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Avó passa por transplante renal no dia de nascimento da neta

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Da esquerda para direita: Tainá, Márcia, Tamara e a pequena Esther Foto: Felipe Couri
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No Brasil, são realizados cerca de 25 mil transplantes de órgãos por ano. O país é referência mundial na área e possui o maior sistema público para esse tipo de tratamento no mundo, sendo 96% dos procedimentos feitos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por assegurar exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante, conforme informações do Ministério da Saúde.

No entanto, mais vidas poderiam ser salvas. Cerca de 3 mil pessoas morrem todos os anos esperando por um transplante, como informa a Associação Médica Brasileira (AMB). A doação de órgãos no Brasil só pode ser realizada sob permissão familiar e avaliação médica, e uma das principais causas que impedem o procedimento é a recusa de familiares. Desconhecimento, crenças religiosas, medo e descrença no sistema público de saúde estão entre as razões para a negativa.

O transplante renal é a principal demanda no país. De acordo com o Ministério da Saúde, entre os mais de 41 mil pacientes que aguardavam na fila do transplante no início do ano passado, apenas 3 mil não estavam à espera da doação de rim.

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Todas elas com um forte desejo em comum: de que o telefone toque. Para quem aguarda na fila do transplante, o telefonema significa que um doador compatível foi encontrado, e que o transplante pode ser realizado. Em outras palavras, é o início de uma nova vida.

Quando o telefone tocou

No dia 30 de janeiro deste ano, após uma década de espera, o telefone de Márcia, finalmente, tocou. Na ligação, ela foi informada de que a vez dela havia chegado, e o transplante aconteceria no dia seguinte. A primeira reação foi um tanto inusitada: ao saber da data prevista para a cirurgia, ela respondeu: “amanhã não dá, minha neta vai nascer”.

A ligação do médico foi só o início de uma história que parece ter saído diretamente de um filme. Márcia Martins Lima Miranda, 66 anos, sofre com deficiência renal há mais de uma década. Mãe de Tainá, 34, e Tamara, 33, ela apresentava sintomas de problemas renais, como pressão alta, já na gravidez da primeira filha. Antes de dar à luz, ela sofreu trés abortos, um indicativo de que sofria de algum problema de saúde.

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Em 2010, teve o diagnóstico de deficiência renal. O rim estava bastante debilitado e já havia sido acometido por uma atrofia.
Durante 5 anos, Márcia foi submetida ao tratamento conservador, realizado à base de medicamentos e alimentação regrada, a fim de preservar a função do órgão. “A gente deve muito ao SUS, o Brasil é abençoado. Se a gente não tivesse esse suporte, muita gente não teria medicação”, afirma em entrevista concedida à Tribuna.

Já no início do tratamento conservador, ela entrou para a fila de transplante renal, mas nem ela e nem a família tinham muitas expectativas de que a doação do rim viesse da fila. Isto porque o caso dela se encaixa no chamado “painel alto”, quando as taxas de anticorpos são bastante elevadas, tornando a compatibilidade dos órgãos ainda mais difícil.

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Mesmo sabendo dessas condições, familiares realizaram o teste para saber se eram compatíveis para serem os doadores de  Márcia, mas a compatibilidade não foi detectada. Mesmo seguindo o tratamento conservador, ela perdeu o que ainda restava da função renal e começou o tratamento por hemodiálise, que durou uma década.

Um caminho de esperança e resiliência

Três vezes por semana, Márcia saia de sua cidade, Mar de Espanha, às 4h15 e se deslocava até Juiz de Fora, a uma hora de distância, onde ficava quatro horas na máquina de hemodiálise. Depois, retornava a sua cidade, chegando em casa por volta das 14h. ”Não pense que quando sair dali, da máquina, você vai sair dançando não. Vai querer descansar, dormir”, brinca Márcia se referindo à exaustão que acomete os pacientes renais após as sessões do tratamento.

Essa rotina exaustiva é vivida por milhares de brasileiros. Os dados do último Censo Brasileiro de Diálise, realizado em 2023 pela  Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), mostram que 157.357 pessoas estavam em tratamento de hemodiálise no país.

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“A alegria faz parte do tratamento”, relata Tamara, filha caçula de Márcia, afirmando que durante os dez anos de hemodiálise, sua mãe manteve o alto astral e a fé. Márcia confirma o relato da filha e conta que, durante as sessões, ela e seus “amigos de sala” – como se refere aos outros pacientes que faziam a hemodiálise junto com ela – tentavam transformar aquele momento cansativo em algo leve. “A gente batia papo, cantava, orava juntos por todos nós e pela equipe médica, agradecendo pelo tratamento. Organizamos festas, compartilhamos receitas, todo dia era uma novidade.”

Esperança, fé, alto astral e saúde mental são essenciais para os pacientes renais, mas a agressividade e as restrições do tratamento são dolorosas e limitam até os simples atos cotidianos. “Meu sonho era pegar um copo de água com três pedras de gelo e tomar com prazer, sem preocupação”, relembra. O tratamento de hemodiálise restringe o consumo de água se o paciente não urina ou urina em pouco volume.

Durante a pandemia da Covid-19, Márcia contraiu o vírus e ficou três meses internada em Juiz de Fora. Na época, conta, perdeu vários amigos de sala para a doença.

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União da família

No ano passado, as taxas de anticorpos presentes nos rins abaixaram um pouco, e novos exames com os familiares deveriam ser realizados  a fim de testar, novamente, a possibilidade de compatibilidade. A filha Tamara já estava grávida  e com a cesárea agendada para o dia 30 de janeiro, quando soube que os testes recomeçariam.

Na semana anterior ao nascimento de Esther, Márcia orou para que o rim de Tamara não fosse selecionado para o transplante, pois se preocupava de que duas cirurgias pudessem debilitar muito a filha caçula.

No dia 29, à noite, as duas estavam juntas na casa de Tamara, para acompanhar o parto no dia seguinte, quando o telefone tocou. Era o médico de Márcia informando que havia um rim compatível, e ela precisaria estar no hospital no dia seguinte, às 6h. Assim, a primeira reação foi responder: “amanhã não dá, minha neta vai nascer”.

O médico deu 20 minutos para que ela decidisse se faria ou não a cirurgia no dia seguinte, e a assegurou de que aquela era uma oportunidade única. Ela relembra as palavras ditas por ele: “dona Márcia, isso é uma loteria, esse rim veio sob encomenda” se referindo à alta taxa de compatibilidade dos órgãos da paciente e do doador anônimo, um homem da cidade de Ubá, que morreu aos 68 anos.

As filhas deram total apoio para que Márcia passasse pelo transplante. “Naquele momento, a gente não pensava nisso. Sempre pensávamos, mas naquela hora, o transplante estava fora do nosso radar por conta da chegada da Esther”, explica Tamara, que, para além do alívio, sentia uma tensão enorme pela situação: ela dando à luz, e a mãe passando por um transplante renal, uma cirurgia de alto porte.

Tamara diz que se sentiu impotente por não estar com a mãe. “Eu e minha irmã sempre estivemos juntas com a mamãe desde o início dos tratamentos. Já chegamos a dormir, as duas, no quarto de hospital, onde era permitido só uma visita”, relembra. “Minhas filhas são minhas âncoras”, afirma Márcia, enquanto acaricia as mãos de Tamara.

(Re)nascimentos

(Foto: arquivo pessoal)

No dia 30 de janeiro, quando tudo aconteceria na Santa Casa de Misericórdia, a cirurgia de Márcia sofreu um atraso, pois o órgão ainda não havia chegado. Inicialmente programada para ter início por volta das 9h, a operação só começou às 14h, mesmo horário em que Tamara dava a luz a Esther, em uma sala bem próxima.

“A gente gostaria que todo mundo avaliasse a questão de doação de órgão quando estivesse perdendo um ente querido. A família que doa um órgão gera outra vida”, destaca Márcia sobre a importância da colaboração das famílias na doação de órgãos.

Após a operação de Márcia, uma das médicas havia notado a preocupação de Tamara e foi até o centro cirúrgico levar notícias da mãe para a filha. “Ela me falou que a cirurgia tinha sido um sucesso, e que a minha mãe estava bem. Eu fiquei sabendo antes mesmo da minha irmã.”

Com o nascimento de Esther, como diz o nome, a “estrela” que chegou realizando os maiores desejos da família, e o transplante da mãe, Tainá andava sem parar pelo hospital, dividindo sua atenção entre a mãe, a irmã e a sobrinha.

Tamara e Márcia tiveram o primeiro encontro após os dois renascimentos, ainda na sala de recuperação anestésica
Hoje, avó, filhas e neta estão em casa, se recuperando da experiência, “Eram tantas bênçãos ao mesmo tempo, parecia um sonho. Foi a resposta de todas as nossas orações”, afirma Márcia.

A família faz questão de compartilhar esta história, a fim de conscientizar sobre a doação de órgãos “A gente tem que agradecer muito a essas famílias, a esses doadores, por essa chance de sobrevivência. Eu prometo que vou cuidar desse rim com todo carinho”, afirma Márcia, cujo significado do nome é “guerreira”.

*estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli

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