Enquanto muitos são obrigados a se isolar em suas casas, os médicos são convocados a ocupar seus postos, enfrentando incansáveis horas em hospitais, que não só separam os pacientes de seus lares, mas retiram dos médicos – e de todos os profissionais da saúde – o direito de conviver com suas famílias. Muitos se foram durante o ofício, muitos lutaram e ainda lutam para que pessoas sejam curadas e vidas sejam preservadas. Estudos mostram que nenhum outro grupo sentiu de forma mais aguda os efeitos da pandemia do que homens e mulheres que compõem a força de trabalho na área de saúde. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a cada minuto, um profissional é infectado pela Covid-19.
No ano em que os médicos se tornaram os protagonistas em meio a uma pandemia sem precedentes, a Tribuna traz histórias de reconhecimento, amor, e humanidade. Em meio a tantos cuidados redobrados, há sentimento, há solidariedade. Por trás de camadas extras de EPIs, há carinho e gratidão.
A pandemia do novo coronavírus reforça a importância, o valor e o reconhecimento da função social desses profissionais dedicados e, na maior parte do tempo, anônimos por trás de suas máscaras e aventais, representando os verdadeiros heróis, enfrentando incansáveis horas em hospitais públicos e privados, unidades de saúde, muitas vezes improvisando técnicas e driblando a falta de materiais básicos e urgentes para aliviar a dor alheia, oferecer apoio e esperança, salvar vidas.
O encontro e o último adeus
A dor ainda latente. Mãe e filha perderam o marido e o pai na batalha contra o coronavírus. O que poderia ser uma história de perda e sofrimento aos poucos se transforma em um relato de gratidão, graças ao esforço da equipe médica do Hospital Unimed.
Era para ser mais uma quinta-feira, mas Alexei Divino, 52 anos, acordou com mal-estar. No início da semana, o jornalista e produtor audiovisual esteve no velório de uma tia e lá se emocionou. Os sintomas acompanhados da obesidade e da diabetes controlada acenderam um alerta na esposa, que passou a suspeitar que o marido tivesse sido infectado pelo coronavírus. “Vamos fazer um exame”, orientou a companheira Solange Montilha, para afastar a dúvida.
Já com destino ao hospital, o casal se despediu da filha, Isadora, de 14 anos, que participava de uma aula on-line e ao pai disse: “Mais tarde a gente se vê”. Alexei foi submetido ao exame para detectar o vírus e, após três horas, veio a notícia de que precisaria de internação, surpreendendo todos, uma vez que os sintomas não eram graves, porém a situação era agravada por pertencer ao grupo de risco.
Foi aí que o jornalista fez contato com a esposa e realizou uma ligação para acalmar a filha. “Ele iria voltar. A gente tinha certeza. Mas, a partir daí, não tivemos mais contato”, afirmou Solange. No hospital, sua condição variava, e foi preciso ir para a UTI . Desde então, Isadora repetia sucessivas vezes que não tinha se despedido do pai. E Solange implorou à equipe médica que deixasse a filha ter contato com pai antes de ir para a UTI. “Meu coração estava inquieto. Eu não sabia lidar com ela naquela situação. Ele saiu para um exame e não voltou mais.”
Para promover o encontro, Solange se dispôs a assinar documentos assumindo a responsabilidade, e a visita, enfim, foi autorizada. A máscara, a touca, o gorro e todo o aparato para garantir a segurança de ambos, eram só um detalhe diante daquele momento especial. “Isadora abraçou o pai, pegou na mão dele e pôde ouvir que ele a amava, que estava tranquilo e que iria sair dessa. Foi muito importante para ele e ela. O combinado era eu ficar no hall. Ele passou por mim rumo à UTI, e, de longe, pude declarar meu amor”, disse Solange.
“O afago que eu não podia dar”
Na UTI, as ligações em vídeo amenizavam um pouco a saudade e a falta do toque. Apesar da angústia de ter um familiar internado, o afago da equipe médica deixava confortado o coração daqueles que estavam longe. “A enfermeira segurava o telefone, entrava na nossa conversa e fazia carinho nele. Tem ainda quem leva o café, quem limpa o quarto e faz uma piadinha. São essenciais para que a pessoa que está doente se sinta mais confortável. Você saber que tem alguém ali dando um afago que eu não podia dar marcou demais. Eu tinha a certeza que ele estava cercado de carinho.”
As ligações para a família aconteciam em dias alternados e, no sábado, quando teria outra chamada, Alexei foi intubado. No mesmo dia, Solange descobriu que estava com Covid-19. Perdeu olfato e paladar. “Confundi com crise de sinusite. Entrei em pânico. Em alguns momentos, eu só pensava como iria ficar minha filha. O pai grave, a mãe com a mesma doença, mas não evoluiu em mim.”
Todas as tardes, durante o período em que esteve na UTI, era grande a apreensão e expectativa para os boletins médicos que informavam sobre o Alexei. As notícias, no entanto, começaram a não ser animadoras. Os rins pararam de funcionar. Depois, uma infecção hospitalar complicou ainda mais o estado de saúde do jornalista. Na sexta-feira, dia 7 de agosto, num horário nada habitual, o telefone toca. Do outro lado da linha, depois de fazer uma série de relatos, a médica disse “ele piorou e veio a óbito”. “Caiu uma pedra na minha cabeça”, contou Solange, emocionada.
Ao tratamento dado ao marido e à oportunidade de encontro e último adeus proporcionada pela equipe médica, não tem palavras que definam. “Enquanto eu viver, vou contar essa história. Que continuem pautado as decisões médicas com humanidade. Não é só dar remédio, é saber que o paciente tem um rosto, uma família, uma história. A dele não terminou com as paradas cardíacas. Ela vai ficar para sempre na minha memória.”
Mais que um paciente, um amigo
Era mais um dia de plantão para o jovem cardiologista Lucas Nicolato Almada, quando ele conheceu um rapaz de 20 e poucos anos, que acumulava diagnóstico de câncer e positivado para a Covid-19. No Hospital Albert Sabin, ele deu entrada com insuficiência respiratória e, por isso, eram grandes as chances de intubação. O paciente, estudante de medicina, lutava contra um linfoma há pelo menos quatro anos. “O pulmãozinho dele estava todo tomado de líquido por conta do processo inflamatório do câncer. Ele chegou a ter falta de ar, e sabemos que a taxa de mortalidade relacionada à Covid em pacientes que precisam de respiração mecânica é maior. Uma oncologista pediu para rever essa possibilidade, porque ele não queria ser intubado. Dessa forma, com medicação e drenagem de tórax, ele teve um excelente resultado, talvez um dos melhores que já presenciei. Uma medicação simples em pessoas que têm alegria e vontade de viver traz resultados incríveis, e com ele foi assim. Não precisou ir para a UTI”, conta o cardiologista.
“Minha história com o coronavírus é a de um paciente paliativo, um cara alegre, da mesma área que a minha, que lutava pela vida e era extremamente grato. Esse carinho que tiveram comigo e com toda a equipe nos marcou muito”
Lucas Nicolato Almada
Cardiologista do Hospital Albert Sabin
No quarto, passado o período de tratamento da Covid, e ainda com algumas debilitações, médico e paciente estreitaram os laços. “Ele me contou que era graduando de Medicina, já no 11º período da faculdade e queria se especializar em neurologia. Mas falávamos também de assuntos variados, até mesmo para distrair aquela rotina hospitalar, quando me contou do gosto por motos e futebol.”
Com plantões praticamente diários naquele hospital, Lucas era chamado pelo estudante a toda hora. Lucas acompanhou o processo bacteriano no pulmão, que se aproveitou de uma estrutura já debilitada. O rapaz estava consciente do seu estado de saúde e ao médico fez um pedido corajoso: “não me deixa sofrer”. Botafoguense, o médico presenteou o estudante com uma camisa do Flamengo, seu time. Por oito dias seguidos, a roupa virou uniforme. Só foi retirada para lavar e logo, trazida de volta pela namorada, que também é médica.
Um final de semana separou Lucas da sua dose diária de gratidão em forma de gente. De volta aos plantões, na semana seguinte, o garoto cheio de vontade de viver apresentou novamente falta de ar, e o pulmão já não tinha ausculta. Com o pai ao lado e usando o código 3, jargão entre os médicos para algo imediato, ele gritou por Lucas, que estava almoçando e não ouviu. Um colega o avisou, e ele logo chegou no leito. Lá estava seu companheiro de alguns dias bastante debilitado e com medo de morrer. “Eu falei brincando: vamos colocar a camisa do Flamengo, porque da última vez deu sorte”.
Mesmo ofegante, ele trazia um sorriso no rosto e dizia saber tudo o que estava acontecendo. “Chamei o pai e expliquei que ele estava partindo. Precisava saber o que a família queria fazer. Naquele momento, eu tive certeza da vontade de todos, que era amenizar as dores e cumprir o desejo dele de não sofrer”, disse Lucas.
“Eu não estou perdendo só meu filho, estou perdendo meu melhor amigo”, revelou o pai ao médico. Naquele mesmo dia o cardiologista precisou se deslocar para outro compromisso médico e, no caminho, recebeu uma ligação. Do outro lado da linha, ele ficou sabendo que aquele que chamou de gratidão tinha partido, mas deixou plantada uma semente de carinho, afeto e agradecimento. Não deu tempo de se despedir, porém a camisa presenteada pelo “doutor” teve tamanha importância na vida breve do estudante que ele se foi vestido com ela.
Essa é uma das tantas histórias vivenciadas pelo cardiologista Lucas Nicolato Almada, médico de 30 anos. Ele está entre os muitos profissionais da linha de frente que se infectaram com a Covid-19. Apesar das incertezas, ele costumeiramente transita com uma máscara de proteção que se assemelha à de um super-herói e transforma a rotina de dor em ternura e cuidado quando olha no olho de cada paciente, pergunta o nome e, antes mesmo de qualquer avaliação médica, quer saber como aquela pessoa se sente. “Minha história com o coronavírus é de um paciente paliativo, um cara alegre, da mesma área que a minha, que lutava pela vida e era extremamente grato. Esse carinho que tiveram comigo e com toda a equipe nos marcou muito. Eu só sinto gratidão”, reforça Lucas.
Cercado de cuidado e paciência
A morte à espreita. Três semanas de internação, duas delas na UTI. A seu alcance, apenas os olhos da equipe médica. Assim foi a rotina do primeiro paciente grave positivo para a Covid-19 do Hospital Monte Sinai considerado recuperado. Daniel Sales Pimenta, de 57 anos, transitava entre a lucidez e a inconsciência. Desde então, tudo mudou.
Era março quando o professor universitário havia retornado de férias da casa da filha, na França. No terceiro dia, já no Brasil, os sintomas da doença começaram a surgir. Febre intermitente, dor no fundo dos olhos, tosse acompanhada de dor de cabeça e o diagnóstico positivo para o coronavírus. Foram mais de 20 dias internado até a alta médica, em abril.
Sua cura foi atribuída à ciência e a muitas orações, dentre elas as dos profissionais de saúde envolvidos no tratamento. “Eles faziam corrente de oração. Apesar de eu não ter criado vínculo com uma única equipe, pois trocavam o plantão, todos tiveram muito carinho comigo. No quarto, um médico acendeu um incenso, e aquilo me deu tanta confiança. Eu sou da natureza, gosto dessa conexão. Me senti em casa. Foi uma quebra de protocolo essencial que me deu força para enfrentar uma doença totalmente desconhecida. Os médicos tinham expectativa com a chegada de algum paciente, fui eu. Eu era teimoso, cuspia no quarto para ninguém entrar lá. Arrancava os equipamentos acreditando que eles estavam me dopando. Foi preciso me amarrar. Mesmo assim, estava cercado de cuidado e paciência”, detalhou.
Professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conhecedor da natureza e envolvido em muitos grupos, Pimenta contou com a mobilização, ainda que à distância, de várias partes do país e de diferentes credos: espíritas, protestantes, católicos, evangélicos, umbandistas, candomblecistas, gente aplicando reiki. “Foi muita força espiritual”, disse o professor que vai contar sua experiência em um livro, ainda sem previsão de lançamento.
Pai de quatro filhos, passados seis meses da internação, Daniel segue com a mesma gratidão a todos aqueles que o assistiram em algum grau no tratamento. “Agradeço minha cura a Deus, à espiritualidade e aos médicos que saíram do tecnológico e foram para o afeto. O sentimento de total gratidão ainda está vivo em mim”, disse, relembrando a comemoração de seu aniversário pela equipe médica um dia antes de ter alta. A festa foi também para comemorar uma nova fase da vida. “Na data do meu aniversário, eu estava indo para a UTI, mas eles não se esqueceram . Os médicos, enfermeiros e toda a equipe são treinados para nos tratar com medicamentos e não para fazer festinha e olhar com carinho. Mas foram humanos. Por isso eu digo sempre que foram fundamentais para minha recuperação.”
O desafio diante de uma nova doença
Quando o coronavírus chegou ao Brasil, em fevereiro, os médicos se viram diante de uma doença nova. O que se sabia era seu alto grau de contágio, mas sem protocolos de tratamento totalmente definidos. Era um desafio inédito para a geração de profissionais de saúde de todo o país, que até então, nunca havia enfrentado um problema dessa magnitude, como revelou um dos responsáveis pelos tratamento do professor Daniel Pimenta, o infectologista Eduardo Carvalho Siqueira. “Apesar de haver alguns protocolos, não havia experiência para tratar casos de Covid. O caso de Daniel foi bem próximo do período em que se decretou a transmissão dentro do próprio país. Como ele tinha retornado da Europa e já com sintomas, o diagnóstico foi fácil. Ele foi o primeiro paciente que precisou ser intubado. A dificuldade deste primeiro momento era como atender esses pacientes diante de uma doença totalmente nova, com potencial de ter casos graves e internações longas, podendo levar qualquer sistema de saúde ao colapso”, conta o profissional que, desde fevereiro, acompanhava o primeiro caso suspeito da enfermidade em Juiz de Fora.
“Tínhamos medo de não dar conta do trabalho, de não conseguir controlar o coronavírus em um sistema bastante estrangulado e de não conseguir êxito nos tratamentos. Mas, juntos, temos minimizado os efeitos da pandemia”
Eduardo Carvalho Siqueira
Infectologista do Hospital Monte Sinai
Ele lembra que no começo havia um “pânico”, não só entre as pessoas leigas, mas entre os próprios profissionais de saúde, sendo necessário se adaptar com o “carro andando”. Por trás da máscara, o medo de contrair a doença e levá-la para casa. “Não tenho contato com meus pais e com pessoas mais velhas da minha família. Tínhamos medo de não dar conta do trabalho, de não conseguir controlar o coronavírus em um sistema bastante estrangulado e de não conseguir êxito nos tratamentos. Mas, juntos, temos minimizado os efeitos da pandemia. Ver a cura de alguém dá ânimo e compensa todas as adversidades com as quais ainda estamos aprendendo a lidar”, diz. Em relação ao episódio do professor Daniel, o infectologista acredita que a postura positiva do paciente, aliada à confiança na equipe médica e ao apoio dos filhos, foi essencial para a melhora e consequente recuperação.