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Diretora do Instituto Marielle Franco fala sobre desafios da pauta negra e legado da vereadora

Ligia Batista Divulgacao
Lígia Batista, diretora do Instituto Marielle Franco (Foto: Divulgação)
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Ela é reconhecida como uma das 40 mulheres negras mais influentes do mundo abaixo dos 40 anos de idade. Nesta entrevista exclusiva à Tribuna de Minas, a diretora Executiva do Instituto Marielle Franco, Lígia Batista, fala sobre sua trajetória internacional, sobre os desafios da pauta negra no mundo e sobre como a instituição atua para manter o legado da socióloga assassinada em 14 de março de 2018, ao lado do motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Um crime que, às vésperas de completar seis anos, continua sem resposta, embora mais próximo de ser desvendado.

– Tribuna de Minas: Como foi o início da sua carreira profissional e em que momento conheceu Marielle Franco?

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Lígia Batista – Comecei essa trajetória profissional na Anistia Internacional. Entrei, em 2013, quando ainda estava na faculdade de Direito e pensando na construção de carreira, de entendimento de como iria usar o Direito como ferramenta de luta. Essa foi a porta de entrada para o caminho da sociedade civil, das organizações não governamentais e do movimento de direitos humanos. Chego na Anistia Internacional com um olhar voltado para o tema de direito à moradia adequada. Naquela época, estava se fazendo um debate importante, ainda muito vigente na cidade do Rio de Janeiro, sobre remoções forçadas e direito à moradia adequada.

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Ao longo dos seis anos, trabalhei dentro de todos os temas defendidos no escritório da Anistia, que foi aberto em 2002. Acompanhei muitos casos de violência no campo, como de Pau D’Arco, e especialmente em territórios quilombolas e em estados como Maranhão, por exemplo, onde isso é muito latente. Trabalhei bastante com o tema de violência policial, que me interessava muito, e que também se tornou uma das grandes pautas da Anistia. Começo aí minha trajetória de construção junto a mães e familiares de vítimas de violência. Um pouco antes disso, conheço Marielle por conta de seu ativismo e de sua luta. Nesta época, ela era coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e fez um trabalho muito próximo, não só com o tema, mas com outros que atravessavam a vida das populações de favela e periferia.

A gente tinha um fluxo de colaborar nessa construção política e encaminhava muitos dos casos que recebia da comissão. Foi também uma possibilidade de conhecê-la mais de perto. Mais para frente, quando foi assassinada em 2018, a Anistia Internacional constrói uma das primeiras grandes campanhas de luta por justiça. Assim, passo a conhecer a outra parte da família, pelo diálogo com Mônica Benício, com Anielle Franco, com Dona Marinete e Seu Antônio, entendendo esse lugar fundamental que eles tiveram de protagonizar essa luta e de a gente poder oferecer a estrutura, as ferramentas que a Anistia tinha à época para escalar ainda mais essas vozes. Foi um momento muito importante de começar a construir uma relação de proximidade, de confiança com essa família.

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E, enfim, acho que meu trabalho na Anistia sempre esteve muito relacionado ao modo como a gente acolhia essas famílias das vítimas. É óbvio que, em particular, para o caso da Marielle, foi muito desafiador, porque era alguém muito próximo. Foi realmente um desafio muito grande viver esse luto da perda dela, mas também de acolher sua família. Ao mesmo tempo, foi um passo fundamental para que hoje, por exemplo, eu consiga ter essa relação de confiança e de chegar nessa posição.

“Quando a gente não tem uma resposta sobre esses assassinatos, está dando um cheque em branco, para que a violência política, de gênero e raça seja a maneira com a qual se opera em nosso país”

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– Você foi selecionada para um programa da ONU que tratava da agenda dos negros no mundo. Como foi essa experiência?

Aconteceu em 2000. Na verdade, é um programa que ainda está ativo, de formação para ativistas negros do mundo todo, da diáspora negra pelo mundo. Ele acontece no marco da Década Internacional Afrodescendente, que é essa iniciativa das Nações Unidas para jogar luz e trazer visibilidade para a agenda negra e dos direitos das populações negras.

Em 2017, fui selecionada para um programa de bolsa de estudos em Genebra, na Suíça, para aprender sobre o funcionamento dos mecanismos do sistema internacional e entender como ativistas como eu poderiam utilizar essas ferramentas para denunciar violações e dar visibilidade às realidades das populações negras e de seus países. Foi uma experiência importante para que eu pudesse não só olhar a realidade do negro no Brasil, mas também a realidade dos negros pelo mundo, e como essas realidades dialogam muito umas com as outras e o quanto é importante construir estratégias de solidariedade internacional. Estratégias de pressão nos estados que conversem umas com as outras, para que a gente se entenda nesse lugar de diáspora.

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A gente vive muitas especificidades em cada um dos países onde há população negra, mas, de maneira geral, a experiência do ser negro é sempre diferente da experiência dos não negros em cada um desses países. Esse lugar de dor e de luta, de superação das desigualdades, nos conecta. Fui uma das dez selecionadas naquele ano, e essa experiência também me traz um olhar para o que significa mobilizar esses mecanismos para além da realidade doméstica. Do que a gente tem, por exemplo, do sistema de Justiça no nível nacional, do que significa fazer pressão no Legislativo, no Executivo, de a gente poder usar essas ferramentas para dar continuidade às lutas pela transformação social que quer ver.

– E como isso se encaixa, por exemplo, no fato de termos Anielle Franco no Poder Executivo?

A chegada da Anielle no Governo federal, no Ministério da Igualdade Racial, é algo que obviamente a gente celebra muito, que a gente vê com muita alegria e como um movimento que não é isolado, porque dialoga com um processo histórico de luta dos movimentos negros, em particular de mulheres negras, e de ampliação da representação nos espaços de poder e de tomada de decisão. Se a gente olhar, por exemplo, para como é a composição do Legislativo no país, tanto do Congresso Nacional quanto nas casas legislativas estaduais e municípios, vê que há, ao longo desses últimos anos, da última década talvez, um aumento nessa representação, um aumento da ocupação desses espaços.

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Marielle falava muito sobre isso também, de ter se sentido muito solitária na construção da vereança na cidade do Rio de Janeiro. Acho que isso é uma realidade para muitas mulheres negras no Brasil nessas diferentes instâncias. Por mais que a gente tenha algum crescimento nesta representação política, nessas arenas, ela ainda é muito pequena, muito aquém do que significa efetivamente a nossa representação na população como um todo. Isso inclui o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Uma organização como o Instituto Marielle Franco não é só para enfrentar as tentativas de silenciamento das mulheres negras, pessoas LGBTQIA+, pessoas de favelas e periferias nesses espaços de poder, mas também de consolidar suas presenças. Não é só sobre chegar. É sobre chegar e permanecer e de maneira segura, sustentável. Acredito que não só Anielle, como várias outras lideranças, vivem de maneiras diferentes os desafios de ser quem se é na política. É muito importante que a chegada desses novos nomes na política institucional também venha carregada de uma capacidade de rediscutir a maneira como a política vem sendo construída, vem sendo feita, vem sendo pactuada no nosso país.

Porque, de fato, o conceito que se dá e se traduz para a gente, que é o do pacto da branquitude, não está expresso só na relação em sociedade de maneira genérica. A política institucional está desenhada, está pensada para pessoas que não são como nós, não se portam como nós, não falam como nós, não acessam espaços de poder como nós. Então, é muito importante que a ocupação desses espaços venha associada à consciência de como a gente historicamente se relaciona nessas arenas, que é de maneira violenta e excludente. Isso precisa ser encarado para ser superado. Para que a gente consiga efetivar um projeto democrático no Brasil que nunca veio para uma população como a nossa e que precisa vir já e urgente. Ele já está atrasado e penso que vivemos um momento importante para fazer esse tipo de conversa.

– Dentro do novo planejamento estratégico do Instituto, como pretendem consolidar o desafio da construção de redes colaborativas para fortalecer o legado de Marielle Franco?

Essa organização surge com uma responsabilidade muito grande, que é traduzir o legado da Marielle para nossa sociedade, para que o assassinato não se torne ferramenta para os que queriam nos silenciar. Os movimentos negro, de mulheres negras e dos direitos humanos não permitiram que isso acontecesse. Das várias possibilidades de abordagem, talvez quatro delas sejam os grandes pilares para nossa atuação. O primeiro é a luta por justiça, entendendo que a resposta pelos assassinatos de Marielle e Anderson não é só para essas famílias, para o instituto e para outras organizações interessadas na resolução desse crime. É uma resposta para o Brasil e para essa disputa que a gente estava tentando traduzir aqui sobre o que é consolidar um projeto democrático. Quando a gente não tem uma resposta sobre esses assassinatos, está dando um cheque em branco para que a violência política, de gênero e raça seja a maneira com a qual se opera em nosso país, e que isso siga sendo muito perigoso para pessoas como Marielle: mulheres negras, pessoas que vêm de favela e periferia, comunidade LGBTQIA+ e que não se sintam suficientemente seguras para acessar esses espaços. É fundamental que essa resposta chegue para que isso também comunique uma mensagem para outras tentativas de violência política que vêm acontecendo.

Para além da luta por justiça, a gente também olha muito para a preservação da memória de Marielle e, cada vez mais, expandindo para o que é a preservação da memória de mulheres negras nesse lugar. Ao longo desses últimos anos, temos trabalhado muito para responder a essas campanhas de ódio, de desqualificação que aconteceram desde o dia em que a Marielle foi assassinada e que vem ganhando força até hoje. Como oferecer uma contranarrativa sobre quem é Marielle Franco, mas também sobre o que significa lutar pela preservação da memória de mulheres negras no Brasil e de suas contribuições para a democracia? Nesse sentido, a gente está se organizando para inaugurar, nos próximos anos, o Centro de Memória e Ancestralidade Marielle Franco. Um espaço físico importante, para traduzir e resgatar a memória histórica dela como pessoa, ativista e política, mas também como um lugar dinâmico de encontro e de celebração das contribuições ancestrais. É fundamental ter um lugar não só de garantia de justiça e reparação, como de responsabilização dos autores desse crime. Um modo de virar essa página e olhar para frente, porque a gente entende e reconhece o valor da atuação de mulheres negras organizadas no Brasil ao longo da história.

O terceiro pilar é sobre a multiplicação do legado, sobre como traduzir, por exemplo, a agenda Marielle Franco, sobretudo, em ano eleitoral, para publicizar esse manifesto político, sistematizando recomendações de políticas públicas e também de práticas para mandatos parlamentares. A forma como podem se alinhar com o legado da Mari. Temos um engajamento bem expressivo. Em 2020, ano que marca as primeiras eleições municipais depois do assassinato, tivemos mais de 700 candidaturas à vereança que queriam se colocar como defensoras dessa agenda e desse legado. Muitas delas foram eleitas ao redor do país. Em 2022, renovamos esses compromissos e também registramos um número muito expressivo de deputadas estaduais que estão se colocando como defensoras dessa pauta. O mesmo segue em 2024. Nosso papel é olhar para a questão da violência política e desenhar estratégias de superação, assim como celebrar as contribuições que têm sido deixadas por pessoas como Marielle em espaços de poder e tomada de decisão dentro das arenas políticas.

Para fechar, o último ponto é sobre regar as sementes. No ativismo, a gente entende como muito importante esse olhar para quem. Dentro e fora da política institucional, se vê muitas pessoas inspiradas pela Mari, que virou esse grande símbolo nacional e internacional de luta contra a desigualdade. É vital criar estratégias que organizem esse ativismo, essas pessoas inspiradas por Marielle. Temos aí um trabalho forte da nossa rede de sementes com a possibilidade de mobilizar e conectar as próximas gerações.

– E para terminar, uma questão que me chamou muita atenção é o foco do Instituto nas quatro dimensões do cuidado: cuidado com a gente, com as outras, com o trabalho, com a instituição. Fale um pouco sobre isso.

É bom encerrar com isso, porque a gente está de fato nesse momento, vivendo essa transição institucional, pensando muito sobre o que que cuidado significa para nós. Falar sobre isso é falar um pouco sobre como se constrói política de uma maneira diferente. Acho que até mesmo dentro do próprio ativismo organizado, a gente vive historicamente uma realidade muito desafiadora para garantia da saúde mental de quem trabalha com direitos humanos.

É uma realidade desafiadora de precarização do trabalho e de como enfrentar e superar essa condição. Para quem está nesse campo, tem uma coisa sobre fazer tudo ao mesmo tempo, sendo que tudo é sempre muito urgente. Tem a ver como, através da lente do cuidado, devemos olhar para a importância do fazer menos e melhor. De construir uma vida mais balanceada e que conecta de maneira cuidadosa o que é trabalho, o que é família, o que é lazer, o que é momento de descanso, de pausa. Tudo isso não deixa de ser uma ação política. Não acho que se jogar à exaustão seja nossa melhor contribuição para o mundo. A construção de um ativismo, de uma luta política, passa por todos esses espaços da vida que devem ser integrados.

Quando refletimos sobre o que é a política de cuidado institucional, ou seja, uma política de cuidado com o fazer ativismo, é preciso trazer todas essas dimensões para a pauta, e isso está na centralidade do que fazemos. Sem isso, o ativismo não é sustentável. Não é coerente com as lutas que a gente está construindo. Assim, é muito importante a sociedade civil organizada, dentro dos movimentos, mantenha isso como norte, como guia para sobrevivermos a tantas lutas. Sem saúde mental, a gente não consegue ter uma vida plena. E não dá para fazer ativismo ou luta alguma sem cuidar de nós mesmas, inclusive.

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