídica em relação aos processos de reavaliação em curso.
Entre os ingredientes ativos atualmente em processo de reavaliação por danos ao meio ambiente estão o tiametoxam (em fase final) e o fipronil (em fase inicial). Ambos os produtos têm sido associados à morte massiva de abelhas pelo mundo.
A reportagem teve acesso a uma apresentação feita na Câmara dos Deputados, em julho de 2013, pelo então coordenador geral de Avaliação de Substâncias Químicas da Diretoria de Qualidade Ambiental do Ibama, na qual é apresentada uma cronologia das medidas adotadas pelo órgão até então para proteger polinizadores de agrotóxicos.
O documento mostra que, em fevereiro de 2011, o Ibama produziu o primeiro comunicado com a intenção de reavaliar o fipronil, o tiametoxan e outros dois ingredientes ativos, após pesquisas internacionais indicarem sua periculosidade para os polinizadores. Em abril do mesmo ano, o Mapa foi informado da possibilidade de suspensão da pulverização aérea desses produtos.
Na ocasião, o (Sindag) Sindicato Nacional de Empresas de Aviação Agrícola procurou o Ibama questionando a medida. Em seguida, o Mapa enviou ao Ibama um documento atestando a segurança da pulverização aérea, sem sequer mencionar a proteção aos polinizadores. No mesmo mês, a Basf, uma das maiores multinacionais do setor, solicitou a retirada da modalidade de aplicação aérea de todos os seus produtos contendo fipronil. Ainda segundo o documento do Ibama de 2013, o Mapa teria feito mais uma tentativa para flexibilizar as restrições.
Segundo Costa, com o PL do Veneno, o Mapa poderá ou não solicitar informações complementares ao Ibama e à Anvisa em processos de reavaliação de riscos de agrotóxicos. Hoje, a reavaliação é coordenada pela área na qual as observações de riscos foram feitas (agronômica, sanitária ou ambiental).
“Tem um dispositivo no PL que diz que a reanálise considerará aspectos econômicos, fitossanitários e possibilidades de substituição do produto. Na prática, significa que caso um produto não possa ser imediatamente substituído ou caso o Mapa julgue que ele tem uma importância econômica ou fitossanitária, pode escolher não seguir com a reanálise”, explica.
Além disso, o PL estabelece um prazo de um ano para a conclusão do processo de reanálise de agrotóxicos, o que, segundo Costa, torna o processo praticamente impossível, devido à falta de efetivo da Anvisa e do Ibama e a morosidade do processo. “Nosso quadro de servidores nessa área não chega a 70 pessoas, é muito aquém do efetivo das agências de outros países”, afirma. Já a Anvisa, de acordo com a Sinagências, conta atualmente com o menor efetivo de servidores desde a sua criação. “Todas as áreas demonstram grave falta de pessoal”.