Quem caminha hoje pelo campus da Universidade Federal de Juiz de Fora passa, estuda, trabalha, pratica esportes não imagina que o lago artificial é tudo o que restou à vista do Córrego do Independência. Sua nascente brota discreta nas imediações da Faculdade de Educação Física, numa área de mata preservada. Depois de formar o chamado Lago dos Manacás, o Independência some da vista humana, engolido por asfalto, concreto e galerias, corre subterrâneo até desaguar no Paraibuna, na altura do Poço Rico.
“Só vamos conseguir vê-lo outra vez lá na sua foz — e mesmo assim, não é ele direito, né? É quase esgoto”, diz Luciano Caramez, professor e pesquisador do Núcleo de Geografia Histórica da UFJF. A fala sintetiza um percurso que é ao mesmo tempo físico e simbólico: do contato natural na nascente até a invisibilidade urbana, passando por obras, desapropriações e decisões políticas que redesenharam a paisagem urbana central de Juiz de Fora.
Encoberto por decisões técnicas e políticas
Os dados apontados por Caramez que constam de artigo acadêmico produzido pelo professor Pedro Machado, coordenador do Núcleo, ajudam a dimensionar a transformação que a bacia do Córrego do Independência que cobre cerca de 7,11 km² sofreu. São aproximadamente 5,47 km, dos quais, hoje, 86% estão canalizados. Em números absolutos, cerca de 4,73 km do curso hídrico foram levados para galerias subterrâneas. Assim, a presença da água que marcou a ocupação e a organização do território urbano de Juiz de Fora sumiu literalmente do mapa.
O estudo, iniciado pelo coordenador do Núcleo em 2015, vem revelando como o avanço da cidade sobre suas águas transformou o equilíbrio ecológico da região. “As cidades brasileiras, em geral, cresceram sem levar em conta a dinâmica dos rios urbanos. No caso de Juiz de Fora, o preço dessa expansão foi a degradação da qualidade das águas e a canalização quase completa do Córrego da Independência”, observa Machado, no artigo.
Segundo Luciano Caramez, o processo começou muito antes da construção definitiva da avenida que carregaria seu nome. Projetos e levantamentos aerofotogramétricos aparecem desde meados do século XX. Mas as soluções técnicas não foram e não são neutras. “As decisões sempre vão ser políticas”, observa o professor. A opção por canalizar e ‘ganhar’ pista para priorizar o carro esteve alinhada a um modelo urbano que privilegiou circulação veicular e expansão. Assim, a construção da avenida não apenas driblou enchentes, como também reordenou o solo, exigiu custo alto com desapropriações e alterou o território e o curso do córrego que foi, inclusive, suprimido na área central da cidade, próxima a sua foz.
Invisibilidade, poluição e memória esquecida
No início da década de 1960, quando Juiz de Fora crescia em ritmo acelerado, o Córrego da Independência já era visto como um incômodo urbano: um curso d’água estreito, sujeito a transbordamentos, que cortava a cidade em plena área central. Mas, para o engenheiro urbanista Jorge Staico, o desafio de reorganizar aquele espaço era também uma oportunidade de conciliar o avanço urbano com o respeito à natureza.
Staico foi o responsável pelo Projeto de Canalização do Córrego Independência e de Urbanização da Avenida Marginal, elaborado em 1961 e executado pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) entre 1966 e 1968. O projeto nasceu de uma longa história de tentativas de controle das cheias, iniciada ainda na década de 1940. “Os problemas de inundação do córrego e os pedidos de solução já eram conhecidos desde 1943, quando a prefeitura solicitou providências ao DNOS”, explica Luciano Caramez. Segundo os registros, em 1952, a demanda foi reforçada pela Sociedade Pró-Melhoramentos do Bairro São Mateus, evidenciando que a situação exigia medidas urgentes.
Entregue a Staico em 1960, o Plano de Remodelação e Extensão da Cidade de Juiz de Fora, elaborado por José Octacílio Saboya Ribeiro (1949), previa algo ousado para a época: a construção de uma avenida moderna sobre o traçado do córrego, ligando a Cidade Alta à região central, e a criação de um viaduto que o conectaria à Avenida Brasil — obra concluída apenas décadas depois, em 1996, com o nome de Viaduto Augusto Franco.
O que fica visível no projeto é que Saboya Ribeiro não pretendia esconder o córrego sob o asfalto. Pelo contrário. No projeto original, ele previa a manutenção do canal aberto, centralizado entre passeios e pistas de rolamento, ocupando uma faixa total de 22 metros. “Ele tinha uma visão urbanística que, à frente de seu tempo, buscava valorizar o curso d’água como parte da paisagem urbana e não como um problema a ser eliminado”, destaca Caramez.
O curso que mudou de lugar
As dificuldades, porém, logo se impuseram. No trecho central da cidade, entre as ruas Barbosa Lima e Santa Rita, as construções irregulares erguidas sobre o leito do córrego inviabilizavam sua retificação sem um alto custo de desapropriações. Além disso, o terreno rochoso entre as ruas Espírito Santo e Antônio Dias apresentava obstáculos técnicos significativos. “Foi por isso que se decidiu abandonar o canal original e literalmente construir um novo leito para o córrego”, explica o pesquisador.
Essa alteração marcou o destino definitivo do Independência. Em 1967, uma lei municipal autorizou a prefeitura a indenizar o governo federal para demolir as construções às margens do córrego e abrir sobre ele uma nova via pública. Parte desse impacto foi sentido no prédio da Escola Normal que teve uma torre destruída para a abertura da via. A execução da obra, iniciada na década de 1960, teve inaugurações por trechos (há registros de inaugurações em 1968 e 1971) e se estendeu até o fim dos anos 1970.
O que é possível fazer
Desde então, a Avenida Independência, hoje Avenida Presidente Itamar Franco, tornou-se uma das principais artérias de Juiz de Fora, eixo vital de conexão e desenvolvimento. Mas sob sua superfície, invisível aos olhos, está um curso d’água desconhecido e desprezado.
Caramez cita exemplos internacionais de reabertura de cursos canalizados, como em Utrecht, na Holanda, e Seul, na Coréia, e instiga a possibilidade de repensar trechos para devolver visibilidade e função ecológica ao Independência. Para avançar, no entanto, seria preciso estudos de qualidade da água, acessos às galerias, mapeamento histórico e, sobretudo, debate público que incorpore memória, técnica e política.
Obra de canalização do Córrego do Independência
Obras de canalização do Córrego Independência para a implantação da avenida de mesmo nome. As fotos são do acervo blog Maria do Resguardo. A construção da avenida culminou com a inauguração, em 31 de maio de 1968, do primeiro trevo rodoviário de Juiz de Fora, na Praça Antônio Carlos (Foto do blog Maurício Resgatando o Passado). A demolição de torre da Escola Normal foi necessária para implantação da avenida Independência (foto do Blog Maurício Resgatando o Passado).
Projeto de Saboya Ribeiro
A imagem retrata a Folha 116 do Plano de Remodelação e Extensão da Cidade de Juiz de Fora Elaborado por José Octacílio Saboya Ribeiro (1949). Fonte: Arquivo Histórico de Juiz de Fora.
