Além dos riscos diretos das enchentes, consequência das fortes chuvas no Rio Grande do Sul, a situação levantou preocupação em profissionais da saúde pública, que alertam para a possibilidade do aumento de casos de leptospirose na região.
A leptospirose, conforme esclarece o infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Renato Grinbaum, é uma doença infecciosa provocada pela bactéria do gênero Leptospira, geralmente adquirida através do contato com água ou solo contaminados pela urina de animais infectados, principalmente ratos. Dessa forma, enchentes são reconhecidas como ambientes propícios para a disseminação da doença, elevando o risco para aqueles expostos às águas.
É importante ressaltar que a transmissão é zoonótica, ou seja, ocorre do animal para o ser humano, não havendo transmissão direta de pessoa para pessoa. Além disso, lesões na pele aumentam a suscetibilidade à infecção, embora seja importante destacar que, mesmo sem ferimentos visíveis na pele, a infecção ainda é possível.
Quais são os sintomas da leptospirose?
De acordo com o Ministério da Saúde, as manifestações clínicas variam desde formas assintomáticas até quadros graves, associados a manifestações fulminantes. São divididas em duas fases: fase precoce e fase tardia.
Os principais sintomas da fase precoce são:
– Febre
– Dor de cabeça
– Dor muscular, principalmente nas panturrilhas
– Falta de apetite
– Náuseas/vômitos
Além disso, pode ocorrer diarreia, dor nas articulações, vermelhidão ou hemorragia conjuntival (na região dos olhos), fotofobia, dor ocular, tosse, manchas vermelhas na pele, aumento do fígado e/ou baço e aumento de linfonodos (gânglios presentes principalmente no pescoço, axilas e virilhas).
Em aproximadamente 15% dos pacientes com leptospirose, ocorre a evolução para manifestações clínicas graves, que normalmente iniciam-se após a primeira semana de doença. Nas formas graves, a manifestação clássica da leptospirose é a síndrome de Weil, caracterizada por icterícia (tonalidade alaranjada ou amarelada muito intensa na pele), insuficiência renal e hemorragia, mais comumente pulmonar. Pode haver necessidade de internação hospitalar.
Manifestações na fase tardia:
– Síndrome de Weil: ocorrência simultânea de icterícia, insuficiência renal e hemorragias
– Síndrome de hemorragia pulmonar: lesão pulmonar aguda com sangramento
– Comprometimento pulmonar: tosse seca, dispneia, expectoração
– Síndrome da angústia respiratória aguda (SARA)
– Manifestações hemorrágicas: pulmonar, pele, mucosas, órgãos e sistema nervoso central
“Esta é uma doença grave, pois a bactéria penetra na pele e se dissemina por vários órgãos do corpo, causando sua disfunção progressiva. Assim, pode resultar em hepatite, comprometimento renal e até afetar o cérebro, desencadeando encefalite. Todos esses sintomas são consequências da invasão direta da bactéria no organismo”, explicou Grinbaum.
Como é feito o diagnóstico?
De acordo com o consultor da SBI, o diagnóstico parte de uma suspeita clínica. O médico analisa o quadro e indica um teste sorológico, feito a partir da coleta de sangue no qual é verificado se há presença de anticorpos para leptospirose (exame indireto) ou a presença da bactéria (exame direto).
Existe tratamento?
Sim, existe tratamento. Segundo Grinbaum, para os casos leves, o atendimento é ambulatorial e com muita hidratação. Já nos casos graves, a hospitalização deve ser imediata, como forma de diminuir as complicações e a letalidade. Os cuidados do paciente também vão depender das complicações associadas ao quadro.
Além disso, o Ministério da Saúde afirma que, ao suspeitar da doença, a recomendação é procurar um serviço de saúde e relatar o contato com exposição de risco. O uso de antibióticos é indicado em qualquer período da doença, mas a eficácia costuma ser maior na primeira semana do início dos sintomas. Na fase precoce, são utilizados doxiciclina ou amoxicilina; para a fase tardia: penicilina cristalina, penicilina G cristalina, ampicilina, ceftriaxona ou cefotaxima.
A automedicação deve ser evitada em qualquer um dos casos, leves ou graves.
Como prevenir?
A melhor forma de prevenir a leptospirose é evitar o contato com águas possivelmente contaminadas. Caso não seja possível evitar, o médico recomenda o uso de equipamentos de proteção, como botas ou galochas de borracha e roupas impermeáveis. Se houver exposição da pele à água contaminada, é importante lavar o corpo prontamente para reduzir o tempo de exposição e minimizar o risco de infecção.
Além disso, o ministério ressalta as seguintes orientações:
– A lama de enchentes tem alto poder infectante e adere a móveis, paredes e chão. Recomenda-se retirar essa lama (sempre com a proteção de luvas e botas de borracha) e lavar o local, desinfetando-o a seguir com uma solução de hipoclorito de sódio a 2,5%, na seguinte proporção: para 20 litros de água, adicionar duas xícaras de chá (400mL) de hipoclorito de sódio a 2,5%. Aplicar essa solução nos locais contaminados com lama, deixando agir por 15 minutos.
– Evitar o contato com água ou lama de enchentes e impedir que crianças nadem ou brinquem nessas águas. Pessoas que trabalham na limpeza de lama, entulhos e desentupimento de esgoto devem usar botas e luvas de borracha (ou sacos plásticos duplos amarrados nas mãos e nos pés).
– Para o controle dos roedores, recomenda-se realizar o destino adequado do lixo, armazenamento apropriado de alimentos, desinfecção e vedação de caixas d’água, vedação de frestas e aberturas em portas e paredes, etc. O uso de raticidas (desratização) deve ser feito por técnicos devidamente capacitados.
Tive contato com água possivelmente contaminada: o que fazer?
Além da higienização após o contato, conforme orientado por Grinbaum, recentemente a Sociedade Brasileira de Infectologia, em conjunto com a Sociedade Gaúcha de Infectologia e a Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, divulgou nota técnica orientando sobre a melhor forma de realizar a profilaxia para prevenir a doença em casos onde há exposição contínua e inevitável com água de enchentes, como tem acontecido no Rio Grande do Sul.
Embora o uso de antimicrobianos não seja recomendado como conduta de rotina, sendo administrado apenas quando há o diagnóstico da doença, a nota ressalta que em situações de alto risco, onde há muita exposição a alagamentos e águas possivelmente contaminadas, essa intervenção pode ser considerada com o objetivo de minimizar os riscos.
A orientação se baseia em estudos, incluindo um guia da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2003, que, apesar de algumas limitações, como baixo número de participantes, indicam um potencial benefício no uso desses medicamentos em casos como o do Estado gaúcho.
A principal recomendação das entidades responsáveis pelo documento é o uso de doxiciclina, administrada em dose única para adultos em pós-exposição de alto risco. Para crianças, a dose é calculada com base no peso corporal, com dose máxima estabelecida. Como alternativa, a azitromicina pode ser utilizada nas mesmas condições.
Considerando esses pontos, as recomendações para identificar pessoas em situação de alto risco e elegíveis para o uso de medicamentos de emergência são as seguintes:
– Equipes de socorristas de resgate e voluntários com exposição prolongada à água de enchente, quando equipamentos de proteção individual não são capazes de prevenir a exposição;
– Pessoas expostas à água de enchente por período prolongado com avaliação médica criteriosa do risco dessa exposição.
É importante frisar que a profilaxia deve ser feita apenas com orientação médica. Além disso, ela não oferece uma proteção absoluta contra a leptospirose, e mesmo aqueles que fazem uso dos medicamentos recomendados ainda podem contrair a doença. Além disso, gestantes e lactantes não devem utilizar doxiciclina como medida preventiva.