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Ana Amélia Brasileiro: cores exuberantes que libertam uma artista

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‘Quero fazer coisas bonitas para as pessoas apreciarem e sentirem aquilo que eu sinto, que é uma sensação de felicidade’, defende a artista (Foto: Samirah Fakhoury)

“Eu sempre fui comedida ao pedir as coisas para minha mãe quando era criança, mas pedia mais coisas do que precisava para os materiais escolares, na papelaria. Um dia, por exemplo, pedi para ela comprar uma tinta acrílica violeta. Para mim, aquela cor era a coisa mais linda do mundo. Lembro do cheiro”. A relação de Ana Amélia Brasileiro com a pintura nasceu assim, como uma brincadeira de criança, que foi se desenvolvendo com pequenos quadros distribuídos para a família, até que foi sendo reprimida, aos poucos, para dentro dela.

Acreditava que precisava de uma carreira mais formal, seguindo passos mais tradicionais para se alcançar algum reconhecimento da sociedade. No entanto, ela sempre sentiu um apelo interno que a fazia questionar se era aquilo mesmo que queria, e, nos últimos quatro anos, esse movimento tomou força total. E agora ela é artista, mesmo ainda tendo dificuldade de se chamar assim. Com exposições marcadas e uma instalação que ocupa um corredor inteiro do restaurante Maní Manioca, da famosa chef Helena Rizzo, em São Paulo, finalmente está colocando para fora o que sempre quis fazer na vida.

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Sua trajetória nas artes plásticas está longe de seguir uma linha reta. “É difícil precisar, porque eu não frequentei nenhuma escola formal, mas fiz cursos livres durante a maior parte da minha vida. Mas eu decidi mesmo focar a minha dedicação na arte a partir de um processo lento, de autodescoberta mesmo”, explica. Ela é formada em Antropologia, tendo inclusive doutorado na área, mas em determinado momento da carreira, em que estudava para concursos, percebeu que estava sempre buscando algo que era apenas um meio para possibilitar as coisas que ela realmente queria fazer, mas que não se permitia querer.

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“O fim imaginado era sempre poder ter um ateliê, ter um tempo para brincar com tecido, miçanga, bordado”, conta. Foi durante a pandemia de Covid-19 que ela teve uma virada de chave em sua vida. Ela começou a se dedicar, profundamente, e a estudar em cursos on-line na área de arte para mergulhar nessa vida.

“Eu acreditava que eu precisava seguir um caminho tradicional, mas aquela vontade artística nunca cessava. Poderia às vezes estar dormente, mas voltava. E, quando voltava, via que minha cabeça e meu corpo estavam totalmente voltados para aquilo, era algo íntimo. Como ia falar que isso estava errado?”, explica. Ainda hoje, no entanto, chama as coisas que faz de “coisinhas” – apesar dos estudos, da técnica e do desenvolvimento. “É um preconceito que eu absorvi, de achar que isso é algo menor na vida. Tenho que mudar, porque não acho realmente que isso seja verdade. Minha própria vida diz ao contrário”, reflete.

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Ana Amélia se lembra, por exemplo, dos tempos de criança em que podia passar as tardes no museu Mariano Procópio, onde o que mais gostava de fazer era olhar os quadros – mesmo aqueles como o de Tiradentes esquartejado, que a chocavam. “Ninguém me ensinou a ficar parada lá olhando, eu não estava imitando ninguém – eu só queria isso”, diz.

Esse olhar, como ela conta, foi sempre para tentar entender como se faziam as coisas que ela tanto admirava. Uma curiosidade que permaneceu, e que hoje ela consegue traduzir bem em palavras: “Gosto de fazer coisas bonitas, basicamente é isso. Não tem muita resenha curatorial em torno do que eu faço. Quero fazer coisas bonitas para as pessoas apreciarem e sentirem aquilo que eu sinto, que é uma sensação de felicidade, de alegria, quando você está diante de algo”, explica.

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Para ela, é uma experiência humana básica, essa da apreciação da beleza. “Você vai para uma praia, vê uma mata, um bichinho, e fica ‘Nossa, que lindo!’. Sempre tem essa ideia de que o artista tem que sofrer, tem que trazer seus traumas, deixar seu público desconfortável. Ok. Mas você quer isso, esse é o seu caminho? O meu não é”, diz. Escolher isso, no entanto, como ela mostra, não é nada fácil. “Fazer esse belo tem o valor, mas em determinados discursos colocam isso como uma coisa muito simplória, como algo desvalorizado. Isso vem de uma tradição patriarcal, europeia e machista, porque para as mulheres em casa, por exemplo, bordar sempre teve um prazer estético”, diz.

Tornar-se artista

O processo de absorver todas essas questões foi conduzindo Ana Amélia para um caminho que se consolidou quando ela encontrou um curso com o professor Rafael Vogt Maia Rosa, que é artista e curador. “Eu resolvi fazer o curso principalmente porque ali existia a promessa de uma exposição no final, e eu não queria mais fazer as coisas só para pessoas mais próximas. Eu queria ir para o mundo, conhecer pessoas que estavam trilhando esse caminho há mais tempo”, explica. Foi então que participou da residência e se surpreendeu ao ver como as suas dúvidas sobre o que era ser artista, sobre como encontrar esse caminho e se mover, também sensibilizaram outras pessoas.

“Eu comecei a trabalhar na parte artística mesmo porque eu tinha esse medo, porque tantas vezes eu parava, porque eu tinha tanta dificuldade de mostrar, de deixar essa arte existir. E eu então comecei a fazer autorretratos, que era uma coisa que eu desenhava desde criança”, conta. Para conseguir isso, passou a se filmar em diferentes posições, brincar com ações físicas e com expressões, usando frames para inspirar as pinturas. “Eu incorporei também álbuns de infância, sonhos que eu tinha desde pequena, medos, e fui retrabalhando, falando um pouco mesmo desse processo de sair desse ovo, de um esconderijo. Fui testando e fui sentindo no meu corpo, escrevendo sobre o processo”, conta.

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Ela trazia então para a cena a situação de imobilidade, de paralisia, mas criando a tensão de querer ir para fora, só que sem saber como. “Sempre faço paisagens exuberantes, mas que parecem um pouco distantes”, explica. Para ela, isso representa uma crença antiga, um pensamento quase infantil de que, de forma mágica, algo iria acontecer com ela e mudaria a sua vida. “Essas paisagens fazem parte de algo que é meio que um pensamento mágico que eu tinha, de que aquilo iria trazer uma energia melhor e coisas legais iam acontecer, que iam me tirar daquele lugar. Então eu ficava esperando que algo acontecesse, porque não me sentia capaz. O fantástico está aí, mas não quero ser refém dele, não quero esperar um milagre para entrar no mundo, para fazer as coisas que eu quero da vida”, explica. Para ela, entender a beleza, agora, tem a ver com questionar o que é o sentido dessa palavra e também como encarar o redor. “É enxergar as coisas no sentido de ver coisas complexas e mesmo assim perceber essa beleza por um viés produtivo, positivo e transformador. E não alienante”, revela.

(Foto: Juliana Thompson)

Exposição Maní

Ao final do curso, quando a exposição foi realizada, Ana Amélia recebeu um convite de Mariana Kraemer, que se encantou com suas obras. Ela foi chamada para ocupar o corredor artístico do Maní, por onde já haviam passado artistas consagrados. Desde o momento em que recebeu a proposta, se dedicou totalmente a isso, e, em cerca de cinco meses, a intervenção ficou pronta. A ideia dela, a partir de conversas com as fundadoras do restaurante, era retratar funcionários do Maní, pessoas que trabalhavam lá desde o início, mas estavam distantes da mídia e dos olhares de mais prestígio. “A partir disso, fiz retratos deles juntando com paisagens formadas por elementos que foram despertados para mim a partir da experiência do Maní, que tem muito a ver com algo exuberante. Porque os pratos ali também criam harmonias de cores e sabores”, explica.

Nesse processo, fez uma pesquisa dos pratos do restaurante, da onde vieram e também das próprias influências da gastronomia de Helena, que, de acordo com ela, “transforma os alimentos” – além de ser a única chef mulher, brasileira e com uma estrela Michelin. Com os funcionários, Ana Amélia também fez uma pesquisa afetiva e imagética, que os questionou sobre as cores que mais gostavam, suas brincadeiras de infância e até sobre qual estação do ano preferiam. Queria que eles se sentissem confortáveis com seus retratos, e essas pinturas também fossem fiéis a quem eles eram, ao que faziam lá com tanto cuidado. Surgiu assim a exposição “Sal da Terra”. No meio de tantas paisagens e belezas, dá para ver também o que é dela, tão invariavelmente, através até mesmo dos detalhes mais discretos. Não por acaso, o pigmento violeta continua presente.

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