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Mariana Basílio: ‘Se não nos salvarmos coletivamente, o mundo acabará’

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“’Pangeia’ também era escrito, como uma antítese. A vida à procura de vida, e de união, apesar das tragédias, uma esperança precisa ecoar de nós”, ressalta a poeta (Foto: Divulgação)
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Faz, exatamente, uma década que Mariana Basílio passou a atuar ativamente na cena literária brasileira. Já contei neste espaço que tudo começou em 2014, quando a poeta de Bauru esteve na Casa do Sol, refúgio criativo de Hilda Hilst, fazendo a revisão de “Nepente”, o livro de estreia. Desde lá, já lançou outros quatro títulos, incluindo o novíssimo “Pangeia” (224 páginas), publicado em março deste ano, pela Assírio & Alvim, apontado como o  maior selo de poesia em Portugal. Importante mencionar que a obra nasce premiada. Chega aos leitores com a chancela do Prêmio Biblioteca Digital, que, durante o isolamento social por causa da epidemia de Covid-19, substituiu o Prêmio Paraná de Literatura.

Com prefácio da escritora e professora da UFJF Prisca Augustoni, o livro apresenta um estudo da etimologia do ser. “Audre Lorde diz que a poesia é a destilação reveladora da experiência. Que a cabeça vai nos salvar: a necessidade vital da nossa existência é feita dos nossos sentimentos, equiparados às ideias. Isto é, respiramos no eu (penso em inglês no termo self) à procura das razões para que essa respiração contínua atinja novos sentidos, até o dia da nossa famigerada morte. Escrever uma carta analógica, um post de rede social, ou um poema num livro, ainda é percorrer essa busca pelo mísero instante de um questionamento crucial ‘se eu sou, o que eu sou?’ Logo, ‘Pangeia’ carrega em si uma intenção artística de realizar sua poesia filosófica sobre o que dá nisso de ser, contando com algumas curiosidades de diferentes povos e tempos das culturas possíveis, compartilhando com os leitores certas epifanias que invento, pois ‘se existe mesmo algo inatingível, foi no corpo documentada a tentativa’”, comenta Mariana.

Por meio de seus versos, a autora ainda faz um protesto contra as milhares de vidas ceifadas em Gaza, na guerra que se arrasta desde 2023. “Não somos abreviações ou representações./ As quantidades formam as possibilidades./ Nós não evitaremos morrer em vão,/ como se as margens continentais se perdessem no abandono dos países,/no equilíbrio desfibrilando o abismo”, escreve ela em “Nós não somos números.” Que caminho a autora percorreu para, poeticamente, construir essa etimologia do ser? Esse é o ponto de partida desta entrevista, realizada cinco anos depois do nosso primeiro encontro aqui na coluna Sala de Leitura. 

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“Pangeia” é o estudo da etimologia do ser. E, como tal, segundo Prisca Agustoni, é “uma proposta ambiciosa, pela amplitude e abrangência inerentes à empreitada, e extremamente cativante, pois tudo o que remonta à origem e nos obriga a um lento retroceder e a um pacto de confiança numa versão muitas vezes plural dos fatos históricos, tão afastados da nossa possibilidade pragmática de comprovação”, é crucial “para embaralhar os passos futuros”. Que caminho você percorreu para construir essa etimologia do ser por meio da poesia? Apresente-nos “Pangeia.”

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Audre Lorde diz que a poesia é a destilação reveladora da experiência. Que a cabeça vai nos salvar: a necessidade vital da nossa existência é feita dos nossos sentimentos, equiparados às ideias. Isto é, respiramos no eu (penso em inglês no termo self) à procura das razões para que essa respiração contínua atinja novos sentidos, até o dia da nossa famigerada morte. Logo, escrever uma carta analógica, um post de rede social, ou um poema num livro, ainda é percorrer essa busca pelo mísero instante de um questionamento crucial “se eu sou, o que eu sou?” Logo, Pangeia carrega em si uma intenção artística de realizar sua poesia filosófica sobre o que dá nisso de ser, contando com algumas curiosidades de diferentes povos e tempos das culturas possíveis, compartilhando com os leitores certas epifanias que invento, pois “se existe mesmo algo inatingível, foi no corpo documentada a tentativa”. Como se o esqueleto ósseo que nos move em direção ao nosso tempo gerativo já carregasse os primeiros sinais de literatura: nasço e morro, igualmente, querendo uma conexão com você (que me lê), sinalizando ao tempo “aqui vou eu”. Dizendo isso, conto que eu estava grávida de minha segunda criança, a filha Alma, quando escrevi o essencial do livro “Pangeia.” Estávamos na pandemia da Covid-19, e eu inscrevi o projeto no tradicional Prêmio Paraná de Literatura, que durante o isolamento social, se tornou Biblioteca Digital. De repente, com aquela nova vida dentro da minha, decidi escrever e pesquisar mais de temas como as primeiras noções de escrita alfabética e das línguas – seja no signo da descoberta do fogo, ou das cavernas madalenianas –, ainda escrevi sobre o movimento da língua portuguesa na sociedade que nos move atualmente: expressões, gírias, culturas distintas entre seus diferentes estados. De repente, Pangeia, a palavra que é a ideia de um primeiro continente do mundo que agregava todos os seres antes das placas tectônicas serem apartadas geograficamente, veio como um bálsamo de título literário. A minha intenção é a de dizer que ainda estamos juntos nessa Terra,“pangeizada”, enquanto planeta e também natureza, de seres sencientes e humanos. Se não nos salvarmos coletivamente, o mundo acabará.

E não devemos procurar, em seu livro, “a linha reta das certezas narrativas”, conforme aponta Guilherme Gontijo Flores. Você opta pelas “imersões arcaicas na psique contemporânea e derivas ensaísticas de ordem muito variada.” Essas certezas narrativas incomodam a poeta?

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É difícil saber com toda precisão o que o Guilherme quis dizer ao escrever esse trecho das “certezas narrativas.” É um termo bem amplo ao meu modo de fazer essa leitura conceitual, mas, se eu fosse interpretar como um termo estritamente ficcional, diria que não me incomodo, pelo contrário. Adoro que a gente também leia algo que seja feito do avesso ao que eu propus em “Pangeia.” Colo nessa com o italiano Italo Calvino, que mais ou menos diz que cada um de nós é uma mistura de experiências, uma somatória de informações aleatórias, de leituras e releituras, de imaginações sem fim.Que bom que nunca é igual, e somos quase únicos enquanto seres individuais, mas ainda coletivos! Tudo bem então se quisermos ordenar narrativas de maneira mais cronológica ou caótica, formar um romance de formação realista ou escrever um poema sobre uma receita de pão, com taxa de conveniência do local chamado Do Incomum. Vejo que cada vida que nasce é uma enciclopédia em si, uma biblioteca, uma herança ancestral, uma coleção de objetos. É o mesmo em cada livro, e que assim seja. Definitivamente, tudo nesse mundo é feito de certezas e de incertezas, e, para que exista certo equilíbrio, reagimos a cada novo dia. E eu acredito que essas duas vias são válidas na escrita, contenção e libertação formal (híbrida). O que a arte como uma metáfora de “ser”  espera de nós é um abraçar ao que é a surpresa textual, ou até um estranhamento  – seja um selinho datado dos correios, ou o selinho de um beijo, ainda um selinho de price tag arrancado da compra de tamanho errado, quem sabe haja o selinho de invada-sua-imaginação? (veja é vermelho, parece uma gosma, e está atrás da sua íris esquerda, yes, enquanto já me lê).

Capa do livro (Foto: Divulgação)

Quando voltamos a nos falar, depois de um hiato de quase cinco anos, você destacou que estava há alguns anos sem lançar livros e que, agora, havia resolvido “embarcar em um novo momento”. O que o presente tem de tão especial que despertou em você a vontade de publicar “Pangeia”?

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Haruki Murakami tem uma passagem boa para essa pergunta: quando você sair da tempestade, você não será a mesma pessoa que era quando entrou. Esse é o objetivo dessa tempestade. Começo desse ponto a minha vontade. Após a pandemia, e ter gestado dois filhos entre os cinco anos que você comenta, o meu mundo – como o que a célebre cantora Maysa cantara–, caiu (mas subiu). De repente, eu estava com um livro premiado engavetado (lembra que na pergunta anterior eu dizia que foi premiado durante a pandemia? então), um divórcio, dois filhos dessa união de dez anos, uma nova cidade em que me radico, São Paulo, e a vontade de retornar às edições no marco de uma década que eu faria na literatura contemporânea em 2024. No ano de 2023, eu chego à nova cidade e reabro as possibilidades e o livro, reescrevo e amplio o projeto “Pangeia.” Participo de diferentes atividades no período, em eventos, como palestras, cursos de literatura que ministrei, ainda outros que participei como autora nessa São Paulo que me acolhia. A partir de tudo o que eu vinha experienciando, de dor e de regozijo também, é que eu decidir publicar esse meu quinto livro.

E “Pangeia” nasce pela Assírio & Alvim, considerado, há cinquenta anos, o maior selo de poesia em Portugal. Como se deu essa aproximação de vocês? E o que você vislumbra com essa parceria?

Em um dos eventos que me apresentei em São Paulo, no Teatro Cemitério dos Automóveis, em junho de 2023, lendo meus textos, eu fui assistida pelo editor do selo no país. Ele me abordou na saída do evento para perguntar a que editora eu estava vinculada atualmente. Conversamos posteriormente, marcamos um café, e eu lhe ofereci “Pangeia” para publicação. Ele leu e aprovou, e foi uma sintonia de quase um destino fortuito. A editora Assírio & Alvim, só após essas primeiras décadas, chegou por aqui, e, desde 2022, segue editando nomes de Portugal no país, e enviando nomes do Brasil para lá. Antes só existiam livros importados de lá para cá, o que era uma pena, pois encarecia muito ao público consumidor do Brasil. Atualmente, publicaram em nosso país nomes de portugueses consagrados, como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Ruy Belo. Mar Becker foi a primeira poeta contemporânea brasileira editada por aqui e agora impressa em Portugal (“Sal”, no Brasil, em 2022, e “Canção Derruída” por lá, em 2023). Espero que, em breve, aconteça o mesmo com o “Pangeia” em Portugal. Vamos continuar no aguardo das notícias além dos continentes que nos cercam. No momento, “Pangeia” é o meu quinto livro e marca fielmente os dez anos de atuação contínua na literatura brasileira, desde que estive na Casa do Sol de Hilda Hilst revisando o primeiro livro, em outubro de 2014. Celebro essa parceria com uma casa editorial tradicional como um novo passo e momento da trajetória. Após importantes parcerias com casas editoriais consideradas alternativas, principalmente com a Editora Patuá (que editou os dos últimos livros, “Tríptico vital”, em 2018, e “Mácula”, em 2020), sou agora pela primeira vez distribuída nas principais livrarias do país, o que possibilita que pessoas que não conheciam meu trabalho me encontrem nas prateleiras, finalmente. 

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Mariana, a pandemia foi um período sombrio para todos e todas. Para muitos, foram tempos de recolhimento.  E você já me confidenciou que, nesse período, tentou, “ao máximo, acolher a dor alheia, ser o mais discreta possível.” Ela impactou, diretamente, a sua literatura? De que maneira?

Escrevi um livro sobre a pandemia, o impresso anterior de poesia, “Mácula” (Editora Patuá, 2020). Na ocasião, recebi uma bolsa de criação literária do Programa de Ação Cultural de São Paulo (ProAC), com a promessa de escrever um material que falasse sobre a sociedade brasileira. De repente, fomos atingidos pelo raio tenebroso da Covid-19. Perguntei nas redes sociais, na primeira fase da quarentena, qual era a grande palavra da vida das pessoas naquele dia x. Recebi quase 400 palavras, selecionei 50, que se tornaram títulos dos meus poemas. No final do livro, os títulos são apresentados ao lado dos nomes dos participantes da pesquisa. Ou seja, criei um livro que os poemas só existiram, pois as pessoas existiram para falar da sensação (em palavras) que sentíamos em plena época de morte, e muitas dificuldades. No mesmo período, “Pangeia” também era escrito, como uma antítese. A vida à procura de vida, e de união, apesar das tragédias, uma esperança precisa ecoar de nós. Apesar de. Sonhamos, sonhemos, sonharemos o futuro, sim. Por isso ainda estamos aqui, e estaremos, pelas próximas gerações. “Tudo o que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho.” Quando eu morrer, podem deixar ser essa a epígrafe, escrito de outro nascido astrologicamente sob a aura do planeta Saturno, Edgar Allan Poe.

Pensando no vasto campo da literatura contemporânea, você já me disse que não pertencia a nenhum grupo e que só seguia escrevendo “sobre o cortejo dos dias.” Os tempos que vivemos te fizeram mudar de ideia? Em que lugar você se coloca hoje nesse universo da literatura brasileira?

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Não. Permaneço não pertencendo a nenhum grupo ou movimento literário específico, apesar de ter sido editada, por exemplo, na antologia de contos – e meu primeiro trabalho na prosa em livro impresso – “Geração 2010: o sertão é o mundo” (Reformatório, 2021), que marca uma geração de novos escritores de todos os cantos do país, e editados a partir de 2010. Prefiro, esteticamente, me semear em solo fresco e podendo mudar a qualquer momento de direção escriturária. Mas sim, após ser mãe e após ter vivenciado a pandemia da Covid-19, considero que mais do que nunca sou extremamente coletiva na literatura brasileira, colaborando com diferentes paratextos de livros que saíram nos últimos anos, ministrando palestras e oficinas de literatura presencialmente e de maneira online, traduzindo e escrevendo textos da área em veículos nacionais e estrangeiros, e claro, publicando um livro como “Pangeia” – que é de múltiplas vozes. Como os poetas mortos em Gaza, na subseção que conclui o livro, “Nós não somos números”.

“Se eu morrer/você deve viver/para contar minha história.” Essas palavras foram escritas pelo poeta palestino Refaat Alareer, morto em Gaza, em 6 de dezembro de 2023. Em seu livro, há uma homenagem não só a ele, mas aos poetas e a todas as pessoas mortas na Faixa de Gaza, nessa guerra que já tirou inúmeras vidas. De que forma a história desses autores se entrelaçou com a sua?

Começou quando eu soube da morte da poeta Hiba Abu Nada, que tem a minha faixa de idade e é mulher como eu. Fiquei tão sensibilizada, e, naquele outubro de 2023, só estava sendo o início do genocídio do povo palestino. Parodiei para ela, in memoriam, um célebre poema do inglês W.H. Auden, chamado Funeral Blues. O meu poema se chama “Uma garça nasce no céu sem sanções”,e cheguei a postar nas redes sociais como homenagem. De repente, dois meses depois, mataram Refaat Alareer, outro poeta da minha idade, um professor renomado e amado pelos alunos e alunas, morto ao lado de três filhos. Instantaneamente, me vejo observando suas fotos no Instagram, e dialogando com ele e com as imagens em forma de um poema ensaístico, “Nós não somos números”, justamente o nome do projeto do mesmo para auxiliar na divulgação da literatura palestina em língua inglesa, We Are Not Numbers. Na época, eu estava concluindo “Pangeia”, e me deparei com a vontade de encerrar o livro em protesto, por tantas mortes – já são quase 40 mil pessoas mortas, entre os dois poetas citados. Então formei a subseção com esse título do Refaat, e escrevi outros dois poemas, formando quatro poemas finais em homenagem às vidas interrompidas, e a vida humana em si, ao clamor que “Pangeia” faz de amor e união no planeta Terra.

Marcelo Ariel escreveu que você, desde o primeiro livro, “vê o ato poético como um diálogo, um encontro, uma elucidação da porosidade em conversas que no fundo são infinitas”, conversas com quem leu, com quem lê e com quem lerá sua obra. O que Mariana Basílio espera do leitor?

Fico com Dante Alighieri nessa vontade: “abre a mente ao que eu te revelo e retém bem o que eu te digo, pois não é ciência ouvir sem reter o que se escuta.” Espero que as pessoas-leitoras plantem mais árvores, beijem as pessoas que amem mais vezes, preservem a sua própria verdade (essência), curem seus traumas, adiantem os relógios dispondo os livros de poesia e demais gêneros como se fossem receitinhas culinárias. Tudo isso é muito difícil de ser feito – em um mundo recheado de bombas, de capitalismo, de egoísmo, mas é preciso crer. Pois “o amor me move: só por ele eu falo”. Bem, é isso. Nos cuidemos de maneira contínua – futurística – bem assim, nas páginas e pelas canções, como na música da banda Radiohead “We are / Just happyto serve / Just happyto serve you” (“Nós estamos / Apenas felizes em servir / Apenas felizes em servir vocês.”).

 

 

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