O velho não quer ficar sozinho

Por Wendell Guiducci

Pelas ruas da cidade anda um velho decidido a não morrer. Há muitos anos, quando quase partiu dessa após despencar da sacada de um sobrado na Barão de Santa Helena, tomou esta resolução. Não por medo de dor ou do que possa existir do outro lado. O velho sequer acredita em outro lado. O que o velho não suporta é solidão. Quando descobriu que o momento da morte é um instante do mais absoluto e silencioso desamparo, decidiu-se por não morrer. E assim vive: sem experimentar um dia de sozinhez que seja.

O velho, que pode ser visto conversando com passantes no Calçadão da Halfeld ou na Praça da Estação, quer companhia o tempo todo. Não precisa, mas almoça no Restaurante Popular só pela proximidade com “a gente de verdade dessa terra”. Seus amigos de juventude já morreram faz tempo. Família é um monte de garranchos quase apagados, confinados na mais poeirenta das gavetas do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais. Não possui laços, por isso fala com quem quer que lhe dê trela.

Antes da invenção dos dispositivos de comunicação móveis, passava as horas mortas em casas de tolerância, não pelos prazeres carnais, mas pela mera companhia das damas da noite, pela qual pagava de bom grado. Hoje só frequenta tais ambientes quando sente saudades de um determinado vocabulário, próprio do meretrício. O velho também circula por outros sítios propícios ao colóquio entre estranhos, como botequins, campos de futebol, filas de banco, salões de beleza e abrigos de animais – não nutre simpatia por bichos, pois tais companhias tendem a ser mudas ou ininteligíveis.

Desde que comprou um celular, o velho nem ao banheiro vai sozinho mais. Fez amizades virtuais e descobriu que há muitos como ele – embora morram. O velho não morre e também não dorme. Está em todas as redes sociais com sua mais que up to date longa barba branca de viking das Alterosas. Absolutamente adaptado aos novos tempos, estes que quase impossibilitam qualquer forma honesta de solidão. Quando os anônimos amigos já não lhe respondem os directs e msgs e inboxes, vara a madrugada mandando mensagens em perfis de famosos. Monitora as respostas estirado no sofá, com óculos de sol para que a luz da tela não lhe prejudique ainda mais as surradas retinas.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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