“Carona não governa rédea”, dizia meu avô, sábio lavrador e pecuarista, homem de hábitos simples e complexa sabedoria da vida. E se ele estava certo, como geralmente estava, não há nada mais normal que ver as mulheres deixando as garupas dos modernos cavalos de aço para assumir suas rédeas de ferro e carbono, donas que são de seus destinos e vontades. Se o empoderamento feminino é uma realidade que se constrói em todas as instâncias da contemporaneidade, não seria diferente em um meio profundamente ligado à masculinidade como o motociclismo.
A cirurgiã dentista Maria Cristina Belo de Araújo, 58 anos, que refuta para si o adjetivo “empoderada” (“É muito para mim.”), é senhora da própria sorte. Começou acompanhando os irmãos em uma Honda CG 125 aos 18 anos e decidiu escrever elas mesma seu caminho no asfalto. Hoje, a bordo de uma Yamaha Virago 535, roda grandes distâncias. O recorde foi uma esticada até Palmas, no Tocantins: 4.270km, ida e volta. Mas também já encarou Foz do Iguaçu (PR), Curitiba, Prado (BA), Pirapora (MG), Brasília… fora os bate-volta aqui pelas redondezas. “Tenho planos de fazer outras viagens em breve. Cada vez aumentando mais a quilometragem”, projeta a motociclista.Embora não pertença a motoclube algum, é com vários deles que Cristina faz as maiores viagens, como a primeira, para Prado, no Sul da Bahia. “Não sou integrante de nenhum, mas carrego no coração e com carinho todos eles.”
A assistente de contabilidade Adriana Ferreira Lima, 37, por sua vez, permanece fiel a seu primeiro motoclube, o Jaquetas Negras, do qual faz parte há 13 anos. Atualmente, são apenas duas mulheres em um clube de 40 integrantes. E nem por isso Adriana se sente menos respeitada.
“A amizade nesse meio é maravilhosa. Considero os Jaquetas Negras minha família.”
Perfil clássico de motoclubista, sobre sua Honda CB 500F Adriana vai a tantos encontros quanto pode. “Amo rever amigos que conquistei nas estradas, pessoas de todas as idades, de várias lugares do país.” E não apenas isso. “Uso a moto para trabalhar, levar filho pra escola, faculdade. É uma válvula de escape do estresse do dia a dia.”
Mas é girl?
Nem só de estradeiras se faz a classe das mulheres motociclistas. Aline Possato, 36 anos, trabalhava como garçonete e, na ausência de ônibus nas pouco amistosas madrugadas juiz-foranas, comprou uma Honda Biz para ir embora em segurança, sem depender de ninguém. Chegara a hora de sua independência. Porém, como ocorreu com muitos brasileiros, a crise econômica fez com que Aline perdesse o emprego no fim do ano passado. De meio de locomoção, a moto passou a meio de vida. Nascia a Aline “motogirl”, uma das poucas de que se tem notícia em Juiz de Fora. “Que eu saiba, tem mais uma só”, diz a motofretista que especializou-se em carregar bolos e doces, fruto de contatos que fez ao longo dos anos trabalhando em festas e recepções. Trocou a Biz por uma Yamaha Fazer, adquiriu uma mochila específica para o transporte de suas delicadas cargas, e o negócio vai muito bem, obrigado. Só há um certo estranhamento quando chega no local da entrega: “estão sempre esperando um ‘boy’, e não uma ‘girl’!”.
A exemplo de Aline, a jornalista Cris Hübner, 36, repórter e locutora das rádios CBN e Solar FM, além de apresentadora da TV Alterosa, também comprou uma moto de baixa cilindrada, uma Shineray 50 cilindradas, por uma questão de mobilidade. Mas não apenas isso. “O que eu acho mais incrível, além da economia do combustível, praticidade e rapidez para chegar aos locais onde eu quero, é o vento no rosto e a sensação de liberdade que a moto oferece. A relação com a motocicleta, no meu caso, é muito mais do que facilitar minha rotina. É a leveza que ela me passa.” Como muitas mulheres, Cris saiu da garupa dos tios e primos na pequena cidade de Lajinha, na Serra do Caparaó, para assumir o guidão da própria vida. E quer mais. “Hoje tenho motinha, mas um dia terei motão”, diverte-se.
Na natureza selvagem
Ter “motão” é condição primordial para o sucesso de Késsia Tristão, 30, no mundo do motociclismo. Ela começou a fazer trilhas no Espírito Santo há dez anos, influenciada por amigos, e logo apaixonou-se pelo off road. Diferente de Cris, Aline, Cristina e Adriana, Késsia sequer usa motocicleta no dia a dia. Seu negócio é andar na natureza. Competir. E vencer, como tem vencido. A estreia da engenheira agrônoma nas provas de regularidade aconteceu no Ibitipoca Off Road de 2013. Daí passou a disputar o Campeonato Capixaba de Enduro e outras provas esporádicas, como o Brasileiro de Enduro FIM, o Ibitipoca Off Road e o Enduro da Independência, nos quais faz roncar sua Honda CRF 250F.
Preconceito, há?
Num meio tradicionalmente masculinizado como os motoclubes, as competições e os corredores apinhados de motofretistas e cachorros-loucos, deve ser barra-pesada ser mulher, penso eu, que aprendi a pilotar graças à paciência e gentileza de uma tia, muito querida e decidida, em sua Yamaha RDZ e, depois, na sua DT 180. Mas talvez eu pense errado. Entre as personagens desta reportagem, apenas Késsia Tristão, talvez por habitar o mundo não raro inclemente das competições, denunciou algum tipo de preconceito. “Já fui julgada por alguns dizendo que eu não conseguiria completar uma determinada prova, e já ouvi outros falarem que as mulheres atrapalham as provas”, relata.
Adriana e Cristina, por seu turno, ressaltam o companheirismo de quem anda na estrada. “Preconceito ali não existe… tenho admiradores, pessoas que torcem por mim”, ao que Cristina faz coro: “Nunca sofri nenhum preconceito por parte dos irmãos motociclistas e nem mesmo de pessoas de fora do meio. Pelo contrário, me parabenizam”. Já o olhar de estranheza para a motogirl Aline a cada entrega realizada rapidamente se transforma em admiração.
“Recebo bastante elogios e incentivo para continuar fazendo meu trabalho.”
Ela só não soube dizer, enquanto colocava o capacete após nossa conversa, o que diriam os colegas quando vissem esta reportagem. “Eu acho que eles vão ficar doidinhos de ciúmes!” E foi-se embora, rindo e acelerando no trânsito caótico do fim da tarde em Juiz de Fora.