Ciça Liberdade criou seu próprio nome, assim como criou várias intervenções artísticas, deu vida a personagens de peças das quais participou e levou arte para oficinas em Juiz de Fora. Nascida e criada no Bairro de Lourdes, na Zona Sudeste da cidade, ela teve contato com o teatro pela primeira vez, aos 13 anos, e sentiu que aquilo poderia ser o que iria mudar a sua vida, pois precisava que fosse. “Um ano antes, eu tinha perdido meu pai e tive uma depressão muito forte, fiquei acamada, tomei muitos remédios e fiquei muito tempo sem ir à escola. Minhas amigas me chamavam pra brincar, eu não conseguia”, conta. Criança criativa que era, no entanto, assim que foi melhorando quis algo que pudesse servir como incentivo para a vida. Desde então, o teatro tem sido seu guia, proporcionando a ela a conquista de vários prêmios de atuação, e é nessa arte ainda que ela comanda textos que foram suas criações e participa de algo que, como ela afirma, “tem como função maior transmitir uma mensagem”. É o que acredita ser possível: “Eu vou com talento, vontade, existindo e resistindo a resistência. Eu vou com a minha voz e com o meu corpo presente. Pra baixo, todo santo ajuda”, diz.
Ciça começou no teatro por meio de um projeto social com Alexandre Gutierrez, que era gratuito e permitia que as turmas tivessem contato com a fundação dessa arte. “Meu primeiro trabalho foi com 13 anos, na peça ‘Memória que não se apaga’, e eu era totalmente coadjuvante, não aparecia nada, eram uns 15 atores no palco. Mas eu estava lá. Só de estar no espetáculo, entendi que era lá que eu queria estar”, conta. Depois de ter participado desse projeto, o professor a convidou para continuar com as aulas no grupo ‘Empório da Arte’, que ficava no Centro, e seguir aprendendo. A atriz conta que ia para as aulas a pé, até que nessa época enfrentou dificuldades financeiras ainda maiores e não conseguiu mais continuar nas aulas. “A minha depressão chegou a um nível muito doido e eu tive até tricotilomania, que é uma compulsão em arrancar o próprio cabelo, como quem rói unha. Eu comecei a ter que esconder a cabeça com boina, pra não dar pra ver”, relembra.
Neste momento, ficou cerca de 2 anos meio afastada do teatro, e precisou descobrir uma nova paixão. “Comecei a escrever. Eu tinha uma necessidade, e ainda tenho, de falar o que me incomoda de alguma forma”, reflete. Ela conta que, naquela época, sabia que poderia ter algo de diferente das outras pessoas, mas ainda não tinha descoberto totalmente como expressar isso. Com o tempo, foi entendendo que os escritos que tinha, muitas vezes em diários ou rabiscos que pensava não serem nada de importante, poderiam se tornar algo mais significativo para ela – e também para outras pessoas. “O teatro é um lugar específico para determinadas pessoas, e não são necessariamente essas pessoas com quem eu mais quero dialogar. Mesmo podendo falar isso no teatro, escrevendo peças, eu não conseguiria falar pra determinado tipo de pessoa que eu queria”, conta. Desde então, estar próxima da sua comunidade e expandir o efeito da arte, que foi algo que ela mesma havia sentido em sua própria vida, se tornou mais que um desejo: uma espécie de obrigação.
Já com o Ensino Médio finalizado, Ciça começou a participar de grupos acadêmicos que debatiam racismo e feminismo, e ainda refletiam sobre intolerância religiosa, o que fez também com que, como ela conta, seu leque de referências fosse se ampliando. O que ela aprendia, ia elaborando com suas próprias palavras, para serem ditas para outros que vieram de onde ela veio. “Em 2017, chamei uma parceira, a Andreza, e escrevi um texto pra gente falar no Dia Internacional da Mulher. Paramos na escadaria do Theatro Central, levamos uma caixinha de som e começamos a fazer nossa intervenção falando sobre feminicídio. As pessoas que passavam viram, algumas se sentiram tocadas, e aquilo repercutiu”, conta. No mesmo dia, uma mulher as chamou para reproduzir a intervenção em uma marcha de um grupo feminista, e desde então ela seguiu se apresentando com textos de autoria própria. “A vida não é flor, e acho que a gente tem que trazer esse impacto”, diz.
Janaina, Marlene, tantas outras
A vontade de fazer uma arte mais política está diretamente relacionada, para ela, com as próprias vivências. Foi bem assim que surgiu esse texto que foi apresentado no Dia da Mulher. “Eu perdi uma grande amiga que havia estudado comigo, era uma menina muito feliz, da comunidade também. Ela tinha 20 anos e foi encontrada boiando no Rio Paraibuna. Foi uma sensação de que ela tinha sido mais uma: eu já havia perdido uma outra amiga para o crack, antes”, conta. Juntando a vontade de fazer algo que atingisse mais pessoas e que honrasse essas vidas, ela criou o texto que, como reflete, também diz muito sobre quem ela é e o lugar que ocupa. “Senti que precisava falar dela, da Janaína, que tinha só saído pra um baile e não voltou mais, e também da Marlene, minha mãe, que apanhava em casa. Podia ser eu. Isso foi me incomodando demais e eu quis falar, e ao mesmo tempo fui pesquisando, aprendendo sobre tantas outras mulheres”, afirma.
Foi também entendendo mais sobre si mesma, a partir da religião que escolheu seguir e do uso de ayahuasca, que também foi entendendo os lugares que queria ocupar: “Eu não sou padrão e não quero estar nesse lugar. Quando comecei a me entender, vi que ninguém me parava”. Para conseguir isso, no entanto, decidiu que não esperaria mais que as oportunidades aparecerem pra ela, e que iria atrás do que acreditava. “Eu aprendi que preciso ir e fazer por mim mesma, e escrever me dá essa liberdade. Quando você fala de uma coisa que te incomoda muito, é uma caminhada que é sua. Quando você tem voz e não fala nada, você se perde”, diz. Desde então, outra conquista importante nesse sentido foi a participação no Grupo Encruza, em que desenvolveram juntos ‘Orixás, flores e amores’ e ‘Benze’, assim como a participação no filme ‘Cabinda’, que esteve no Festival de Cinema de Tiradentes.
Criando o próprio nome
Ciça nasceu se chamando Carolina, mas hoje em dia esse já se tornou um nome pelo qual ninguém a chama, e se por acaso alguém ainda o utiliza de repente, ela diz que nem entende de imediato que é com ela. O nome artístico, no entanto, veio de um apelido e acabou ficando, enquanto Liberdade ela adotou depois de ter entendido o quanto essa vontade faz parte de sua história, e que é justamente ser livre o que ela busca desde criança, agora também por meio da arte. Depois de já ter trabalhado como freelancer, feito faxina e hoje dar oficinas para outras crianças aprenderem as mesmas coisas que mudaram a sua vida, é este o caminho que tem buscado trilhar. “As minhas maiores conquistas são internas. Nos trabalhos que eu faço, se entra uma sementinha no coração de alguém, se ela fez alguém pensar em algo importante, já vale. Se é relevante pra mim, não é possível que não vá ser pra outras pessoas também. Eu não sou nada, não sou ninguém, mas posso fazer isso”, diz.
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