“O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, diz a filósofa Silvia Federici, que ficou bastante famosa com a ampliação das discussões sobre o trabalho de cuidado. A economia do cuidado engloba todas as atividades que são desempenhadas para garantir o bem-estar e a manutenção da vida. Muitas pessoas precisam abrir mão de seus trabalhos pagos para se dedicarem aos cuidados de filhos, parentes, idosos e pessoas com deficiência, principalmente as mulheres, e não são remuneradas por esse serviço. Há também profissionais que se dedicam dedicam ao trabalho de cuidado, especialmente de idosos, mas ainda não existe uma precificação tabelada e direitos garantidos para a profissão no Brasil.
No país, trabalhadores envolvidos nos cuidados com pessoas, como domésticas, profissionais da enfermagem e medicina, faxineiros, cozinheiros, entre outros, respondem por 25,2% das pessoas ocupadas, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE. Mas, a pesquisadora e doutoranda em ciências sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Flávia Lopes, explica que esse é apenas o percentual “visível” deste trabalho, já que os números não englobam os serviços não remunerados, realizados no interior dos lares, invisibilizados, e desempenhados majoritariamente por mulheres.
Segundo dados do relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, da Oxfam, as mulheres são responsáveis por 75% de todo o trabalho de cuidado não remunerado no mundo. Em números, são 10,8 trilhões de dólares por ano para a economia global em serviços não pagos. Flávia Lopes ainda destaca que existem estudos apontando que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro poderia aumentar 11% se o trabalho de cuidado fosse contabilizado. No entanto, para ela, a precificação deste trabalho ainda é um grande tabu na sociedade.
A pesquisadora explica que existe uma construção social forte relacionando essas atividades de cuidado como intrínsecas à “natureza” de mulheres, e que a sociedade tem dificuldade de mensurar o real valor deste trabalho. Como consequência, essas atividades seguem extremamente mal remuneradas e estigmatizadas como “não produtivas”. Ela ressalta que são as mulheres negras, em sua maioria, que ocupam as principais atividades de cuidados e de trabalho doméstico, ficando com as menores remunerações.
“Ao todo, 92% dos trabalhadores domésticos no Brasil são mulheres e destas, 63% são negras. Também são elas que precisam equilibrar as atividades de cuidado com o trabalho, e acabam, muitas vezes, em trabalhos informais, com menores salários e mais precarizados, uma vez que não têm como terceirizar esses serviços”, destaca a pesquisadora. Ainda segundo Flávia, a falta de creches, os baixos salários, e ausência de redes de proteção e de cuidado limitam as possibilidades de maior participação no mercado de trabalho e contribuem para a chamada “feminização da pobreza”.
Política Nacional de Cuidados avança
A demanda dos trabalhos cuidado não para de crescer. Segundo o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o total de pessoas que demandarão de cuidados no mundo em 2030 será de 2,3 bilhões. Por isso, para a pesquisadora Flávia Lopes, o cuidado deve ser pensado não como uma atividade à parte da sociedade, mas pelo contrário, essencial para a manutenção da vida e também para a economia.
“Um país para funcionar precisa de pessoas alimentadas, com roupas limpas, cuidadas, para que tenham condições de viver, estudar, consumir, trabalhar. É necessário tirar essa demanda da esfera privada e trazer as discussões para a pública, por isso é tão importante pensar políticas públicas de cuidados e o papel do Estado”, diz a pesquisadora.
Em julho, o Projeto de Lei (PL) sobre a Política Nacional de Cuidados, elaborado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi enviado para o Congresso Nacional. Esse projeto busca garantir os direitos tanto das pessoas que necessitam de cuidados quanto das que cuidam, com especial atenção às desigualdades de gênero, raça, etnia e territoriais, além de promover as mudanças necessárias para uma divisão mais igualitária do trabalho de cuidados não remunerado.
De acordo com Flávia, um dos principais desafios dessa política é garantir direitos às mulheres que cuidaram durante toda sua vida, e que não foram vistas como trabalhadoras. “Ao pensar uma política de cuidado, é preciso estar atento aos direitos trabalhistas das pessoas que cuidam e também na universalização do cuidado. O país passa, hoje, por transformações demográficas, econômicas e culturais que vão impactar diretamente nas necessidades e na capacidade de prover cuidados no interior das famílias: temos o envelhecimento da população, a queda dos índices de natalidade, e tudo isso precisa ser pensado em termos de políticas públicas”, destaca a pesquisadora.
Paciência e empatia são a chave da profissão
A vida foi levando Angelita Mendes, de 47 anos, a se tornar cuidadora. Aos 16 anos, começou a trabalhar como babá e já tinha experiência cuidando da avó. Contudo, ser cuidadora tornou-se a sua profissão remunerada há 12 anos, quando foi contratada para cuidar de uma idosa com Alzheimer.
Já Adriana Malvaccini, 57 anos, trabalhou mais de 30 anos como professora em escola pública, mas quando decidiu, já aposentada, parar de trabalhar com a educação, teve a ideia de se tornar cuidadora de idosos. Acostumada a circular no meio de pessoas mais velhas, por fazer parte da terceira idade do Grupo Divulgação, voltado para as artes cênicas, ela procurou um curso disponibilizado pela Santa Casa de Juiz de Fora, e já começou a trabalhar cuidando de uma mulher. Ao relatar sua experiência, Adriana contou que não tem horários fixos, já chegando a trabalhar 12 horas por dia, e com folgas esporádicas, mas também não tem carteira assinada por ser aposentada.
As cuidadoras ressaltam que o trabalho exige sempre estar atenta,:com horários, alimentação, questões de saúde, e até mesmo em não deixar a chave na porta, pois algumas pessoas no início de doenças, como a demência, podem fugir. Por isso, um dos desafios da profissão é a sobrecarga física e também emocional, devido ao vínculo criado com o paciente.
“Tem que ter muita paciência e amor, porque eles vão repetir histórias. Então você tem que estar ali, entregue para cuidar, dedicar e ouvir. Ter muita empatia”, diz Angelita. Para as cuidadoras, esse trabalho necessário para muitas famílias exige muita responsabilidade, mas que apesar dos desafios é gratificante poderem cuidar e ajudar outras pessoas.
*estagiária sob supervisão da editora Júlia Pessôa