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“Tenho mais receio de uma vida bizarra e sem sentido do que da própria morte”

Foto destaque wagner lacerda
Wagner Lacerda foto Leonardo Mattos 2
O professor e escritor mineiro Wagner Lacerda transita por vários gêneros em “O grande evento”, livro de contos que leva o leitor a refletir sobre questões existenciais surgidas durante os tempos de isolamento social – Foto Leonardo Mattos
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“E se tudo continuar assim para sempre?”. Foi a pergunta feita pelo professor e escritor. A impressão era de que o tempo havia parado. O mundo estava cinza, em completo isolamento por causa de um vírus letal que, de repente, começou a exterminar a população. Era um cenário digno de filmes de ficção científica. E a angústia de não saber o que seria do amanhã invadiu os pensamentos de Wagner Lacerda. Sozinho, em casa, ele teve a ideia de escrever um conto. Foi assim que surgiu o primeiro texto de “O grande evento” (Flyve, 148 páginas).

“Escrever sobre tudo aquilo que estava acontecendo era uma terapia. Digamos que uma tentativa de entendimento do que era muito difícil de entender. Em outras palavras, terapia. Há de se levar em conta que boa parte do sofrimento nasce exatamente do desconhecido. Então, escrever era, e continua sendo, uma forma legítima de conhecer. Ou, ao menos, de enfrentar o desconhecido. Mas também era uma grande diversão. Tem quem diz que arte não serve para nada, não é mesmo? Pois é. O que teria sido de nós, naqueles momentos terríveis, sem séries, filmes, músicas, livros, lives? Escrever os contos me ajudou demais a passar o tempo e a esquecer um pouco o que se passava. Fui me impondo desafios, criando mistérios, viajando”, revela o autor.

Wagner nos entregou uma obra que, em sua estrutura, procura lembrar os envolventes contadores de histórias árabes. Ao final do primeiro conto, o leitor se vê diante das seguintes questões: O que, afinal, foi o Grande Evento? O que causou esse Apocalipse? E, determinado a saciar sua curiosidade, ele é levado a ler um texto após o outro, sem qualquer intervalo. Os contos transitam por gêneros, como drama, comédia, suspense, terror, ficção científica. Personagens de um texto ressurgem em outro. E aí o leitor começa a fazer as conexões.

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Membro da Academia Juiz-Forana de Letras e da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora, o autor é formado em Letras e é mestre em Estudos Literários pela UFJF. Natural de São Lourenço, além de atuar como professor de Língua Portuguesa e Literatura, é colunista do perfil no Instagram “Almanaque de Arte e Cultura” e produtor do canal de podcasts “Papos e ideias: doses homeopáticas.” “O grande evento” é o primeiro livro enviado para as prateleiras.

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 Marisa Loures – Wagner, como um bom contador de histórias, conte-nos como começou sua história com a literatura.

Wagner Lacerda – Na verdade, ela começou antes da literatura em si. Até os 14 anos, eu fui filho único – meu irmão nasceu quando eu tinha acabado de completar os 14. Então, eu inventava muitas brincadeiras em torno de inúmeros personagens e tramas, com bonequinhos de plástico, carrinhos de ferro, cenários enormes… Eu não gostava muito de brincar na rua e menos ainda de esportes. As minhas histórias em casa me divertiam muito mais.  Além disso, os quadrinhos exerceram, e exercem, uma magia profunda e viva na minha imaginação. E cinema, claro, que eu só descobri aos 10 anos, assistindo a “Star wars”. Feito o combo criatividade+quadrinhos+cinema, a literatura foi questão de tempo. Agatha Christie e Conan Doyle foram o pontapé inicial. Depois os clássicos “infantojuvenis” – não concordo com esse termo: “Volta ao mundo em 80 dias”, “Os três mosqueteiros”, “Viagem ao centro da terra”… Uma jornada que nunca mais terminou.

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– E você sempre leu muito até que transformou seu hobby em profissão. É professor de literatura e escritor. O que a literatura desperta em você?

É verdade. Eu costumo brincar que eu poderia fazer de graça o que eu faço e ainda inventaram de me pagar! Melhor ainda! Falando sério, é um privilégio muito grande poder trabalhar com o que gosta. Eu tenho consciência de que a imensa maioria da população mundial, em todas as épocas, não teve, tem ou terá essa dádiva. Então é motivo, sim, de muita alegria. Às vezes, você não acorda bem para o dia de trabalho – o que é absolutamente normal. Daí, eu me lembro dos alunos e da literatura. E ela, literalmente, desperta a vontade de trabalhar, discutir, refletir, questionar. É muito bacana quando você vê um jovem – que, segundo dizem, não se interessa por nada – todo motivado pela sequência de um conto, pela resolução de mistérios ou pelos dilemas humanos de personagens de Machado, Clarice e Guimarães Rosa, que ecoam dilemas desse mesmo ou dessa mesma jovem. Literatura dá vontade de continuar sempre. Você lê um livro e sabe que tem outros dez para ler – sem contar inúmeros que você sabe que nunca vai ler. Mas você continua. Não para nunca.

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– Já são muitos anos de leitura e de sala de aula. Você também já publicou contos em antologias e coletâneas. Mas “O grande evento” é o primeiro livro. Ele nasce para dar conta das inquietações surgidas no momento vivido?

Diretamente: sim. Bem no início do isolamento, todos ficaram mergulhados em uma infinidade de perguntas sem respostas, não é mesmo? Certo dia – fazia uma semana, dez dias, algo por aí, que o isolamento havia começado – bateu uma paranoia: “E se tudo continuar assim para sempre?”. Sério, eu tenho muito mais receio de uma vida bizarra e sem sentido do que da própria morte. E, confesso, houve momentos em que eu achei que aquilo nunca sequer melhoraria. Então, um belo dia, eu levanto de manhã, abro a janela da cozinha e me questiono: “E se for só isso mesmo?”. Quem leu o livro, reconhece esse dilema no primeiro conto – “846”. Essa história foi escrita em uma noite. Na manhã em que ela ficou pronta, enviei para alguns amigos e amigas. Eles disseram que gostaram. Tomara que não tenham mentido. Então, animei e comecei a escrever outros contos, que, de alguma forma, ligavam-se àquele momento da escrita. Serviam como remédio e diversão para mim. E para os meus amigos e amigas. Espero.

– Em “O grande evento”, você nos entrega drama, comédia, suspense, ficção científica. Personagens de um conto estão presentes em outro. Coloca, por exemplo, Salvador Dalí, Nietzsche e um nazista em um jogo de pôquer. E inova na estrutura. Fiquei muito curiosa para saber como foi esse processo criativo.

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O processo criativo nasceu exatamente dos desafios que me impus. Explico: depois de escrever o terceiro ou o quarto conto – não me lembro exatamente -, bateu uma ideia: e se os personagens e tramas compartilhassem um espaço-tempo qualquer? Eu adoro a ideia de universo compartilhado, seja Quincas Borba dando as caras em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, seja nos filmes da “Marvel”. Daí, tive de reescrever alguns detalhes nos contos que já estavam escritos. E ficar muito atento dali para frente, pois não é tão simples quanto parece inserir algum personagem em outra história diferente da que ele protagonizou. Depois, com os contos todos escritos, veio o novo desafio: embaralhá-los de forma a não deixá-los seguindo um fio narrativo óbvio e tedioso. Não era para ser um romance, entende? Era para ser um livro de contos, que o leitor coloca em ordem temporal segundo seus gostos, ideias e interpretações. Ah, e ainda criei mais uma dificuldade. Ao contrário do senso comum, que diz que livro de contos deve ter um estilo e um gênero uniformes, resolvi fazer exatamente o contrário: cada história seguindo uma construção completamente diferente da outra. Daí, o drama, o suspense, a ficção científica, o romance, o terror… Mudam também os focos narrativos, os discursos, os níveis de linguagem… Deu trabalho!

– Contar uma boa história não é fácil.  É preciso ter muita habilidade para fisgar o ouvinte, ou leitor. Conquistar o leitor já nas primeiras linhas é o segredo para o sucesso de um livro?

Penso que sim. Lembro-me de alguns inícios fantásticos de livros: “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, “O túnel”, de Ernesto Sábato, “O estrangeiro”, de Albert Camus. Pensemos nesse último: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez possa ter sido ontem. Não sei”. Como assim? Você vai querer continuar lendo para saber quem é esse sujeito estranho que não sabe nem o dia da morte da mãe. No caso de contos, a coisa, paradoxalmente, facilita e se complica. Por um lado, você já pode entrar com o pé na porta, porque a narrativa é curta e vai acabar rápido; por outro, tem de tomar cuidado para não entregar demais. Guimarães Rosa era mestre nisso. O início de “A terceira margem do rio” é exemplar nesse sentido. No caso do meu livro, penso que o conto “Filosofia, surrealismo e outras viagens” tem um início bem enigmático e provocativo. Aliás, é um início que homenageia o Rosa e seu monumental “Grande sertão: veredas.”

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– No livro, você cita ou faz referência a grandes nomes da literatura e da filosofia. Na verdade, você nos diz que se trata de uma homenagem a gênios, como Hemingway, Cortázar e Machado de Assis. Nessa obra, você reuniu todas as suas referências?

Olha… todas, não… Mas tem muita coisa! Explícita e implicitamente, Hemingway, Cortázar e Machado estão presentes o tempo todo. Nietzsche também. Tem Guimarães Rosa, Clarice, Camus, Sartre, Platão… Mas não é só a literatura e a filosofia que estão presentes não. O cinema não poderia faltar: “Vizinhança”, por exemplo, é claramente inspirado nos filmes de Alfred Hitchcock. “Deslocamentos” é uma homenagem ao cinema argentino. “Encontros e desencontros” tem um quê de Tarantino – e também da dinâmica dos quadrinhos. Não faltam referências às artes plásticas – Dalí e o Surrealismo no já citado conto que leva o nome do movimento estético no título – e à música – o conto “Alucinação” homenageia explicitamente a nossa MPB, o que já fica claro desde o seu título, que faz referência ao histórico disco gravado por Belchior em 1976. E tem “Star trek”, “Interestelar”, “O Silêncio dos inocentes”, Kafka…

Em um país onde se lê tão pouco, é preciso ter responsabilidade com o que é dito sobre literatura, livros e leitura. Mas não dá para ter medo de opinar, desde que se tenha fundamentos para expressar essas opiniões.

– “Sucesso garantido” apresenta uma escritora frustrada. Ela acreditava ser possível escrever livros de qualidade e ganhar muito dinheiro com eles. Reclama que ninguém dá valor a Guimarães, Clarice ou Machado de Assis, por exemplo. E aí ela encontra um caminho nada exemplar para ter êxito. Esse conto é um desabafo de alguém que vive da literatura?

Bem… sinceramente, acho que é um pouquinho sim. Eu sei que esse tipo de fala causa polêmica, mas vou falar mesmo assim: tem muito livro bom não sendo lido por ninguém e muita porcaria vendendo aos montes. “Ah, mas é a sua opinião.” Sim, obviamente. Nós, quando estudamos Letras, também nos habilitamos ao trabalho indispensável da crítica literária. E é o que estou fazendo aqui. Claro que há de se ter cuidado para que tal ato não se torne uma mera expressão de gostos pessoais ou, pior ainda, puro academicismo. Em um país onde se lê tão pouco, é preciso ter responsabilidade com o que é dito sobre literatura, livros e leitura. Mas não dá para ter medo de opinar, desde que se tenha fundamentos para expressar essas opiniões. Em tempo, nem de longe quero afirmar que o meu livro é o caso de um “bom livro”, certo? É divertido, interessante e feito com muito cuidado e carinho. Se é ou deixa de ser bom, fica por conta de leitores, críticos e professores.

“O grande evento”

Autor: Wagner Lacerda

Editora: Flyve (148 páginas)

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