Wagner Vaccari tem 37 anos, é um homem negro, magro, com tatuagens pelo corpo e que usa pequenas argolas prateadas como brinco. Tinha acabado de sair da academia quando conversamos, e estava lá para dar aula de dança. Mas tudo isso importa bem pouco quando se torna Ravell, a drag queen que já interpreta há sete anos. “O Wagner e a Ravell são pessoas totalmente diferentes. A forma de conversar, de olhar, como Ravell, é totalmente outra. Adoro quando as pessoas falam que não conseguem nem me identificar com o Wagner desmontado”, conta quem habita esses dois corpos.
É através desse personagem que ele encontrou liberdade para se expressar, e que também passou a viver coisas completamente novas. No espaço de um ano, foram várias “primeiras vezes”: a primeira drag queen a se tornar cidadã benemérita de Juiz de Fora, a primeira drag queen a cantar o hino nacional em um evento LGBTQIAPN+ e, em breve, a atuar no primeiro musical da Broadway a ser adaptado em Juiz de Fora.
Essa história começou há mais de 20 anos, quando Wagner ainda era pequeno. “Eu aprendi que gostava de dançar com ‘É o Tchan’. Já fui representante de turma, e em tudo quanto era evento, colocava para ter dança e coreografia. Comecei a dar aula de dança em uma academia com 16 anos”, relembra. Tudo que aprendeu, como explica, foi sozinho e se virando, em uma época em que aprender coreografias das músicas mais famosas era bem mais difícil que atualmente.
Em Juiz de Fora, era bailarino na banda Soma, até que, com a falta de um dos cantores, pediu para tentar interpretar as músicas que já conhecia de cor. “Depois disso, nunca mais dancei lá”, conta. Foi por volta dos 20 anos, quando foi com a família para Goiânia, no entanto, que se apaixonou pela arte drag.
Apesar de Ravell cantar e dançar, coisas que já fazia antes, entrar nesse universo drag mudou tudo para ele. “Acho que eu usei a Ravell como escudo, uma arma para que eu pudesse expressar tudo que eu estava sentindo com mais liberdade”, revela. Essa trajetória começou quando estava ajudando um amigo a se montar, e percebeu que era algo que também tinha vontade de fazer.
No começo, era Beyoncé Ravell, porque fazia covers da cantora norte-americana, mas com o passar dos anos foi sentindo a necessidade de se desvincular dela para expandir suas oportunidades de trabalho. No total, são 17 anos sendo drag queen. “Todas as formas de transmitir emoções que tenho é através da Ravell, e ela me traz todas as emoções também. Tudo que eu já passei até hoje nesse sentido foi através dela, vestida de Ravell, com o corpo da Ravell. É uma abertura de caminhos”, conta.
Também pela Ravell, o artista foi representar Minas Gerais em um reality da HBO que tinha Pabllo Vittar como apresentador, uma de suas grandes inspirações. “Aprendi coisas sobre canto, performance e palco com profissionais que estão trabalhando com estrelas do Brasil inteiro. Saí com uma bagagem enorme, para que hoje eu possa mostrar meu trabalho ainda melhor”, relembra. Estando entre pessoas que compartilham da mesma paixão e vontade, também foi possível ampliar a visão das mudanças que estavam acontecendo em sua vida.
“Nunca passei por nenhum tipo de homofobia frente a frente, talvez só por trás ou velada. Mas a Ravell abriu muito espaço para mim, e eu percebo que, com o tempo, estamos ganhando mais espaço com as drags que aparecem na televisão. (…) Na minha época, não tinha uma drag queen preta que me representasse no palco. Hoje, eu sou essa drag queen que representa e canta, para quem vier depois de mim e quem já veio”, diz.
AVC aos 34 anos
Toda essa jornada chegou bem perto de acabar quando, aos 34 anos, Wagner sofreu um AVC. Naquele tempo, Ravell estava fazendo uma quantidade enorme de shows, que chegaram a ser cinco em três dias em São Paulo. “Fiquei dois dias em coma. Na época, eu não conseguia falar. Fiquei um ano e meio em tratamento para conseguir voltar a andar”, relembra. No momento em que teve o problema de saúde, estava bem perto de um hospital, o que possibilitou o tratamento de emergência rápido e ajudou que sua vida fosse salva. “Foi um ano de recuperação diária. Quando eu olhava as pessoas da minha área fazendo o trabalho delas, enquanto eu estava na cama sem poder, aquilo me dava vontade de morrer. Mas eu não podia, eu tinha que melhorar”, conta.
Aos poucos, passou da cadeira de rodas para o andador, do andador para a muleta, e da muleta para retomar os próprios passos. Fazia fonoaudiologia e fisioterapia diariamente, e contou com uma vaquinha on-line para custear o seu tratamento. “Vivo de cantar agora, e já vivia naquela época. Se não fizesse isso, ia fazer o quê?”, relembra. Apesar de difícil, a recuperação plena aconteceu, após ter que se afastar de toda a vida que conhecia. “Fiquei com muito medo. Mas tive mais fé. Muita gente ao meu redor me ajudou, me fez crescer nesse momento e não me deixou desistir. Deus me deu a oportunidade de estar aqui de volta, e minha forma de retribuir isso é mostrando o que eu sei e onde posso chegar levando o nome da minha cidade”, afirma. Logo que pode, Wagner retornou aos palcos, que foram e continuam sendo a sua prioridade. Os prêmios e as primeiras vezes ajudaram que sentisse que estava no caminho certo.
Ravell mais forte que antes
A parte mais difícil de voltar, depois do AVC, foi o canto. E logo a que ele queria mais, por ser algo tão real seu: “Eu me expresso muito melhor cantando. Consigo transmitir toda a emoção que estou sentindo naquela letra, música, canção. Isso é o que faz sentido para mim”, diz. Poder cantar o hino, em 2024, foi algo que tocou também nesse desejo que teve e que pode continuar. “Cantar o hino não é uma coisa fácil, e não é pela letra ou pela melodia, mas pela autenticidade e carga que traz. Você representa uma nação quando canta. Eu me preparei muito para isso, porque é uma emoção diferente. Mulher, foi a primeira vez que segurei o microfone com duas mãos, e estava fazendo isso porque eu estava tremendo muito”, conta.
Apesar dos desafios, também é no canto que sempre se sente mais de verdade. “Eu sinto, hoje, que a minha fala não é igual era antes. Às vezes perco a fala, gaguejo em horas que não gaguejava antes. Mas quando eu canto, é igual. Eu me sinto até mais forte que antes”, revela. O que vê de mais valioso no Wagner, e que leva para Ravell com toda garra, é essa força que se multiplica quando é preciso, e que faz um só virar muitos. “O que mais fez diferença na minha vida foi essa vontade de não parar. Se você me perguntar onde quero chegar, não vou saber. Mas eu sei que eu posso chegar onde eu quiser”, diz.