Marcos Pimentel se lançou no documentário tendo como principal marca a observação contemplativa e silenciosa sobre os personagens-tema de suas produções. Até 2019, essa forma dava conta de contar as histórias que o interessavam. Mas, a partir daquele ano, as coisas foram mudando. Tornou-se essencial, de acordo com ele, falar sobre os processos opressores sofridos por determinados grupos, no Brasil. O primeiro registro dessa mudança foi o lançamento de “Fé e fúria“, de 2019, que coloca luz sobre as violências contra as religiões de matrizes africanas nas favelas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Depois, em 2021, nasce “Pele”, que fala, a partir das artes urbanas, sobre medos e desejos que habitam os grandes centros. Agora, o documentarista juiz-forano, em seu mais novo filme, o “Amanhã”, lançado no Festival Internacional de Documentários “É tudo verdade”, dá conta das linhas imaginárias que circundam Belo Horizonte, principalmente a Barragem Santa Lúcia.
Essa situação, no entanto, é geral: atinge muitas famílias que ganham voz no relato de três crianças que vivem em diferentes condições no lugar, separados por uma barreira nem tão imaginária assim. “Esses três filmes chegam para falar de processos urgentes que a gente está experimentando e de muitas opressões que determinados grupos estão sofrendo e precisam gritar para o mundo. Acho que eu não consegui ficar sem falar sobre essas coisas. Houve uma mudança (no formato dos documentários), porque eu precisava abrir espaço para que essas histórias fossem contadas”, justifica-se.
Juiz-forano, Marcos mudou-se para Belo Horizonte em 2002. Entre tantas coisas nesse processo de observação da nova cidade, o que mais chamou a sua atenção foi a Barragem Santa Lúcia, que fica na Região Centro-Sul da capital. O lago artificial, feito conter inundações na região, tem, em seu redor, uma pista de caminhada. Ele também, de certa forma, separa duas condições de moradia: um conjunto de favelas e dois bairros de classe média-alta. “(Esse formato) coloca cara a cara dois universos que são muito diferentes. A barragem deixava claro essa diferença. No início dos anos 2000, o povo que morava no bairro ia fazer caminhada e, apesar de a pista ser circular, eles caminhavam em meia lua. Ia de metade a metade. É como se existisse uma linha imaginária e cada um tivesse o seu lado. As pessoas que moravam na favela também tinham seu lado. Cada lado respeitava seu lado. Cada um tinha sua metade”, descreve. Foi a partir disso que ele decidiu escolher duas crianças, uma da favela, outra do bairro, para se encontrar e passar dois finais de semanas juntos: um na casa de um, outro na casa do outro. Os dois tinham a mesma idade.
“Eu queria ver o que ia acontecer com isso”, revela Marcos. Ele gravou, então, esses encontros de maneira a registrar como foi essa relação entre pessoas vizinhas, mas tão diferentes. “O menino da favela sumiu muito durante as filmagens, e a irmã dele acabou entrando no meio para substituí-lo em algumas ocasiões. E eu registrei essas três crianças por dois fins de semana.” Foram 6h de filmagens feitas em 2002 que ficaram paradas. “Era um projeto sem recurso, só pela vontade que eu tinha de registrar as situações e mostrar que o mundo podia ser diferente do que estava sendo no lugar. Gostei muito e aquele troço nunca saiu de mim. Eu fiz um curta com a aproximação das crianças, mas eu sentia que o material rendia muito mais, porque eram muito profundos os processos que estavam registrados ali. Eu deixei aquilo descansar para poder ver. Ao longo dos anos, essas imagens não saíram de mim.”
Só 20 anos depois é que Marcos decidiu que era hora de retomá-las e, agora, para entender o que aconteceu com as crianças tempos depois. “Foi apostar que, com a passagem dos anos, o espaço ia se modificar, a vida ia se modificar, assim como os sonhos e os desejos. Quando a gente volta é mágico ver a vida, o tempo e o destino agindo sobre os três e abrir espaço para que eles nos mostrem, novamente, esse brilho.”
São dois brasis diferentes, um de 2002 e outro de 2022. Um é consequência do que aconteceu no outro. E esses três agora jovens, em “Amanhã”, relata de que forma foram atravessados. “Através da vida dessas crianças de 2002 e desses jovens de hoje, a gente faz um retrato despretensioso da sociedade brasileira dos dias atuais, mostrando os encontros e desencontros dessa sociedade. Em 2002 eles terminam jurando que seriam amigos para sempre. Será que foram? Fala muito do que é viver no país hoje em dia. E toca em uma série de situações que são pauta da sociedade contemporânea”.
O documentarista e os jovens passados 20 anos
Para além dos relatos de ontem e hoje, Marcos incorpora, na montagem, outras situações que ajudam a construir a narrativa. Ele, por exemplo, se expõe porque, além de documentarista, se torna narrador do filme. Em sua voz, ele conta os processos, as ideias, o que ia acontecer e o que não aconteceu – todas as mudanças. “São confissões íntimas do mesmo cara que em dois tempos diferentes registrou as mesmas pessoas e os mesmos espaços”, ressalta, completando: “O filme incorpora a estrutura com a qual eu entrei naquele momento para gravar e a estrutura com a qual eu entrei hoje. Naquele momento (em 2002), ninguém da minha pequena equipe morava na favela. Hoje em dia, eu entrei com equipe de gente que mora na favela e que é fruto de todas essas oficinas que aconteceram nesse tempo, dos projetos sociais, de Fies e Prouni. Então o filme dá conta de todas essas modificações. As casas dos personagens também mudaram muito e tudo isso está refletido através dos relatos deles, da observação do cotidiano”.
Foi importante para o documentarista incorporar os personagens em todos os momentos, para além das filmagens, para que eles, realmente, se identificassem com o que aparece na tela. “O filme é muito sincero com eles o tempo todo e muito aberto para os sonhos, as vontades e os desejos deles ali. Eu queria que eles tivessem poder de decisão sobre todas as sequências, e isso a gente conseguiu. Eu filmei eles assistindo ao material de 20 anos atrás e as sequências do cotidiano são criadas através da forma como eles queriam se apresentar no filme.”
Gravar um filme como esse faz com que o documentarista se depare com uma série de dificuldades que Marcos, nesse caso, decidiu incorporar. A ausência e o não também dizem muita coisa. “A gente tinha o tempo todo que entender as camadas presentes por trás de cada escolha que eles traziam para a gente e tentar ler como isso estava conectado com o funcionamento da nossa sociedade. Na infância, eles não davam conta de entender tantas diferenças e as várias linhas imaginárias que existiam ali e que eles estavam topando transgredir. E hoje eles entendem”, afirma. Para mostrar como esse filme chega nas pessoas, o documentarista recupera uma fala da personagem: “Tem um momento em que a Júlia chega e fala: ‘O filme não é só sobre a gente. Acho até que a gente é figurante. O filme é sobre a sociedade e o mundo onde a gente mora’. São várias questões que a gente enquanto sociedade ainda não deu conta de solucionar”.
Esperando “Amanhã”
“Amanhã” foi exibido no Rio de Janeiro e em São Paulo, dentro do “É tudo verdade”. Marcos costuma primeiro fazer uma estreia internacional e depois outra no Brasil. Dessa vez, quis começar em terras brasileiras porque o filme é sobre o Brasil. Agora, ele aguarda outras oportunidades para exibir o documentário, inclusive em Juiz de Fora, sua terra.