Caio Fernando Abreu: “O biógrafo das emoções pós-modernas”

Por Marisa Loures

Mirian Freitas 3
Mírian Gomes de Freitas, poeta, ensaísta e professora, lança livro no qual analisa a forma como Caio Fernando Abreu lidou com as questões da alteridade e da identidade em sua vida e obra – Foto Arquivo Pessoal

A poeta e ensaísta, professora do IFSudeste – Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia de Juiz de Fora, Mírian Gomes de Freitas, trabalha na divulgação do recém-lançado “Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade” (CRV, 300 páginas). “A literatura de Caio Fernando Abreu é atemporal”, sentencia a estudiosa, para logo ressaltar os motivos que justificam seu posicionamento. O autor de “Morangos mofados” morreu em 25 de fevereiro de 1996, há 25 anos, mas sua obra tem muito a dizer no presente.

“Pode ser lida naqueles tempos de chumbo do regime militar, da revolução sexual, nos anos 80, e também nos anos difíceis da AIDS. Bem como também pode e deve ser lida hoje, num Brasil aprisionado pelo conformismo, pelo fascismo, pela violência sistêmica. Portanto, a obra desse autor não está confinada a uma determinada época, ela será sempre atual, contemporânea e, sem dúvida, há nela a marca de um olhar atento à realidade e a presença de uma voz que é resistência e luta, o que a faz ser considerada um dos grandes expoentes da literatura brasileira”, assevera Mírian. “O Caio é o ‘biógrafo das emoções pós-modernas’, como descrito em um dos primeiros capítulos desse livro. Por isso, ele tanto foi a voz de uma geração que rompeu paradigmas e resistiu ao aparato repressivo em um contexto em que a democracia  brasileira e a liberdade de expressão se tornavam cada vez mais utópicas,  como ainda continua sendo a voz da geração atual em busca de um feixe de esperança em um momento de pandemia e caos político”, enfatiza ela, que, no livro, procurou analisar a forma como o escritor gaúcho lidou com as questões da alteridade e da identidade em sua vida e obra. “Quem são os outros para Caio Fernando?”. Essa é a indagação que norteou os estudos dessa professora mineira, nascida em Caratinga.

Gestada ao longo de um percurso de 4 anos e meio, pontuado por leituras e pesquisas em diferentes fontes bibliográficas, a publicação é resultado de tese de doutorado em Literatura Comparada, defendida em 2017, na Universidade Federal Fluminense, e chega às mãos dos leitores reunindo  fotos icônicas e inéditas de Juvenal Pereira, Adriana Franciosi, Marcos Santilli, Juan Esteves, Paulo Giandalia, além de muitas outras imagens dos arquivos do Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural, da PUCRS. Esse é o terceiro livro de Mírian, também autora de “Intimidade vasculhada” (contos) e “Exílios, naufrágios & outras passagens” (poemas). Ela ainda possui textos publicados em antologias do Brasil e Portugal.

Marisa Loures – Apresente um pouco mais do livro para os leitores da coluna Sala de Leitura.

Mirían Gomes de Freitas – Os capítulos fazem uma abordagem das narrativas caioferdianas em um processo reflexivo e investigativo sobre a ambígua e inconclusa natureza das identidades dentro do contexto pós-moderno. Sob esse prisma, o livro analisa contos do autor gaúcho publicados desde a década de 1960 a 1990, percorrendo sua trajetória na formação das identidades nos períodos da ditadura militar, contracultura, revolução sexual e AIDS, além de estudar, sob o aspecto da alteridade, as influências de Clarice Lispector e Hilda Hilst na vida pessoal e literária de Caio F. Além da análise dos contos, há também uma ampla abordagem das crônicas e das cartas escritas pelo gaúcho ao longo de sua vida. Há, nas páginas deste estudo, o desdobramento dos eixos principais− alteridade e identidade −, que vai além dos preceitos teóricos, abordando o diálogo das relações culturais e pessoais do autor com o mundo e sua literatura.

– O primeiro capítulo aborda “Caio e seus múltiplos”. “Ele foi milhares”, expressão usada por Jeanne Callegari, biógrafa do autor de “Morangos mofados”.  Dentre os vários Caios, qual mais te seduz?

O Caio foi “milhares”: dandy, hippie, punk, queer, louco, gay, militante, exilado, aidético e por aí vai sua  infinitude… Mas uma das faces (identidades) de Caio que mais me seduz é aquela que é nômade. O que me chamou muito a atenção na obra do Caio F. foi a experiência do autoexílio e o espírito nômade que ele possuía, o que está tão bem representado em muitas de suas personagens. Na verdade, sinto que me conecto a esse gaúcho justamente pelo nomadismo e por este espírito irreverente e ousado de suas vivências. Caio F. não era do tipo que vivia em uma “caixa de fósforos”. Sua vida era intensa, cheia de altos e baixos como qualquer uma, mas era uma vida incomum em muitos aspectos, sem pertencimentos, sem definições. Vou ousar e dar um passo a mais nesta resposta e citar também que, no percurso deste estudo, senti-me muito seduzida por aquele Caio com o diagnóstico soropositivo.  Ou seja, o Caio da “identidade condenada que se transformou em arte de viver” (último capítulo), e que mesmo convivendo com um vírus, cujo tratamento ainda não existia, conseguiu transformar seu próprio luto em vida e renascimento. Como bem afirmou o José Castello “Caio, quando tinha todo o direito de  permanecer pessimista e infeliz, encheu-se de vida”. A experiência da morte para o autor gaúcho foi um movimento de transformação e é o momento que ele retorna à casa dos pais no bairro Menino-Deus, em Porto Alegre, e inicia, ao lado do pai, a sua saga de jardineiro, vivendo os últimos meses de sua trajetória na Terra, plantando rosas e girassóis. Isto para mim foi intenso, transformador e encarei como um aprendizado de vida.

– Seus estudos para a produção do livro partiram da seguinte questão: quem são os outros de Caio Fernando? Foi possível chegar a uma conclusão?

É comum em se tratando de temas tão abrangentes e tão conceitualmente heterogêneos, como alteridade e identidade, surgir mais indagações do que uma conclusão propriamente dita ao final do percurso. Como responder à ampla e intrigante questão: Quem é o Outro?, Quem sou eu? Neste trajeto das conclusões deste estudo, houve alguns questionamentos pertinentes sobre aquilo que os psicanalistas chamam de “identidade” e quais as possíveis maneiras que ela foi representada na ficção caioferdiana.  Ao longo da pesquisa, eu me deparei com um cenário de identidades “trituradas em um liquidificador”, refutadas pela sociedade, “pessoas rejeitadas” e então concluí indagando: “Como suportar a diferença?” É importante destacar que em cada um de nós há identidades contraditórias, movendo-se em diferentes direções e, por isso, há um ciclo contínuo de deslocamento dos nossos próprios eus. Portanto, como se definir?  A singularidade do sujeito está sempre em cheque, e o Outro (aquele que também está em nós) pode ser um “estranho”, um estrangeiro que, pelas vias obscuras de sua desconhecida identidade, faz-se contemplação pelo olhar que o repele, estranha e, ao mesmo tempo, deseja-o por trazer em si a diferença. Quem, na verdade, precisa de uma identidade, de um rosto, se a diversidade dos nossos “eus perdidos” não é outra coisa a não ser os restos desordenados que recebemos do Outro? Por isso, para este estudo, não há conclusão definitiva. O que há são estas constantes indagações que nos servem como “respostas” para compreender que, como Caio e sua literatura, somos personagens inacabados, na indefinição de um “rosto” e, portanto, vivemos confinados às incertezas e às vulnerabilidades de uma infinita trip existencial.

– Você escreve que a escritora Jeanne Callegari afirma que Caio Fernando Abreu sempre lidou com o “enfrentamento e a busca da identidade, a vivência de experiências e angústias”. Como essa questão apresenta-se na obra do autor?

Na obra do autor gaúcho, os múltiplos Caios foram representados, muitas vezes, como alter egos do próprio autor em busca de uma identidade.  Em seu primeiro romance, “Limite branco” (1971), o personagem Maurício, de 19 anos, é o alter ego do autor, como bem afirma Ítalo Moriconi, e o personagem está em busca da identidade, perpassando a linha fronteiriça da adolescência para a idade adulta. Portanto, assim como neste romance, quanto em todas as suas outras ficções, a  constante busca pela identidade se faz presente não como algo determinante, consciente, mas de certa forma é uma pulsão meio inconsciente, intuitiva. Principalmente nas narrativas escritas nos anos do regime militar. Tanto que é comum as personagens não terem nome nem um perfil com características definidas, podendo, assim, ser associadas ao verso da canção “Alegria alegria”, de  Caetano Veloso:  “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”, o que caracteriza o anonimato do sujeito/cidadão daqueles tempos negros da ditadura.  Pode-se explicar essa incansável busca pela identidade através da falta/ausência da mesma e, por isso, pela impossibilidade de se atingir um “eu”, tanto que ele mesmo afirma: “É tempo de me fazer, eu sei. E sei que é bom ainda ser indefinido. Pelo menos as deformações não calaram fundo, não se firmaram em feições”. Os sentimentos que Caio vivenciou entre os anos 60 aos 90 estão representados em uma escrita que se desloca de seu centro para a margem delicada dos afetos, pois ele foi um escritor, segundo José Castello, que “ transcende o círculo mesquinho do eu” e assim multiplica-se em várias identidades, todas representadas por suas personagens, criações desdobradas em eus anônimos, estrangeiros, desconhecidos,  ambíguos, queer. São as identidades indefinidas, inconclusas, disformes, errantes é que revelam a pulsão da angústia e das experiências de vida na obra deste autor. É assim que ele ousou biografar as emoções de seu tempo, que, de acordo com Moacyr Scliar, para o Caio, “vida e literatura era mesmo uma coisa só”.

– E qual é o leitor que você quer atingir com “Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade”? A tese passou por alguma modificação para ser transformada em livro?

Este livro é resultado de uma tese de doutorado em Literatura Comparada (UFF).  Talvez alguns leitores possam imaginar que toda “tese” é algo muito teórico e chato de ler. Porém, esta não é (risos!). Por incrível que pareça, as abordagens são mais literárias do que teóricas. Portanto, o perfil de leitores para este livro pode ser bem diversificado; tanto podem ser os da academia (professores e alunos universitários), como outros que, além da literatura, se interessem por assuntos como psicologia, história, filosofia, sociologia, cultura e outros. Esse estudo faz ampla abordagem a esses referidos assuntos, por isso torna-se atraente para um público bem diversificado. Sim, a tese passou por uma adaptação, teve certos arranjos e recortes para se transformar em livro. Com a inserção das imagens/fotos, foi necessário reorganizá-la, porém, nada que pudesse prejudicar a essência de sua estrutura.

– Gostaria que terminasse esta entrevista reforçando por que estudar Caio Fernando Abreu é tão necessário neste momento.

Ler Caio, hoje, conhecer suas narrativas e a trajetória de sua vida é muito importante e necessário. É algo que é urgente, principalmente neste momento pandêmico e também diante deste contexto político que pede de nós resistência e fé. Além das traduções, as constantes reedições de sua obra, peças, filmes e documentários baseados em sua vida e em suas narrativas, configuram a sua relevância para a literatura e para a sociedade brasileira. Sua obra tem sido tema constante de dissertações e teses nas universidades do país, assim como também seus livros têm sido leituras obrigatórias em nossas salas de aula, vestibulares e nos processos seletivos seriados das universidades.

Sala de Leitura – toda sexta-feira, às 17h40, na Rádio Transamérica Juiz de Fora (FM 91,30).

Capa do livro Caio Fernandio Abreu 2

“Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade”

Autora: Mírian Gomes de Freitas

Editora (CRV, 300 páginas)

Onde adquirir o livro?

No site da editora CRV, na Amazon, na Americanas, no Submarino e na Livraria Cultura.

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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