Existe uma síndrome rara que provoca sono involuntário durante o trabalho e outras situações que podem ser perigosas como, por exemplo, quando a pessoa está dirigindo. Esse distúrbio neurológico, chamado de narcolepsia, pode afetar as atividades do dia a dia por conta da vontade excessiva de dormir em qualquer hora ou lugar. A doença também paralisa o paciente durante o repouso e pode provocar alucinações durante o sono, como a pessoa sentir que está sonhando acordada, além de episódios temporários de fraqueza muscular (cataplexia).
Os ataques de sono podem ocorrer diversas vezes durante o dia, sem o controle do indivíduo. Quem sofre com narcolepsia pode adormecer involuntariamente mesmo que esteja conversando, dançando, comendo ou até mesmo dirigindo. Com frequência, após esses cochilos — que podem durar de dez minutos a mais de uma hora — os pacientes sentem-se mais descansados.
O estudante de medicina Vitor Dmetruk Carvalho, 21 anos, sabe das dificuldades de viver com narcolepsia. Ele foi diagnosticado aos 15 anos e conta que sofreu bullying durante todo o ensino médio. “Perdi várias matérias e provas, mas o pior era não ter a compreensão dos colegas de turma, que sempre faziam brincadeiras de mau gosto comigo”, lembra.
Suas crises acontecem nas mais diversas situações, sejam elas monótonas (quando o sono aparece com mais frequência e intensidade) ou em atividades corriqueiras, como estudar, comer e praticar atividades físicas. O estudante diz que o sono profundo acontece até mesmo em momentos alegres e prazerosos.
“Já deixei de fazer a prova de vestibular, dormi diversas vezes na aula e nas provas, na academia e enquanto tocava bateria. Quando o sono vem, tenho que deitar atrás da bateria e tirar um cochilo por alguns minutos. Não consigo evitar. Antes de receber o diagnóstico, cheguei a sentir sono durante o passeio a um parque temático. Isso sem falar quando estou andando de ônibus e até de bicicleta. Quando isso aconteceu, tive que parar de pedalar, sentar em algum banco e esperar o período de sonolência terminar”, revela.
Após o diagnóstico, os pais de Carvalho receberam orientações sobre os cuidados com a rotina e a higiene do sono – um conjunto de práticas que devem ser seguidas antes de dormir, com o objetivo de facilitar o início do sono – a fim de reduzir os episódios de sonolência durante o dia. Apesar desses cuidados e do uso da medicação indicada pelos médicos, o estudante ainda enfrenta crises durante o dia, com uma média de três episódios, cada um com duração de pelo menos 30 minutos.
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O que causa a narcolepsia?
A ciência ainda não conhece o mecanismo que leva ao desenvolvimento de todos os casos de narcolepsia. Contudo, evidências consistentes sugerem que pessoas com predisposição genética, quando expostos a algum gatilho ambiental (como infecção ou vacinação, por exemplo), ativam o sistema imunológico, desenvolvendo células de defesa contra um grupo de neurônios específicos de uma região cerebral conhecida como hipotálamo lateral.
“Esses neurônios são responsáveis pela produção da hipocretina, substância que promove o despertar e mantém a estabilidade das fases do sono. Com a queda da hipocretina, os indivíduos ficam susceptíveis a uma maior sonolência e instabilidade no decorrer do sono, sobretudo do período do sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos, que é a fase mais profunda do sono)”, explica o neurologista Lúcio Huebra, que é mestre em Psicobiologia (Medicina do Sono) e professor do curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo, além de membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, da Associação Brasileira de Sono e da European Sleep Research Society.
“Além disso, algumas lesões cerebrais, como encefalites ou esclerose múltipla, também podem causar narcolepsia”, complementa o neurologista e neurofisiologista clínico Leonardo Ierardi Goulart, especialista em medicina do sono e médico do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
Mais comum entre os jovens
O surgimento dos primeiros sintomas, como sonolência excessiva, alucinações ao adormecer ou acordar, e paralisia do sono, é mais comum entre os jovens, apresentando dois picos de incidência, por volta dos 15 anos e, posteriormente, dos 35 anos. As estimativas globais indicam uma prevalência variável de 0,1 a 17 pessoas para cada 100 mil habitantes. No Brasil, observa-se uma prevalência intermediária, mas ainda não há dados concretos disponíveis. Segundo especialistas entrevistados pela Agência Einstein, não existem diferenciações étnicas significativas, embora haja uma leve tendência de o problema ser mais comum em homens.
No Brasil, não existe uma legislação específica que oriente em relação ao risco de acidentes de trânsito ou de trabalho em indivíduos com narcolepsia. A decisão sobre os riscos de acidentes em situações de perigo, especialmente relacionados à direção de veículos, cabe ao médico, em conjunto com o paciente. Em alguns países, é realizado um teste para avaliar a capacidade da pessoa de se manter acordada (teste de manutenção da vigília) antes da liberação da permissão para condução.
Medidas comportamentais têm papel fundamental no tratamento
A narcolepsia não tem cura. O tratamento visa exclusivamente controlar os sintomas, como a sonolência excessiva durante o dia. Para isso, são prescritos medicamentos estimulantes de uso controlado, que promovem um maior estado de alerta. No caso de outros sintomas, é necessário combinar o uso de medicamentos da classe dos antidepressivos — a prescrição não se baseia no efeito desses medicamentos no humor, mas sim em seu impacto direto no sono, evitando a ocorrência desses fenômenos.
“Infelizmente, o tratamento completo disponível no Brasil não é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou por convênios médicos. Apenas alguns dos antidepressivos usados no tratamento da cataplexia são distribuídos gratuitamente. As medicações são de alto custo, o que dificulta o tratamento adequado no país, especialmente nas doses necessárias para um adequado manejo”, ressalta o neurologista Huebra.
Os especialistas destacam que algumas medidas comportamentais têm papel fundamental dentro do tratamento, como cultivar uma boa higiene do sono, procurar não dormir tarde e evitar o uso de telas à noite, além de tirar cochilos curtos programados e distribuídos ao longo do dia para evitar adormecer em situações inapropriadas.
Ao longo da evolução do distúrbio, é comum o indivíduo apresentar outros sintomas associados, como ganho de peso e/ou obesidade, desenvolvimento de apneia do sono, transtornos psiquiátricos – principalmente depressão e ansiedade – e aumento do risco cardiovascular.
Huebra ressalta, ainda, que existem benefícios de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, incluindo educador físico, nutricionista e psicólogo, visando a melhora de outras medidas comportamentais, como a prática de atividade física aeróbica, o controle de peso, e de sintomas depressivos e ansiosos.
“A cafeína, por exemplo, é um estimulante de amplo acesso que pode ser usado em casos de sonolência diurna, porém, como na narcolepsia há uma tendência de sono noturno fragmentado, é recomendado a redução do consumo no período noturno, sobretudo próximo ao horário de dormir”, pontua o médico.
Pacientes em tratamento apresentam uma melhora de qualidade de vida com atenuação dos sintomas, porém uma remissão completa das queixas é geralmente difícil, mesmo com o tratamento otimizado.
“Algumas limitações podem persistir, como a tendência de adormecer em atividades monótonas e pouco ativas, risco de acidentes por cataplexia, necessidade de cochilos programados em intervalos de trabalho ou estudo”, adverte Goulart.
O estudante de medicina diz que mesmo em tratamento e tendo aprendido a lidar com a síndrome, ainda tem muitas crises de sono de dia. “Isso me deixa abalado de certa forma. Essa rotina afeta, principalmente, os meus estudos e as relações sociais. E depois de cada crise de sono durante o dia fico muito triste. Quanto mais crises de sono eu tenho, mais triste fico. É um ciclo que se retroalimenta sempre”, conta Vitor Dmetruk Carvalho, que faz consultas de rotina no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), com uma equipe médica formada por um neurologista, um médico do sono e um psiquiatra.
Atualmente, ele convive com professores e colegas de faculdade que compreendem a situação e o ajudam na rotina de estudos. “Consegui me cercar de mais pessoas que entendem e demonstram empatia em relação às minhas dificuldades e necessidades. Essa rede de apoio faz muita diferença na minha vida”, assegura o estudante de medicina.