A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estima que, anualmente, quase 30 mil toneladas de medicamentos são jogados no lixo pelos consumidores por estarem vencidos, não serem mais utilizados ou porque o tratamento acabou. Deste total, cerca de 20% são descartados de forma irregular, em lixo doméstico ou lançados na rede de esgoto, conforme consta no artigo Diretrizes para um Programa de Recolhimento de Medicamentos Vencidos no Brasil, com base em pesquisa realizada pelo Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Fundação Oswaldo Cruz. Uma preocupação é que o descarte incorreto de medicamentos pode gerar impactos nocivos às pessoas e ao meio ambiente.
Há toda uma logística que faz um medicamento chegar até nossa casa, uma trajetória que se inicia com matéria-prima, seleção e padronização desse composto até as fases de armazenamento, distribuição e dispensação do mesmo. No entanto, o que acontece com o fármaco após ser entregue às mãos do paciente ainda é pouco discutido. A chamada logística reversa é responsável por analisar a melhor destinação a partir do momento em que o medicamento não é mais utilizado, promovendo o descarte adequado.
Para o professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Juiz de Fora (UFJF) Maurílio Cazarim, ainda há uma crença equivocada no país de que o medicamento consiste em lixo comum. “Muitas pessoas pensam que, a partir do momento em que já não usam mais o remédio ou está vencido, pode ser eliminado no vaso sanitário, na pia ou no lixo comum de casa, porque é pequeno, vai sumir e não produziria nenhum efeito no ambiente.” Porém, como é um produto químico farmacológico precisa ser descartado em farmácias ou unidades de saúde.
Para o descarte ser realizado de forma correta, é necessário que esses locais tenham recipientes adequados para separação de acordo com o tipo do fármaco. Maurílio explica que as cápsulas e os comprimidos serão descartados na categoria produto químico sólido. Há, ainda, a categoria de semi-sólidos, incluindo cremes e pomadas, de líquidos e outra destinada a spray e aerossol, que requerem tratamento próprio. Já o resíduo de lixo comum deve receber caixas e bulas. Por fim, em alguns estabelecimentos, existe um espaço específico para a separação do chamado blister – embalagem que envolve o medicamento -, que, via de regra, costuma ser incinerado. Em algumas iniciativas, essa embalagem pode ser reciclada, com a extração do alumínio ou do plástico, após um tratamento para eliminar os compostos do fármaco.
“Nesse processo é preciso fazer uma identificação antes de lacrar a sacola do resíduo, com um número definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para cada classe de resíduo, além da identificação por imagem e escrita, como prevê a Anvisa”, explica o professor. Em seguida, é feita pesagem, e a sacola é levada para um ambiente de quarentena para aguardar a coleta, que pode ser realizada por empresa terceirizada ou contratada. Por fim, o tratamento final visa a reduzir os impactos no ambiente e na saúde coletiva, podendo ser um incinerador (queima dos resíduos), coprocessador (aproveitamento dos resíduos como substituto parcial de matéria-prima e/ou de combustível) e aterro sanitário em caso de lixo comum.
Impactos do descarte incorreto
De acordo com dados levantados pela companhia Brasil Health Service (BHS), um quilo de medicamento descartado via esgoto pode contaminar até 450 mil litros de água. Estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Biológica e da Faculdade de Farmácia da UFJF identificou nove micropoluentes em amostras de água coletadas do Rio Rio Paraibuna. A maioria consistia em produtos farmacêuticos, principalmente remédios utilizados no tratamento de doenças como diabetes e hipertensão arterial.
Os medicamentos descartados incorretamente podem contaminar o lençol freático. Maurílio explica, ainda, que as estações de tratamento não são suficientes para reter todo resíduo farmacológico químico nas águas. Diluído, esse resíduo pode interferir no metabolismo e no comportamento de organismos aquáticos, causando desequilíbrio ecológico. Um exemplo, alvo de estudos, é o declínio da população de espécies de animais após contato com o composto químico de anticoncepcionais presente em rios, uma vez que esse medicamento gera impactos na reprodução.
Além disso, a população mundial está cada vez mais exposta à água contaminada por antibióticos, segundo relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), da ONU. O documento alerta que 90% dos antibióticos são lançados no meio ambiente ainda como substâncias ativas. Os cientistas explicam que, uma consequência, é o surgimento de doenças resistentes, em função do contato de microrganismos com antibióticos no solo, que dão origem a superbactérias. Em 2019, as infecções que apresentaram resistência a antibióticos foram associadas à morte de mais de um milhão de pessoas.
Lei para o descarte correto
Desde a criação da Anvisa em 1999, o primeiro marco importante para regulação sanitária dos resíduos de saúde foi a RDC 306 de 2004, a qual começa a delinear o Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde (PGRSS). Antes existiam algumas legislações ambientais, que não davam conta de abranger a complexidade da fiscalização desse gerenciamento, explica o professor Maurílio. Posteriormente, em 2009, a agência permitiu que farmácias e drogarias participassem de programas de coleta de medicamentos descartados pela comunidade, mas ainda era voluntário ou facultativo.
Em 2020, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabeleceu como obrigatoriedade o correto descarte de medicamentos no Brasil. O decreto federal 10.388 instituiu o sistema de logística reversa de medicamentos domiciliares de uso humano – vencidos ou em desuso -, bem como da embalagem de remédio após o descarte. Com isso, surgiram os pontos de coleta, como as farmácias e os postos de saúde.
Desde 2016, Juiz de Fora conta com uma lei sobre o tema. O decreto 13.442 torna obrigatória a instalação de pontos de coleta em farmácias, drogarias e farmácias de manipulação para recolhimento de medicamentos impróprios para o consumo ou com data de validade vencida. O descumprimento caracteriza infração sanitária grave, implicando, em última instância, na cassação do alvará de funcionamento do estabelecimento. O Departamento de Vigilância Sanitária realiza a fiscalização destes estabelecimentos na frequência mínima anual, observando se o coletor dos remédios é disponibilizado para a população, informou a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF)
A Farmácia da UFJF possui um ponto de coleta. Além disso, o curso promove uma ação extensionista com os acadêmicos e a comunidade para esse entendimento da logística reversa, através da produção de materiais educativos e realização de campanhas, para sensibilizar as pessoas sobre a forma de descarte correto. O projeto é coordenado por Maurílio desde 2019.