Jacaré

Por Nara Vidal

Acho difícil ler notícias que levam a cara do atual presidente estampada na matéria.
Tem alguma coisa nele que me causa desânimo, náusea. Nunca escondi para que time torço e, certamente, não é o dele, que incita violência, ódio e irresponsabilidade. Tenho muita vergonha de tudo que ele representa, tenho muita vergonha do discurso que ele tenta sustentar. Não era minha intenção escrever um texto feito de sombras, mas sempre que penso no nosso país tropical e brilhante, me vem uma escuridão e um peso imensos. Um amigo veio me dizer, estarrecido, que viu uma imagem do presidente se divertindo na praia, nadando no mar durante o feriado do final do ano no cenário mundial de uma pandemia. Claro que isso não me surpreende. Eu ficaria muito surpresa se ele se isolasse no seu palácio com a família que tem, dispensasse os empregados sem sacrificar seus salários e, enfim, desse o bom exemplo. Mas parece que o coletivo virou sinônimo de sacrifício individual. Sabe, eu não vejo a minha família no Brasil há dois anos e meio. Ainda assim, a minha saudade não é mais importante ou maior do que a de quem viu a família há dois meses, ou há cinco anos. Eu mereço passear e rever os afetos tanto quanto qualquer um. “Eu mereço, eu mereço, eu mereço. Eu não sou de ferro, preciso de um descanso, você não está na minha pele, você não sabe o que se passa comigo.” Essas são frases que servem precisamente como desculpas para furar o regime. Só falta alguém achar que é normal e aceitável pagar pela vacina e, assim, começar a alimentar uma indústria que, de novo e sempre, não dá vez aos vulneráveis e aos pobres. O coletivo não prevê exceções. Ainda assim, há quem dê uma escapulida porque está merecendo. Eu, honestamente, não sei o que causou tanto escândalo no meu amigo quando viu a matéria do presidente nadando e fazendo chacota do isolamento. O que ele esperava de quem, desde o início de uma das maiores crises do mundo, fez pouco caso das vítimas da pandemia e seus familiares? Alguém que sugeriu tratamento com cloroquina, fazendo um rombo orçamentário para comprar medicamento que não tem eficácia, não pode mais nos surpreender. E, pasmem, ainda há quem defenda o atual governo. É inacreditável que haja qualquer tipo de apoio ao que se apresenta. Mais que isso, é inadmissível e imperdoável um apoio a um suposto governante que ri das cobranças dos cidadãos em relação a um programa de vacinação. Aqui na Inglaterra foi notícia que o presidente do Brasil disse que quem tomar vacina vai virar jacaré. “Hahaha, mas vamos levar na piada, pelo amor de Deus” – ouço alguém dizer. Seria engraçado, cômico se não fosse mesmo trágico e letal. A irresponsabilidade só é bonitinha nas crianças.
Toda a deselegância e toda a falta de discernimento serão castigadas. Teremos um futuro inteiro pela frente para juntar cacos deixados pela presidência e seus apoiadores: gente que ou tem ódio ou que pede torcida a favor. Mas nem tudo é culpa do governo. Precisamos urgentemente de uma oposição unida e coerente. Não nos favorece uma oposição com vaidades, espalhada e rala, mesmo que com boas intenções. Se há alguma possibilidade deste ano ser melhor, ela vem com o fim desse governo.
Esta semana o presidente disse que o país está quebrado e não há nada que ele possa fazer. Dois equívocos: o país não está quebrado, e há sim, algo que ele pode fazer: renuncia, presidente. Se correr com isso ainda dá tempo de ir junto com o Trump.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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