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“Gostaria de falar de amor e, se falasse de dor, seria aquela que só atinge os apaixonados”

Maria Aparecida Rezende Lacerda 2
Em “Fragmentos da alma”, livro que será lançado na Fliminas, Maria Aparecida Rezende Lacerda escreve sobre lembranças, sonhos, sentimentos e mazelas do mundo – Foto Divulgação
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A poeta de “Fragmentos da alma” (Gryphon Edições) diz ser avoada. Não ter a sutileza da escrita sofisticada, arquitetada, construída com rigor e estilo, o que, para ela, seria essencial para que a poesia saísse “elegante e requintada.” Faz um lamento. “Pobre de mim! Não sou Poeta!” Discordo dela. A beleza da poesia dessa autora mineira de Cataguases está justamente na liberdade de vestir asas e viajar por aí, sem a preocupação com regras. Maria Aparecida Rezende Lacerda escreve com a alma.

“Não tenho o domínio dos versos perfeitos que compõem um soneto, por exemplo. Meus versos são, na maioria das vezes, versos soltos, embora eu utilize, em alguns, o recurso das rimas para dar musicalidade ao poema. Tenho, tanto minipoemas, como outros, mais longos. Não tenho a preocupação de manter uma regularidade. Sou indisciplinada. Sigo a ordem do meu coração e da inspiração do momento”, confessa ela, que na nova publicação, versa sobre as filhas, sobre si mesma, escreve sobre lembranças, saudades, sonhos, sentimentos e injustiças sociais. A poeta de “Triste rio”, “Entre o céu e a terra”, “Menino sírio”, “Vale de lágrimas” (um lamento pela tragédia de Mariana”, “A copa” e “Cidade sem Deus”, está de olhos abertos para a dura realidade que nos circunda. Ela traz a “beleza das coisas tristes”, como bem sintetizou o também escritor Luiz Almeida.

“A luta./ A lida./ O luto./ E o grito,/ de medo e de susto,/ cobre a cidade como mortalha/ e se espalha/ no cheiro da pólvora,/ no sangue no asfalto,/ na fumaça que arde,/ na alma do povo aflito./ A mão que atira,/ que tira a bala da boca da criança,/ que mete uma bala no meio do seu sonho,/ que embala a morte no ritmo do funk,/ é a mesma que amassa a mina chapada,/ e, na hora do jogo, bate palma…/ Nos becos e ruelas das sujas favelas,/ nas ruas e avenidas, nas linhas amarelas/ vermelhas ou sem cor/ da cidade sem Deus,/ homens, mulheres e crianças/ aguardam a vez de ser notícia/ no jornal das dez.”

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Também autora do livro de crônicas “Não apague a luz ainda”, lançado em 2017, Maria Aparecida  pertence à Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora (LeiaJF), é membro da Academia Juizforana de Letras e da Academia de Letras da Manchester Mineira e participa do grupo Café com Poesia e Arte. “Fragmentos da alma” será lançado na Festa Literária de Minas Gerais (Fliminas), em Rio Novo, dia 8 de setembro, às 18h.

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Marisa Loures – Sobre “Fragmentos da alma”, a também escritora e proprietária da Gryphon Edições, Maria Helena Sleutjes, disse assim: “Com o olhar repleto de lirismo, ela vai conduzindo sua alma e o leitor para novos rumos, profundos e inusitados”. A que caminhos esses “Fragmentos da alma” conduzem o leitor? O que você pretende despertar nele?

Maria Aparecida Rezende Lacerda – O livro “Fragmentos da alma”, diferente de outros livros de poesia, segue um roteiro. Tem um fio condutor, direciona o leitor para situações que eu desejo que se faça uma reflexão mais profunda. Ele segue a linha da vida, se assim podemos dizer. Inicia com um poema dedicado às minhas três filhas, que poderia ser qualquer outro, pois tenho vários. Mas, escolhi um sobre a chegada delas, o nascimento. O início. Depois, nos seguintes, eu me faço conhecer. Revelo-me aos olhos do leitor para que ele me conheça e o meu jeito de ver a vida com suas delícias e agruras. Falo de lembranças, saudades, sonhos, sentimentos. Um voo, para depois aterrizar no mundo real com suas mazelas, dores, injustiças e que estão se tornando banais e corriqueiras. As pessoas estão se tornando insensíveis, na medida em que os noticiários nos bombardeiam com notícias tristes todos os dias. O poema “Entre o céu e a terra” é a preparação para esse mergulho em águas turbulentas. São dezesseis poemas que falam de guerras, abandono, injustiças, insegurança, tragédias ecológicas e por aí vai. Isso faz parte da vida e é preciso repensar o mundo e os acontecimentos globais, as consequências do descaso e insensibilidade das autoridades e da população em geral. Continuando, os poemas seguintes fazem parte da minha preocupação com o meio ambiente, com o futuro do nosso planeta, mas tem também minha declaração de amor à mãe natureza e minha gratidão a Deus pelas belezas criadas por Ele. Depois disso, vêm alguns devaneios, algumas constatações e dúvidas, poemas avulsos, fruto da inspiração, até chegar à parte mais poética do livro que é o amor, a paixão, a sensualidade. Termino o livro com algumas considerações poéticas sobre a finitude, o ponto final da nossa existência. O meu livro “Fragmentos da alma” foi escrito para levar o leitor ao sonho sem esquecer a realidade.

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“A poesia tem que assumir seu papel de denúncia sem perder sua singularidade, sua beleza.”

–  O escritor Luiz Almeida diz que em poemas como “Menino sírio”, “Copa”, “Atletas do cotidiano”, “Cidade sem Deus” e “ Triste Rio”, a poeta traz “a beleza das coisas tristes”. Completa dizendo que “ embora de direito, esse conjunto de poemas nada tem de panfletário ou partidário, a ideologia aqui é o humanismo, o direito à vida decente e segura.” Em tempos tão sombrios,  de falta de amor ao próximo, é preciso que a poesia abra os olhos das pessoas para as injustiças e a crueldade do mundo? Com ela, é possível acreditar em mudanças?

É o que eu gostaria que acontecesse. É o que estou tentando fazer com “Fragmentos da alma”. Não desperdiçar esta oportunidade de poder chamar os leitores a uma reflexão. Não utilizar a oportunidade de publicar um livro apenas com o intuito de levar devaneios, palavras bonitas, imagens oníricas para distrair o espírito e afastá-lo da dura realidade que vivemos. A poesia tem que assumir seu papel de denúncia sem perder sua singularidade, sua beleza.

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– Isso quer dizer que o poeta deve saber interpretar o seu tempo?

Com toda certeza! É um registro, uma marca que fica para futuras gerações, como a música, a pintura. Foi assim e continuará sendo. Temos os poetas abolicionistas (Castro Alves) os inconfidentes (Tomás Antonio Gonzaga, Claudio Manuel da Costa) os modernistas (Mário de Andrade, Clarice Lispector, Carlos Drumond), os da época da ditadura militar (Chico Buarque, Rui Castro, Rubem Fonseca), os poetas marginais (Leminski), enfim, sempre haverá alguém para escrever em forma de poesia o que acontece a sua volta.

“Escrevo de forma visceral. Sou pura emoção. Ponho o dedo na ferida, assim como crio asas e danço no infinito. Sou “antagônica”

– Em “Minhas razões”, você diz assim: “Alguns poetas dizem que a poesia não é fruto da imaginação, não é filha da inspiração, ao contrário, que ela é construída, arquitetada, fabricada com palavras e versos, tem regras, códigos, estilo e arte. É o resultado de um trabalho minucioso, organizado, e fica sempre à mercê do poeta para vesti-la com as palavras que lhe aprouver, deixando-a elegante e requintada. Pobre de mim! Não sou Poeta!” Por que “pobre de você”? Como nascem seus poemas? Qual é seu processo de criação?

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“Pobre de mim” é um desabafo. Eu gostaria de escrever de uma forma requintada e sem respingos de “realidade”. Ficar no planeta sonho. Não ser instigada a falar de problemas sociais, produzir a poesia de forma absolutamente irreal, fictícia, transbordante de versos perfeitos e com imagens sublimes. Falar de amor e, se falasse de dor, seria aquela que só atinge os apaixonados. Despedidas, reencontros, coisas assim. Mas eu escrevo de forma visceral. Sou pura emoção. Ponho o dedo na ferida, assim como crio asas e danço no infinito. Sou “antagônica”.

“Adoro o gênero crônica.  Acho gostoso, flui com mais facilidade. Acho que isso se dá pelo fato de eu ter muita dificuldade de verbalizar meus pensamentos e de falar em público. Acostumei a escrever, sempre. De colocar minha alma no papel. E a crônica facilita isso. Já a poesia, ela é mais exigente. Ela é como um pássaro raro que passa, de vez em quando, e tenho que ser precisa para capturá-lo no momento certo, senão ele voa para bem longe.”

– Seu livro de estreia, “Não apague a luz ainda”, lançado em 2017, é composto por crônicas. Em “Fragmentos da alma”, você vai aos poemas. O que mais te preenche como escritora? A prosa ou a poesia?

Adoro o gênero crônica.  Acho gostoso, flui com mais facilidade. Acho que isso se dá pelo fato de eu ter muita dificuldade de verbalizar meus pensamentos e de falar em público. Acostumei a escrever, sempre. De colocar minha alma no papel. E a crônica facilita isso. Já a poesia, ela é mais exigente. Ela é como um pássaro raro que passa, de vez em quando, e tenho que ser precisa para capturá-lo no momento certo, senão ele voa para bem longe. Às vezes, nem volta mais. A crônica, basta escolher um tema. Ele não foge. Fica à espera que eu resolva lhe dar vida.

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A pintura também é uma de suas paixões. Seu lado pintora influencia sua escrita?

Não. Posso ficar meses sem pintar, mas não fico sem escrever. A pintura é um exercício de relaxamento, abstração do mundo, nem sempre sei o que vou pintar. Estou num momento de criações abstratas. Nunca sei o resultado final do que estou pintando, exatamente o contrário de quando estou escrevendo.

– Você é uma escritora bastante atuante. Faz parte da LeiaJF, é membro da Academia Juizforana de Letras e da Academia de Letras da Manchester Mineira e participa do grupo café com Poesia e Arte. Como você vê a cena literária da cidade? Há quem diga que ainda está faltando um grande movimento que possa atrair um número maior de pessoas em prol da literatura e que os grupos existentes hoje são, em sua maioria, fechados em si mesmos.

Foi uma pena não ter acontecido a Bienal do Livro este ano. Foi um evento muito bacana que reuniu escritores, editores, colégios daqui e de outras cidades. A LeiaJF  tem procurado integrar os escritores, poetas, ilustradores, grupos de poesia, escolas, num movimento de união de ideias e objetivos, promovendo saraus, reuniões de debates e buscando encontrar saída para esse momento difícil que estamos vivendo de crise financeira no país. A Lei Murilo Mendes está suspensa desde o ano passado. A iniciativa privada não adere aos projetos culturais da cidade.  Temos tido participações em feiras literárias em outras cidades e estados e buscado trazer novas ideias para colocar em prática na cidade e incentivar o gosto pela leitura desde a infância. Um país onde a educação é tão desvalorizada fica difícil fazer vicejar o gosto pela leitura.

– O que você faz para seus livros circularem?

Eis aí um dos grandes problemas da luta do escritor independente. Escrevemos o livro, mandamos publicar e, depois, é uma verdadeira batalha. Divulgação, venda corpo a corpo, em saraus, para os amigos de redes sociais, noites de autógrafos aqui e nas cidades em que ocorrem feiras literárias, indicação de leitura do livro por amigos. É trabalhoso, mas vale a pena. Eu tive muita sorte desde o primeiro lançamento. A Tribuna de Minas fez uma matéria sobre o “Não apague a luz ainda” e teve boa repercussão. O mesmo aconteceu em Uberlândia, onde fui entrevistada para o jornal Diário de Uberlândia e também na televisão Paranaíba, no programa Manhã Total, de Mônica Cunha. Fernando PY, crítico literário, fez uma matéria na sua coluna do jornal Tribuna de Petrópolis. Tudo isso me ajudou muito. Eu enviei muitos exemplares pelos Correios para vários estados do país. Também estão à venda no Espaço Excalibur, onde temos o apoio do Marcelo Espíndola, sempre solícito e atencioso conosco. O meu primeiro livro recebeu elogios e crítica favorável, o que me deixou muito feliz. Espero que o “Fragmentos da alma” siga a mesma trajetória do primeiro.

 

Sala de Leitura –Quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010). Terça-feira, blog no site da Tribuna (www.tribunademinas.com.br)

Lançamento de “Fragmentos da alma”

Festa Literária de Minas Gerais (Fliminas)- 8 de setembro, às 18h, em Rio Novo.

 

 

 

 

 

 

 

Trechos de “Fragmentos da alma”

“O menino sírio”
De olhos fechados, estendida na cama,
aguardo o sono que teima em não vir…
A mente recusa o desejado descanso
que meu corpo precisa na hora de dormir.
Busco lembranças, um pensamento agradável,
recito um mantra, rezo baixinho,
mas é tudo em vão…
O que me vem à mente são cenas chocantes,
são rostos aflitos de um povo sofrido,
corpos alquebrados, braços estendidos
em busca de um pão.
O que mais me machuca e me leva às lágrimas,
não me deixa dormir,
é a visão de um menino sem vida, tão lindo,
um anjo estendido na areia da praia
vítima deste mundo
sem compaixão…

“A morte”

A morte saiu do seu esconderijo.
Levantou-se,
despiu sua mortalha,
saiu de sua caverna,
abandonou as trevas,
tirou férias.
Jogou fora a foice
e foi-se.
Terceirizou seus métodos,
contratou uma horda de canalhas.
Foi para a plateia,
macabra espectadora,
assistir aos massacres que aconteciam
nos quatro cantos da terra.
Nem mesmo aguardava a hora
de recolher os corpos
para devolvê-los ao pó.
Estava de férias:
quem quiser, enterra…

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