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Respostas poéticas de André Nogueira aos tempos atuais

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Poeta, ensaísta e tradutor, André Nogueira parte da atualidade para a criação dos versos que integram o novíssimo “O presidente me quer morto” – Foto Divulgação

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“O presidente me quer morto” (Urutau, 2019). A mim, bastou ficar sabendo do lançamento desse livro de André Nogueira, com esse curioso título, para que eu convidasse o escritor nascido em Herdecke, na Alemanha Ocidental, para participar do Sala de Leitura nesta terça-feira. Por que, afinal de contas, o chefe do executivo brasileiro desejaria a morte do poeta? “E não quer? E não é só a mim que ele quer morto. É a você, é a qualquer um. Penso que parte do problema é a gente se recusar a levar a sério as ameaças. Houve quem não gostasse do título, quem criticasse a escolha: ‘Você está exagerando!’, ‘Não tinha como escolher algo mais metafórico?’. Pois eu digo que ele, o presidente, não está sendo nada metafórico quando diz que vai nos metralhar. E afinal, fuzil é o que não falta! Era preciso mostrar às pessoas, desenhar. Mas agora é tarde. E se não for eu, que diferença faz? Muita gente vai morrer, como já tem morrido”, dispara André, que nos enntrega 204 páginas com versos de conteúdo político, mas também poemas de amor,  humor, espirituosos e espirituais.

Formado em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russas pela Universidade de São Paulo, o também autor de “Pontualmente ao encontro (ou Pomos, um Adão cada)” (Medita, 2011) e “O manifesto lenitivo” (Urutau, 2015), ainda é tradutor e ensaísta. O leitor pode estranhar, ao ler as respostas de André para esta coluna, o fato de ele manter a grafia original, desrespeitando o novo acordo ortográfico.  No entanto, o poeta apenas está mantendo o posicionamento exposto nos versos de “Em defesa de um Ponto Virgulino”, poema-manifesto da contra-reforma ortográfica que integra a nova publicação.

“Seus pauzinhos movimentem/ nos refis das lapiseiras,/ opressores aparatos/ de um corpo docente/ já há tempos putrefato/ (e nem assim fede nem cheira…)./ Gira o mundo/ com seus vinte e quatro fusos,/ porém gírias e gerúndios/ neste luso-brasileiro,/ isso depende se em desuso/ já caíram as peixeiras./ Esse assunto faz ferver, o sangue meu de cangaceiro,/ e se tiver de defender/ a este acento em minha idéia,/ cabra macho eu hei de ser/ a ponto de me chamar Andréia.

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Marisa Loures – Por que o presidente desejaria a sua morte?

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André Nogueira – E não quer? E não é só a mim que ele quer morto. É a você, é a qualquer um. Penso que parte do problema é a gente se recusar a levar a sério as ameaças. Houve quem não gostasse do título, quem criticasse a escolha: “Você está exagerando!”, “Não tinha como escolher algo mais metafórico?”. Pois eu digo que ele, o presidente, não está sendo nada metafórico quando diz que vai nos metralhar. E afinal, fuzil é o que não falta! Era preciso mostrar às pessoas, desenhar. Mas agora é tarde. E se não for eu, que diferença faz? Muita gente vai morrer, como já tem morrido. E se não for ele, o próprio, a matar, vai ser o vizinho dele, ou qualquer capanga de farda. Todos choram pela Marielle, mas elegeram seus assassinos, matadores da nossa gente. Agora, para responder sua pergunta: escolhi esse título porque é o título do poema que eu publiquei na época das eleições e foi bastante compartilhado. Lendo o poema você vê que não é do presidente que estou falando, e, sim, daqueles, os mais próximos e queridos, parentes e amigos, as pessoas que a gente mais ama e que elas mesmas disseram “sim” à promessa do nosso assassinato. Isso aconteceu em muitas famílias: as pessoas estavam despedaçadas por dentro, eu fiz por compaixão a elas e penso que consegui formular algo desse sentimento. O presidente que vá às favas! Não foi pensando no presidente que escolhi o título, nem foi com intenção de criar polêmica e atrair todas as energias negativas para mim. Mas acredito que não poderia ser mais acertado. Tudo está escancarado demais. Não é tempo de metáforas, precisei de um título literal e verdadeiro.

 – Achei curioso o fato de você manter a grafia original no livro. Inclusive, você fez um poema-manifesto da contra-reforma ortográfica. O que existe por trás dessa resistência?

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–  Interessante você perguntar, Marisa. Agradeço, porque me dá oportunidade de comentar algo sobre isso. O poema “Em defesa de um Ponto Virgulino” é na verdade só o prólogo de um manifesto que escrevi, mas não incluí no livro, porque já estava muito extenso. Seja como for, não faz sentido publicar com a ortografia nova, e eu mesmo solicito que publiquem meus textos segundo as velhas normas. Por sorte, a editora Urutau se mostrou muito cortês e soube respeitar minha poesia. Mas o sentido dessa resistência é muito simples e eu posso explicar já. Veja bem, se não aceito a reforma trabalhista, se não aceito a reforma da previdência, porque eu deveria aceitar a reforma ortográfica? Se não reconheço a legitimidade desse governo para alterar as leis da Constituição, quanto menos as leis da língua, que são sagradas. Nem do governo, nem da Academia Brasileira de Letras. Porque as leis trabalhistas são uma conquista do povo, não é uma cúpula de senhores engravatados que tem direito de mudar. E uma reforma da língua, igualmente, só com intensa participação popular. Quem manda na língua é o povo, e quem realmente o representa: o poeta. Mas é assim que faz o governo: com uma canetada, decreta, revoga, proíbe, sanciona. A canetinha da impotência e da repressão. Uma língua, que somos obrigados a engolir contra a vontade, é um assédio. Veja que não me refiro só a mudanças pontuais de acentuação, mas à própria natureza da língua escrita que, ao assim ser governada, se torna o produto de um ato autoritário. Mas vamos lá, por que o governo se preocuparia com o acento na idéia, com o trema na conseqüencia? Ora bem, como você sabe, existem diferenças na ortografia da língua escrita nos diversos países lusófonos e os governos gastavam tendo de pagar tradutores para padronizar as correspondências diplomáticas em trânsito internacional. O que fazer então? Simples! Padronizar a língua! Simplificar a ortografia, apagar as particularidades regionais, alterar a língua portuguesa para simplificar a transação e economizar dinheiro. E é claro, obrigar todo mundo a se curvar a essa arbitrariedade! O mercado editorial parece não ter se importado, e aliás soube tirar disso também o seu filão, pois a atualização da ortografia movimentou dinheiro: a massa desalfabetizada precisa comprar pelo menos um guia prático e cada edição sai com uma etiquetinha “Novo acordo ortográfico!”. Novas mercadorias, com novos selinhos, sempre uma nova sensação da vez… Fomos longe demais: impusemos um prazo de validade artificial para a língua, uma “atualização” ortográfica com o único objetivo de aquecer a economia! Marx tinha razão: nada mais é sagrado, tudo o que era sólido se desmancha no ar. E não que a língua não possa ser profanada, mas que seja pelo povo, pelos poetas, através da criação, que abre múltiplas possibilidades, e não do governo e sua polícia bacharelesca. Por isso me senti muito decepcionado em ver meus camaradas poetas, e também meus professores, editores e todos que deveriam amar a língua, aceitarem sem nenhuma resistência, alguns inclusive se prontificando a ser fiscais da nova ortografia. Eu pergunto aos escritores: vocês vão mesmo tirar o acento de sua idéia, só porque o governo mandou? Penso que alguém de idéia forte se proporia pelo menos a desobedecer. Não à reforma trabalhista! Não à reforma da previdência! Não à reforma ortográfica!

“Não, de forma alguma essa é a hora certa de urrar esse livro. Pode ser que amanhã os livros e os próprios poetas estejam queimando na fogueira. Mas, como você pode imaginar, o urro é um urro, e o lobo com a pata quebrada não escolhe a hora certa de urrar. Enquanto a batalha continua vou usar de todas as armas que me confere a liberdade de expressão.”

 – No convite para o lançamento do seu livro, há um alerta de que ele é uma bomba, que será proibido em breve. “De todo modo, todo cuidado é pouco quando se tem em mãos um plano de combate.” Essa era a hora certa de “urrar este livro”?

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Essa frase é do Thyago Villela, que escreveu a orelha do livro. Com seu humor todo especial, ele criou um cenário imaginário em que o livro se tornará proibido e o leitor, para ler no banquinho de uma praça ou no ônibus, terá de destacar a capa original e substituir pela capa de um livro de auto-ajuda. Hilário, e não duvido que possa vir a se tornar tragicamente real em breve. Por isso, respondendo à sua pergunta: não, de forma alguma essa é a hora certa de urrar esse livro. Pode ser que amanhã os livros e os próprios poetas estejam queimando na fogueira. Mas, como você pode imaginar, o urro é um urro, e o lobo com a pata quebrada não escolhe a hora certa de urrar. Enquanto a batalha continua vou usar de todas as armas que me confere a liberdade de expressão.

– Sua poesia é marcada pelo tempo atual e, em algumas passagens, encontramos referências da televisão, do cinema, do jornalismo, configurando uma intertextualidade. É como se você absorvesse todas essas informações e as filtrasse, tendo como resultado a sua obra. Como é esse seu processo de escrita e como a atualidade mexe com a sua inspiração?

 – Talvez não com minha inspiração; a atualidade mexe com o fundo da minha alma e me dilacera. Não digo na televisão, porque não assisto; mas o que vejo nas notícias de jornal me fere profundamente e não posso considerar tudo isso normal. Eu diria até que no meu livro as passagens mais grotescas são aquelas em que uma notícia da atualidade é citada literalmente. Daí o poema nasce, desse espanto. Por exemplo, em agosto de 2015 policiais encapuzados fuzilaram 13 homens em um boteco na periferia de Osasco; eles teriam perguntado quem ali tinha ficha suja, 6 dos 13 homens tinham. Mas o secretário de segurança pública, na época o Alexandre de Moraes, disse que “veja bem, usar coturno e perguntar por antecedente criminal é típico de quem quer fingir que é policial”. Eu pergunto: é isso normal? Só uma notícia de jornal, ou um filme de terror? Uma semana depois desse ocorrido, na mesma cidade de Osasco tombou uma carreta cheia de porcos que estavam indo para o abate; a concessionária da auto-pista por quase 6 horas tentou, com uma retro-escavadeira, virar a carreta com os porcos dentro agonizando. É isso normal? Embora muita gente ache que sim, eu acho que não, e também acham o mesmo os ativistas que lá estavam, reclamando os direitos dos animais. Às vezes é a própria atualidade quem pede ao poeta: “Vamos, fale sobre mim! Mostre o quão absurda eu sou!” E as próprias notícias de jornal me dizem: “Aqui! É tão claro que basta você juntar dois mais dois”. Então eu faço. No caso do poema “O coração-coxinha” eu imaginei então um cenário: Um homem pede uma coxinha no bar. Foram suas últimas palavras, nem deu tempo de ele responder se tinha ou não antecedentes criminais, a polícia entrou atirando e pelo chão do bar escorreu o catchup, o sangue de boi e o sangue de gente; mas não é só o chão do bar que está sujo desse sangue, nem somente a toga do ministro do Supremo; esse sangue escorre também nas cozinhas de todas as casas e suja cada ficha de um por um dos brasileiros. Porque ter estômago para agüentar e achar normal aqueles porcos na estrada, o sistema que cotidianamente tortura, mata e esquarteja os animais, até que eles vão parar ali, naquela coxinha, ter estômago para achar isso normal é uma condição para que o mesmo sistema que tortura e mata as pessoas seja aceito pela sociedade, que esse mal seja praticado e “absorvido” como algo banal, e também vendido no cinema como ação e entretenimento. As pessoas vêem cenas parecidas comendo pipoca, rindo e aplaudindo. Elas deviam se revoltar e parar o país ao saber que algo assim acontece. Enquanto não é tempo, eu escrevo poesia. Não pelo sopro da inspiração, e sim pelos socos no estômago que me dá a atualidade. Escrevo porque vomito todo esse sangue.

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“Não penso assim, que a poesia seja um privilégio de poucos. Ela está no canto do Kariri-Xocó, na moda sertaneja do violeiro; nas quebradas os meninos do Rap têm as melhores rimas, nas rodas de samba e nos terreiros ao som de batuques há muita poesia viva no país. A poesia foi criada pelo povo e por ele é continuamente reinventada.”

 – Infelizmente, a poesia ainda é um gênero considerado privilégio de poucos. Qual é a função social do escritor hoje? E da poesia? Qual é a principal dificuldade do poeta atual?

 – Não penso assim, que a poesia seja um privilégio de poucos. Ela está no canto do Kariri-Xocó, na moda sertaneja do violeiro; nas quebradas os meninos do Rap têm as melhores rimas, nas rodas de samba e nos terreiros ao som de batuques há muita poesia viva no país. A poesia foi criada pelo povo e por ele é continuamente reinventada. O que, sim, pode ser dito um privilégio de poucos, é o acesso à educação, que permitiria ao povo conhecer sua história e as histórias de todos os povos e suas artes. E dispor de tempo livre para desenvolver o potencial artístico, isso também é privilégio. Mas nem todo privilegiado é um poeta. Você já leu “Anônima intimidade”, o livro do Michel Temer? E não se pode dizer que não é um privilegiado! Gastou seu tempo e vendeu sua alma nas orgias e intrigas do poder, nunca escreverá um verso que preste. Fez por puro luxo e fetiche. Já o povo não tem dinheiro, mas tem alma, e por isso, mesmo explorado e privado de gozar de seu tempo e sua vida, lutando contra a opressão diária, ele consegue fazer a poesia mais genuína, nem sempre registrada nos livros de história, e ainda assim alimentando a cultura de verdadeira riqueza e saber. Então eu acho que a função social do escritor hoje, e me refiro agora ao escritor letrado, é ter consciência de seu privilégio, saber que sua educação não é dada a todos, e que em grande medida foi sustentada pela exploração daqueles todos que dela não puderam gozar. Então, a função social do escritor é lutar para reverter esse quadro. Que trabalhem para isso dentro de suas instituições e fora delas, nas ruas, assembléias e saraus, os escritores de todas as ciências e literaturas, mas especialmente da poesia, porque esta tem o papel de comunicar ao povo na sua linguagem mais própria e natural, a canção viva, a voz do coração. Claro, não vou idealizar. Pois se lançam tanto peso às costas dele, lhe dão lixo de comer, tampam seus ouvidos e olhos e o prendem numa caixa preta televisiva; se apagam dele a memória, proíbem seus rituais, cortam pela raiz seus melhores sonhos, não posso exigir que o povo cante. O explorador vende sua alma e preserva seu lombo, o explorado vende seu lombo, sua força de trabalho, e procura conservar sua alma, mas esta muitas vezes se dilacera, porque é demais a dor. Quando falamos de uma geração que não lê, o problema vai além do nível de educação, e não basta só comunicar, difundir um livro ou canção, e sim trabalhar para reverter o quadro de injustiça e embrutecimento que está posto para toda a sociedade. Para mim, esse é o principal desafio do escritor.

 – Você é filósofo, poeta, ensaísta e tradutor. Como se dá a articulação nessas diferentes áreas de atuação?

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A filosofia foi a área da minha primeira formação universitária. Depois meu interesse acadêmico migrou para a literatura. Nela se abriu uma possibilidade criativa que não me era oferecida na filosofia: a tradução. Assim eu posso pesquisar e escrever poesia e de quebra oferecer para os leitores do meu país um pouco daquilo que venho descobrindo no meu estudo, em forma de versos que me considero capaz de verter para a nossa língua. Depois que concluí o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa da Usp, venho me dedicando a traduzir os principais poetas russos que viveram a Revolução: Marina Tsvetáieva, Anna Akhmátova, Serguei Iessiênin, Vladimir Maiakóvski, entre outros. É claro que daí resulta um saldo positivo para minha poesia, porque se aprende muito com esses mestres, suas histórias e ofício.

– Para você, o tradutor também é autor da obra traduzida, ou ele funciona como intermediário entre a obra e o leitor?

 – A oficina é a mesma: um repertório vocabular, um rimário em constante expansão, todo um conjunto de recursos que são usados na feitura do poema. O tradutor usa suas ferramentas de poeta. Quanto mais criativo e propriamente poeta for o tradutor, de tanto mais soluções ele vai dispor no seu trabalho de tradução. Ao traduzir ele enriquece seu repertório de poeta. As duas esferas se ajudam. Mas é importante que elas também não se atrapalhem. A poética do tradutor se mistura com a do poeta que ele traduz, mas não deve se sobrepor a ela. Nesse sentido, o sucesso da tradução depende também de frear o impulso. A teoria assimilou o aspecto criativo da tradução, por exemplo, na definição de transcriação, por Haroldo de Campos, o que é especialmente válido para o campo da poesia. Afinal, o texto de poesia tem uma dimensão musical que ultrapassa o sentido das palavras e demanda soluções que põem à prova as habilidades do tradutor. Assim, precisa ter ousadia e se sentir criador do texto, um co-criador sensível, que não atropele as características do texto original.

– Você nasceu em Herdecke, na Alemanha, mas foi registrado cidadão brasileiro e aqui está desde 1991. Mantém relações literárias com seu país de origem?

 – Eu nasci na Alemanha por acaso. Meus pais, recém-casados, ganharam uma bolsa de estudos para a Universidade de Heidelberg. Ambos são brasileiros, meu pai é paranaense e minha mãe do interior de São Paulo. Eu nasci em Herdecke porque era o local do hospital antroposófico, mas vivi em Heidelberg, onde passei os primeiros 4 anos e meio da minha infância. Mas a língua alemã, que falei perfeitamente no kindergarten, se perdeu na memória depois da mudança para o Brasil. Tampouco tenho da Alemanha recordação alguma, nenhuma lembrancinha. Por algum motivo, tudo foi apagado aos meus 5 anos de idade. Como filho de pais estrangeiros nascido em território alemão, não tenho direito a nenhum tipo de cidadania (os alemães se importam com a pureza do sangue). Assim, com a Alemanha eu não preservo vínculo de língua, nem de memória, nem de cidadania, nada – a não ser, é claro, a música de Bach, o pensamento de Marx e outras grandes contribuições dessa pátria para a cultura universal. Na ausência desse meu berço de criação, minhas atenções se voltaram para a Rússia, sua cultura e literatura, como se lá eu devesse ter nascido, como se aquela língua eu devesse ter falado. Também não me sinto indissociavelmente apegado ao solo brasileiro, embora nunca mais me desgrudei dele, nem para entrar num avião, e mesmo com o amor que sinto por essa terra, sua cultura e língua, sinto que sou um cidadão do mundo, e no planeta estou só temporariamente. De qualquer modo, essa não-história com a Alemanha teve um papel importante na minha formação como pessoa e poeta. Por curioso que possa parecer, devo isso ao total fracasso do meu bilingüismo: a língua alemã que eu perdi e a língua portuguesa, de que muito eu apanhei. Porque na minha infância, na adaptação à nova vida num novo país, eu até gago fui. Foi eu ter de superar as dificuldades inatas com a língua o que me levou a ter dela um aprendizado diferente, a desenvolver outras potencialidades. A língua para mim nunca foi um sistema natural, desde o beabá ela representou um desafio grande, e penso que isso me empurrou prematuramente ao terreno da poesia.

 – Quais são os escritores com as quais sua literatura conversa? O que na literatura deles mais dialoga com seus escritos?

Primeiramente, os poetas com quem eu convivo, compartilho textos e troco experiências poéticas, alguns deles que são meus grandes amigos: posso citar o Tomaz Amorim, a Mariana Ruggieri, o Cássio Corrêa, a Isabela Rossi, o Wilson Alves-Bezerra, a Marília Moschkovich, entre vários outros. Em seguida, os poetas que eu traduzo, Vladimir Maiakóvski e Marina Tsvetáieva em especial. E, com eles, todo o universo da literatura russa. Um ponto importante de inflexão foi a leitura de “Como fazer versos?”, de Maiakóvski, cujo princípio de correspondência a um “encargo social” eu aplico nos meus versos: a resposta necessária a um problema existente na sociedade. Esse texto, escrito em 1926 para os operários das fábricas russas, eu indico aos jovens poetas do nosso tempo e do futuro. Você pode sentir ecos de Maiakóvski também nos meus poemas amorosos, como “Penso renovar os homens usando borboletas”, título que por si é uma citação de Manoel de Barros; a idéia do poema surgiu do Retrato do Artista quando Coisa, mas o poema é profundamente maiakovskiano, o Maiakóvski lírico do poema “Amo”. Algumas influências que me acompanham desde a mocidade, como Garcia Lorca, por exemplo, nas imagens surrealistas de “Setembro Amarelo”, ou Bertold Brecht, no comentário da recessão econômica pelos famintos no trem em “Dê-lhes do troco”. Poema que foi veladamente inspirado em “Trem sujo da Leopoldina”, de Solano Trindade. E assim por diante. A música popular, desde as canções de ninar até as rimas do Rap, são uma fonte constante de riqueza pra mim. Embora eu seja um amante, também, da música clássica. Ritmo, melodia e lirismo: a poesia como música. E por fim: a fala das ruas, dos trens, das praças; a matéria prima de todo poeta engajado.

 – Certa vez, Clarice Lispector pediu a Jorge Amado que fizesse uma crítica dos livros dele. Gostaria que você fizesse do seu.

 – “O Presidente me quer moro” não pretende ser uma tendência da vanguarda atual ou algo assim. É sim um livro atual por outras razões: ele contém as respostas poéticas que eu dei, usando os recursos que estavam ao meu alcance, a esse tempo de desmandos e violência. São recursos em certa medida tradicionais, comuns à literatura escrita e também ao verso popular, para os quais procurei dar um caráter único, pessoal. Penso que ainda há muito potencial a ser extraído, por exemplo, das rimas, que os ritmos dos versos podem ser combinados e decompostos infinitamente, e me apraz conduzir os jogos da linguagem em vista de certas regras ou linhas de fruição. Claro que eu esbarro em limites e, a depender do que o leitor estiver procurando, ele pode se decepcionar. Dependendo do ambiente em que leio, sou recebido com frieza, mas há pouco tempo li numa praça e um mendigo veio me abraçar. Estou atento às críticas que me fazem e sempre me reviso e recrio. Seguindo a ordem cronológica, você nota uma apuração, que o livro documenta, da técnica em direção a uma linguagem mais direta. Os primeiros poemas, de 2015, têm mesmo algo de truncado e pueril. Mas cada um tem o seu valor e registra as etapas do percurso criativo. No momento estou trabalhando com a prosa e pretendo voltar à poesia um pouco mais independente em relação a meus próprios vícios. Mas penso que em tempos de pós-verdade o melhor a fazer é manter os pés no chão e contar com eles os passos do poema.

Sala de Leitura – toda quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).

“O presidente me quer morto”

Autor: André Nogueira

Editora: Urutau (204 páginas)

 

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