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Conheça Sidney Gaspar, o ‘Tirano’

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Para Tirano, tão importante quanto cada movimento ensinado está o conhecimento histórico sobre a capoeira, que envolve se aprofundar dentro de questões sociais (Foto: Arquivo pessoal)
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Chegar em uma aula, para Sidney Gaspar, apelidado na roda como ‘Tirano’, envolve preparar o que vai trabalhar com os alunos no dia e também estar atento ao que eles precisam. Estuda o que faz dentro e fora das salas, afinal, trabalha com a expressão cultural de um esporte afro-brasileiro que está presente não só, ou não principalmente, nos livros. Foi o que mudou a sua vida inteira e, por isso, conta que trabalha com todas as faixas etárias, sempre pensando o que pode acrescentar para cada um de seus públicos, de acordo com o que também querem. Vai até o Centro Educacional Santanna, no Progresso; Centro de Estudos de Artes Marciais, no Bairu; CAIC Núbia Pereira de Magalhães, no Santa Cruz; e no Centro de Treinamento Tia Ana, no mesmo bairro. Sempre que pode destaca que aquilo é sua paixão e que envolve cada movimento do próprio corpo: “A capoeira é muito mais do que as pessoas imaginam”.

Explica que, apesar de muitas pessoas pensarem que “capoeira é aquele cara que faz bananeira, que faz um mortal, o camarada que faz um movimento acrobático muito rebuscado”, ela está longe de ser só isso. Para ele, tão importante quanto cada movimento ensinado está o conhecimento histórico sobre a capoeira, que envolve se aprofundar dentro de questoes sociais, como o período de escravidão no Brasil e o processo de favelização. “A capoeira também agrega valores para a vida das pessoas. Ninguém luta sozinho e, ali dentro da aula, todos devem se respeitar e se ouvir. A maior disputa dentro da capoeira é de cada um consigo mesmo”, explica. A inclusão, por isso mesmo, é algo que ele sempre valoriza. “Já joguei capoeira com pessoas com deficiência, paraplégicas, pessoas com cegueira, mudas, amputadas. As pessoas são inseridas na capoeira sem nenhum tipo de preconceito, podendo ir até onde conseguem”, diz.

Em sua visão, todos que se dispõem a participar de uma turma e se envolver nesse movimento podem mesmo encontrar o seu melhor lugar. “Cada um pode ser um grande historiador, um musicista bacana, um compositor e um jogador mesmo de alto nível. A capoeira é uma corrente, e os elos vão se juntando aos seus moldes”, afirma. Foi o caso, como conta, de um pai e de um filho que passaram a treinar juntos. Sempre enxerga que, esse momento, além de tudo, também é um espaço em que as pessoas podem ser cuidadas e se atentar para si. Acostumado a lecionar em escolas públicas, particulares e também em academias, Sidney se volta para entender como falar e o que falar com cada pessoa, todos em uma fase particular. “Tento sempre conscientizar. Em escolas públicas, por exemplo, onde a maioria é da periferia, com muitos estudantes negros e pobres, com totais resquícios da escravidão, e que não se entendem inseridos nesse processo por todas as limitações que são impostas”, diz.

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Mas reconhece que, para isso, enfrenta uma série de dificuldades. “Quando a capoeira tenta levar esses temas, não dão tanto valor, ninguém imagina que para se tornar professor de capoeira eu tenho que estudar muito”, conta. Mesmo entre os alunos e interessados, ainda há preconceitos enraizados e que cabe a ele, também, tentar desmistificar. “Às vezes, tenho que parar na aula, porque o aluno chega e pergunta: “Professor, capoeira tem a ver com macumba? Me falaram que tem a ver e não posso fazer isso”, relembra. Seu objetivo é sempre destacar a capoeira como cultura, levando em conta que “os livros de história não dão relevância para esse conhecimento”. Em sua visão, o trabalho é justamente de resgate cultural, recuperando elementos desde a vinda do povo negro da África até eles chegarem aqui e aqui serem escravizados. “A partir do processo de escravização, da busca pela liberdade, como uma forma de defesa”, reflete.

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(Foto: Arquivo pessoal)

A vida inteira em movimento

Tirano começou a capoeira quando criança, em 1987, sem ter se envolvido tanto com o grupo ou com a luta. Mais tarde, em 1994, já adolescente, entrou para um grupo no Bonfim, comunidade em que mora, e já não quis mais parar. “Pra mim, foi uma válvula de escape. Tive um irmão mais velho viciado em drogas, e todas as atenções, dentro de casa, eram voltadas para o resgate dele. E isso foi algo que eu, como caçula, senti. Vi nessas situações de vida uma possibilidade de levar algo produtivo e positivo para a sociedade”, relembra. Após dois anos lutando, já foi dar aula como substituto. Em 2024, vai completar trinta anos sem parar na capoeira, pois o esporte se tornou uma razão para sempre continuar e levar também o que aprendeu e a mudança que trouxe para a própria vida para mais e mais pessoas.

Fez bacharelado e licenciatura em Educação Física, tendo estudado justamente psicomotricidade infantil e capoeira, e ainda faz uma pós em Cultura na área da Educação. Paralelamente, também se tornou professor de dança de salão, aprendendo todas as formas de mexer o corpo e como isso está relacionado com o que cada um gosta na vida. Entende, no entanto, que ainda há muita desvalorização na profissão e que, inclusive, as pessoas não se importam em pagar adequadamente os professores de capoeira ou mesmo de ter respeito com o trabalho que é realizado. Conta sobre situações em que, por exemplo, teve apresentações desmarcadas na hora que estavam previstas para acontecer ou de pessoas mexendo nos instrumentos da capoeira como se fossem desimportantes. Mesmo nesse contexto, se orgulha especialmente de ter encontrado tanto afeto. “Dentro da capoeira, consegui ter minha formação e formar minha família. Minha esposa também dá aula, estamos há 25 anos juntos, e nossos filhos também são capoeiristas”, diz.

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Em processo

Essa mudança que a capoeira traz, para ele, está em vários detalhes que, na verdade, são gestos gigantescos: perceber que uma aluna escreve especialmente bem e sinalizar isso, acatar o afeto dos alunos que se vêem distantes dos pais, ocupar espaços em que pessoas brancas sempre eram mais valorizados e também ficar atento a problemáticas que ainda permeiam a vida de pessoas como ele. A linguagem, por exemplo, é algo que sempre destaca: “Eu nunca falo ‘escravo’, e sim ‘escravizado’. O negro não nasce escravo, não é escravo. Uma pessoa é escravizada, porque alguém impõe isso a ela, ninguém se torna escravo por si só. (…) Foi muito bonito o 13 de maio, quando a Lei Áurea foi assinada. Mas e o dia 14? E o dia seguinte?”, questiona.

Sempre tendo plena consciência de que precisa continuar questionando, expande os trabalhos que realiza e já chegou a participar de um grupo que atendia a quase 800 alunos, em cerca de 40 bairros, de forma gratuita. Em sua experiência, no entanto, sem essa vontade, é impossível que isso que incorporou em sua vida chegue longe. É por essa razão que continua, sempre: “A capoeira não existe. Não é um bem material, é o fruto de um pensamento. Só existe se eu pensar e transformar. Não tem como ter características próprias, uma definição padrão, por exemplo como o futebol. Lá tem um fim, a vitória. Na capoeira, não: o que mais importa é o processo, é a pessoa se desenvolvendo”, conta.

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