Quando Jana Flor passou 21 dias ‘fazendo santo’ no candomblé, precisava de uma resposta. Há 14 anos, ainda não sabia o que ia fazer quando saísse do seu período de isolamento e reza. Mas, quando voltou para a sua vida normal, contou para o pai, artista plástico, algo que via como uma paixão: fazer maquiagem. “Ele disse que podia me mostrar em casa a noção de luz e sombra. Aí eu aprendi a maquiar com meu pai. Na realidade, pegar uma tela em branco é o mesmo que pegar um rosto, é só ter noção de luz e sombra”, conta. A partir desse momento, a sua curiosidade foi despertada. Já faz 13 anos que trabalha com maquiagem em Juiz de Fora, e, recentemente, adotou também as técnicas para desenvolver a maquiagem artística. Para ela, cada rosto e cada oportunidade de trabalho ajudam a contar uma história – que começa com a sua.
A maquiagem, ainda no começo de sua carreira na área, era uma fonte de renda. Por isso, ela não podia investir em cursos caros, e foi aprendendo do jeito que pôde as técnicas próprias dessa forma de arte e de expressão. “Era difícil, eu pobre, sem condições de fazer curso, com filho novo e marido desempregado, ficava pensando como ia fazer pra maquiar mesmo. Até que um amigo meu, do meu bairro, que tem um salão, me deu a oportunidade de testar a maquiagem lá. Disse que eu tinha jeito, mas faltava o ‘pulo do gato’, relembra. Foi assim que começou a trabalhar lá, aos finais de semana, e pôde ir aprimorando o seu trabalho. Logo, no entanto, foi percebendo, ao conversar com as pessoas, que precisava ter uma identidade mais nítida no seu trabalho e se especializar em algum tipo de maquiagem. Então, decidiu que trabalharia principalmente com peles negras, dando uma atenção especial ao que ficaria melhor para esse público, que ainda era bastante preterido nesses espaços de beleza.
Para diferenciar o seu trabalho, logo que Jana pôde, começou a estudar colorimetria, aprendendo sobre os tons e subtons da pele. Também começou a trabalhar com sobrancelhas, sempre buscando esse mesmo olhar, para complementar a renda. Aos poucos, começou a conseguir fazer cursos avulsos com maquiadores de Juiz de Fora e até de fora da cidade. E, há 9 anos, foi chamada por acaso para o seu primeiro trabalho na área do audiovisual, quando seu filho estava fazendo um teste para uma propaganda. Foi assim que fez maquiagem para um programa piloto e começou a adentrar esse universo, aprendendo inclusive com Mauro Pianta e Mariana Musse, que ensinaram mais a ela como trabalhar em um set para ajudar toda a produção. “Fui vendo como podia me posicionar, o que podia fazer, e não só pegando o pincel e ficando parada. Eu sempre entendi que meu trabalho era fundamental para quem estava editando, e se eu fizesse bem feito, conseguiria minimizar o trabalho da outra pessoa”, conta.
Desde então, foram mais de 30 comerciais, produções para agências e curtas. Ainda recentemente, aprendeu a fazer maquiagem para efeitos especiais. “A maquiagem de efeito especial caiu na minha mão quando percebi que, poxa, se estou em um nicho do audiovisual, uma hora iam me perguntar se eu não sabia fazer um machucado, um corte, sabe?”, explica. Para ela, também nesse campo, o que a diferencia de outras pessoas que podem atuar nessa área e até fazer um trabalho não especializado, são os anos se dedicando a isso e a vontade de se aprimorar. “Eu sei que qualquer pessoa consegue fazer um corte, vendo um vídeo no YouTube. Mas o curso me deu a oportunidade de fazer esse trabalho ficar uma coisa realista. A tecnologia do aparelho e da maquiagem tem que estar no mesmo patamar, e isso me motiva muito”, explica. Quando vê o resultado, também se surpreende, junto com a produção: “Não é bonito ver uma cabeça toda machucada. Mas se a pessoa fica ‘ai, o que é isso’, incomoda, fica desagradável, eu cumpro o meu objetivo. É isso que eu quero”. A Jana que existia, dessa forma, foi se dividindo em duas. “Além do nicho de pele preta, em que eu sou conhecida como a Jana Flor, que faz uma maquiagem clássica, sem transformar demais, e que deixa com ‘cara de rica’, também faço essa bolha do teatro e do audiovisual”, diz.
Coletivo Difference e ‘pensar fora da caixinha’
Em 2019, para “colocar para fora algo”, Jana criou, junto com outras pessoas, o Coletivo Difference. Tudo começou, como ela conta, como uma brincadeira em seu quintal. Mas se tornou algo importante demais para ela, e inclusive gerou uma exposição chamada ‘Essência’, em que as fotos produzidas com a suas maquiagens foram exibidas na Galeria Ruth de Souza, em 2021. “Consigo botar algo pra fora, a forma que eu consigo ver beleza, e que é muitas vezes sem padrão. É o momento em que eu exercito, junto com outras pessoas, fazer coisas diferentes e fora da caixinha. E quero cada vez mais pessoas junto comigo, pra abrir o olhar mesmo”, explica. O processo de criação dessas fotos, então, envolvia Francisco da Silva Junior, que criava peças para as fotos, e Marcella Calixto, que fazia as fotografias. Neste momento, eles fizeram fotos totalmente autorais com Juliana Stanzani, Nara Pinheiro e Alessandra Crispim, que são artistas da cidade.
Para ela, cada detalhe que faz é parte de um processo: “A gente não planta arroz e colhe abóbora”. O Difference, como explica, ainda pode virar muitas coisas. “Eu fico dando tiro pra todo lado, mas sempre na mesma conversa. Quem sabe o Difference não vira uma agência de produção visual de artistas? Tudo pode acontecer. A gente faz uma brincadeira de uma maneira muito profissional, muito séria”, conta. Nesse percurso, inclusive, teve uma foto que fez de Rômulo Vlad, um dançarino, que foi exibida na Times Square.
Olhar para a vida
De acordo com Jana, o desafio maior que enfrentou, como maquiadora, foi, muitas vezes, não ser vista como a profissional que era e não gostar de aparecer. “Me falam que eu tenho que fazer vídeo disso, daquilo. Mas eu não tenho que fazer nada. Faço o que é do meu jeito”, conta. Da mesma forma, sendo uma mulher preta e pobre, chegar com a maquiagem em certos lugares ainda é algo que as pessoas estranham. “Me pedem pra pegar água, por exemplo, sabe?”, conta. Isso foi mudando ao longo dos anos, quando passou a conhecer mais pessoas, mas o que permaneceu e realmente fez com que ela enfrentasse esses obstáculos foi a dedicação que tem ao rosto de cada pessoa. “Eu gosto de pegar uma pessoa, principalmente a que nunca se maquiou ou que teve uma decepção com a maquiagem, e mostrar para ela que, mesmo com pouco, é possível realçar a beleza dela. Passar um batom da cor que ela gosta ou realçar os olhos, por exemplo, faz diferença. Eu falo sempre que a beleza é de dentro pra fora. Tendo um autocuidado com a mente, pra estar equilibrada com Ayiê, vai ficar bonita”, diz.
A arte da maquiagem, como explica, é ver o rosto da pessoa, “ver essa simetria, perceber que ninguém é igual a ninguém, e identificar como realçar o que a pessoa já tem de mais bonito”. Esse aprendizado fez com que, hoje, ande na rua olhando do mais simples ao mais sofisticado, vendo a beleza real em cada parte dessas. “Isso é uma apuração, um exercício do olhar, e isso foi crescendo em mim. Me fez crescer também como pessoa, mulher, maquiadora e mãe”, explica. Com o passar do tempo, também foi com essa visão que conseguiu identificar na vida o que mais queria. “Eu vou fazer 45 anos essa semana, e se não estiver doente e continuar com essa vontade, posso trabalhar até os 80 anos. Esse é meu sonho, trabalhar com o que eu quero, o que eu gosto, enquanto o sagrado permitir. Se ganhar muito dinheiro, bem, se ganhar dinheiro o suficiente para pagar as contas, pra mim tá tudo certo”, diz.
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