O trem é o barulho de fundo das três conversas. Faz tremer o chão. Mas o costume é tão grande que ele não atrapalha: faz parte do cenário, daquele cotidiano do bairro que parece cidade. Maior que muitas, inclusive, o Bairro Benfica é tão antigo quanto Juiz de Fora, de certa forma. A partir dele, a Zona Norte da cidade começou a se desenvolver. A sua história de formação remete a tantos períodos que, até nisso, se assemelha a uma cidade. “Benfica tem vida própria”, afirma o pesquisador Vanderlei Tomaz, que, a partir de sua própria história, passou a pesquisar a história do bairro onde nasceu e mora até hoje. “É coisa de cidade pequena mesmo”, resume o artista plástico Yure Mendes ao falar da vida do bairro, de onde prefere não sair. “Não dependemos nada de Juiz de Fora”, afirma Paulo Marcelo da Silva, presidente da Escola de Samba Rivais da Primavera que, ao falar do Centro da cidade, fala seu nome, “Juiz de Fora”, como se fossem dois lugares completamente diferentes.
Partir do Centro da cidade rumo a Benfica é mesmo um trajeto longo e isso explica essa independência sentida pelos moradores. Por causa dessa distância, o bairro foi buscando formas de existir sem precisar ir à região central. Isso reflete na cultura, na educação, nos processos todos que envolvem Benfica.
Mas é necessário voltar na história, como ressalta Vanderlei. Ele sugere que se comece pela divisão dos territórios em sesmarias, quando o Brasil ainda era dependente de Portugal. Nessa época, o trajeto que passava por Juiz de Fora era o Caminho Novo, que passava pela represa João Penido, na região da Barreira do Triunfo. Ou seja: qualquer indício de Benfica não existia até então.
Em 1836, então, o engenheiro Henrique Halfeld chegou por essas terras abrindo os caminhos desde Ouro Preto, a então Vila Rica. “Quando chega nas imediações da Barreira, ao invés de seguir em direção a João Penido, por onde passa o Caminho Novo, ele tomou o caminho para cá, em direção a Benfica. Ele atravessou o Rio Paraibuna. E ali fez uma ponte para atravessar. Até então, o Caminho Novo sempre correu na margem esquerda do Rio Paraibuna. O Halfeld fez um novo traçado na margem direita. Quando falam dessa história, sempre pensam na Rio Branco, mas o Halfeld abriu a Juscelino Kubitschek. Antes de chegar na Rio Branco, ele passou aqui. Ele fez a ponte e esse ‘retão’ todo é uma herança dele”, narra Vanderlei.
A partir disso, várias datas são essenciais para entender essa formação. Em 1847, por exemplo, Benfica já aparecia no mapa e já com esse nome. O nome “Benfica”, de acordo com Vanderlei, parte de uma fazenda que existia naquele lugar, que pertenceu a Manoel Mendes de Serqueira. “Existe uma lenda que fala que o nome parte de uma história que o cara ia despedir de sua mulher e ela gritava: ‘Bem, fica’. Isso é lenda. O nome deve-se simplesmente à fazenda.” Ela, no entanto, não existe mais, nem seus vestígios.
Já em 1877, cria-se a Estação de Benfica: a responsável pela trilha sonora do bairro. O núcleo populacional foi se criando em volta dela, porque o transporte era tanto de mercadoria quanto de pessoas. Já em 1890, o bairro sedia uma feira de gado que intensifica ainda mais a população na região. Na época, inclusive, Vanderlei descobriu que Machado de Assis passou por lá, representando o governo. Já em 1914, surgiu o ramal que vai para Lima Duarte. Isso foi criando núcleos populacionais no caminho, inclusive para além de Benfica.
Nesse tempo, tantas outras cenas aconteceram que fizeram firmar Benfica. O grande marco foi a inauguração da Fábrica de Estojos e Espoletas de Artilharia do Exército (FEEA), hoje Indústria de Materiais Bélicos (Imbel), nos anos de 1930. Getúlio Vargas, presidente da época, esteve na inauguração. Foi a fábrica a maior responsável pelo crescimento populacional de Benfica, já que, em uma época, ela teve mais de dois mil funcionários. Com ela, surgiu a vila operária que abrigava esses trabalhadores. Foi em uma delas que Vanderlei nasceu, por duas parteiras.
Na região central de Benfica, outro fato foi importante, de acordo com Vanderlei: “Aquela parte pertencia ao Coronel Jeremias Garcia e seus herdeiros. Nos anos 40, quando ele morreu, sua mulher, a Dona Inês Garcia, conseguiu aprovar na prefeitura a criação do loteamento Vila Benfica, que é toda essa região central. Cristalizou Benfica como nome”. E, então, em 1962, surgiu o Distrito Industrial. O crescimento avançou ainda mais: quem trabalhava lá, queria morar pelo bairro.
Nessa mesma época, Benfica se tornou distrito de Juiz de Fora, com a intenção de se transformar em cidade. Já havia independência. “Houve um movimento contrário muito grande, porque estava recebendo o Distrito Industrial que seria a redenção econômica de Juiz de Fora. Por isso o movimento contrário. Isso tirou a condição de distrito e voltou a ser o bairro da cidade.”
Benfica pessoal
Para além das linhas das histórias, estão as linhas individuais que formam o bairro: as lembranças que rodeiam aquele espaço de memória afetiva. Paulo, que lá nasceu, por exemplo, lembra desses detalhes que marcaram sua infância: “Nós tínhamos campinho de pelada. Esse rio aqui a gente nadava nele. Bebia até a água dele. Hoje, você não pode nem entrar. Tinha uma fazenda. Uma mata. Tinha muita coisa pra brincar, brincadeira de criança. Tudo na rua”.
Desde o primeiro desfile da Rivais da Primavera, Paulo se viu dentro da escola. Quando chegou ao bairro, ainda como bloco, vinda de uma família de Lima Duarte, Paulo afirma que a aceitação da comunidade foi outra. “A família toda participava. O primeiro samba-enredo, o compositor é meu pai, de 1972. Todo mundo estava junto, agora dispersou. E eu estou tentando resgatar. Ver se o pessoal retorna. Mas não é como era antes”. Esse sentimento permeia sua própria percepção do bairro: “Tudo mudou, mas nada mudou. Mas a gente tinha mais liberdade antes”.
A escola de samba é apenas uma das vivências culturais do bairro. Yure chegou ao bairro com três anos. “Não tenho referência de nenhum outro lugar”, afirma. Inclusive, tornar-se artista tem muito a ver com o bairro: “Eu estar num bairro me propiciou ter espaço. A gente tem mais liberdade para ter acesso a coisas. Se eu estivesse no centro, talvez eu não teria acesso à metalurgia e, então, ser artista”. Foi trabalhando em uma serralheria que ele começou a fazer suas esculturas, primeiro como brincadeira.
Mas estar nesse lugar é importante até nesse entendimento de comunidade. “A arte é contemplação. A convivência com as pessoas de diferentes ocupações, outras culturas, a gente escuta outras coisas e percebe as questões. Entende as dinâmicas e isso auxilia no processo de ser artista. O fato de eu ser comunicativo ou não tem muito a ver com o lugar onde estou e cresci.”
No Bairro desde sempre, Yure conseguiu acompanhar as alterações na paisagem, cada nova paisagem que se formava. “A paisagem foi se alterando. Tem lugares que eu lembro como casinhas e hoje são um prédio. Tinha terreno vazio e já não tem mais. Na frente da minha casa eu via um morro com vários coqueirinhos. Hoje tem uma torre de 15 andares. Eu vejo um monte de janelas. E o legal é que fui acompanhando gradativamente. Vai mudando.”
Hoje, sua arte ainda é exposta na Praça CEU: importante equipamento cultural do bairro. Lá, fica a escultura “Casa de vó”, que ele fez com base nas memórias que tem de sua avó que, apesar de não morar em Benfica, guarda semelhanças com o entendimento que se tem das vivências antigas no bairro. “São memórias que as pessoas dos bairros se identificam. As vivências que eu tenho coincidem com as de outras pessoas.”
Vanderlei acredita que é contando essas histórias que se descortina um passado ainda desconhecido na cidade. “Eu compreendo que a história de Juiz de Fora não pode ser contada apenas sobre tudo o que ocorreu naqueles limites do Mariano Procópio e da Usina de Marmelo. É preciso pensar que a ocupação do nosso território é muito mais ampla do que esse espaço que é mais cantado em verso e prosa. É preciso resgatar a história das periferias, das zonas rurais.” O trabalho é mesmo de formiguinha. Mas o esforço é coletivo.