Temos preconceito de ter preconceito

Por Marcos Araújo

“Você tem inveja disso aqui”, diz o homem indicando a própria pele. Quem não se lembra desse episódio, acontecido em julho deste ano, na cidade de Valinhos, no interior de São Paulo, quando o morador de um condomínio de casas cometeu o crime de injúria racial contra o entregador Matheus Pires Barbosa? A cena foi repetida intensamente pela mídia naquela ocasião e hoje é lembrada nesta coluna como forma de chamar a atenção para o Dia da Consciência Negra, comemorado neste 20 de novembro.

O que aconteceu com esse entregador é uma mostra de que, apesar de solucionado de forma legal, uma vez que é crime, o racismo se mantém entranhado nas nossas relações sociais cotidianas e se expressando de forma explícita e violenta. Mesmo assim, nós, brasileiros, gostamos de dizer que vivemos num país sem preconceito. Temos preconceito de ter preconceito!

Quando flagrado, o racismo tenta sair pela tangente, disfarçando e alegando engano ou mal-entendido. Mas não cabem mais essas justificativas quando pensamos no avanço da morte violenta sobre a população negra e periférica. Há um movimento no Brasil que reivindica dos meios de imprensa tratar as mortes de negros como genocídio. Algo que é totalmente pertinente, porque sabemos que o povo negro vive uma longa história de extermínio.

E esse extermínio vai muito além da morte física, porque há muitos tipos de mortes que se abatem sobre a população negra, como a morte social, a morte econômica e a morte da invisibilidade. Pesquisas de vários institutos estão aí para provar que a renda dos brancos é maior que a dos negros. Os números também mostram que as pessoas negras ainda ocupam postos de trabalho mais precários. Que eles são minoria em áreas que exigem maior qualificação.

Quando levamos em consideração as questões de saúde e de educação, facilmente é possível constatar que a população não branca é que detém os piores índices. E a mulher negra é quem mais sofre diante de todo esse contexto, porque incide sobre ela, além do racismo, o machismo, que a coloca no mais desfavorável nível de desigualdade.

No caso de injúria racial em Valinhos, a família do homem que agrediu o motoboy alegou, posteriormente, que o agressor sofria de esquizofrenia e pediu desculpas ao trabalhador. Todavia, o caso tornou-se emblemático e prova de que não era um fato isolado. Infelizmente, o noticiário brasileiro está recheado de ocorrências do tipo.

Na mesma época, por exemplo, um também entregador foi parar nos jornais depois de ter sido vítima de racismo e de ser ameaçado por dois homens, em um shopping, na Ilha do Governador no Rio de Janeiro, quando foi trocar um relógio que havia comprado para o Dia dos Pais. “Estava esperando pelo atendimento quando ele se aproximou de mim e disse: ‘Vamos ali’. Eu disse que não sairia dali e que não era nenhum ladrão. Fui tratado como se não fosse nada, e ainda colocaram uma pistola na minha cabeça. E por que isso? Por que estou com um relógio bacana sou ladrão? Não sou ladrão, não”, contou o jovem que teve sua dignidade ferida por causa da cor da pele.

Em 2020, o Estatuto da Igualdade Racial completou dez anos. O dispositivo foi criado 122 anos depois da abolição da escravatura e trouxe uma série de diretrizes com o objetivo de efetivar a inclusão da população negra e extirpar o discriminação das nossas relações. Apesar de sua implementação, pouca coisa mudou na prática. Para especialistas que tratam da questão da desigualdade racial, o racismo é algo ainda muito mal resolvido no Brasil, e a sociedade brasileira ainda não está disposta a admitir o preconceito e combatê-lo. Para tanto, há um longo caminho, e colocar em prática as propostas do Estatuto é um começo.

Marcos Araújo

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