“A memória é uma oficina de ossos”, assevera Mírian Freitas em “em cena de despedida em gangtey valley”, poema que integra a primeira das cinco partes de seu mais novo livro. “Não esquecer significa chorar/ a lágrima/ sobre o musgo da pele/ entre os galhos e as folhas das árvores/ dentro da casa íntima/ da memória.” Com título inspirado no verso que abre este texto, a obra chegou às prateleiras em janeiro deste ano. “Nessa ‘grande oficina da memória’, estão os ‘ossos’ afetos, luto, certezas e incertezas, amores, infância e vida adulta, as viagens e uma infinidade de vivências e recordações que não se findam”, comenta a escritora, que, em dezembro de 2022, já havia compartilhado, em outro livro, uma parte de suas lembranças.
Em “Mosaico” (Sempre-Viva Editorial, 96 páginas), contudo, as reminiscências da poeta nos chegam em forma de pequenas narrativas. Nesse caso, Mirían escreve o que sentiu quando soube que Hilda Hilst havia morrido. Escreve sobre o medo que ela sente do escuro. Escreve sobre o instante em que se despediu do pai. Escreve sobre momentos repletos de afeto. “Compartilhar minhas memórias tem sido uma experiência bastante significativa e gratificante, porque além de os leitores conhecerem sobre minhas reminiscências, consequentemente, dialogam com a deles próprios. Ler o outro é de algum modo, correr o risco de ler a si mesmo também.”
Mirían também é professora e ensaísta. Com “A memória é uma oficina de ossos” (Editora Urutau, 132 páginas) e “Mosaico”, ela engrossa uma lista de publicações que também incluem “Intimidade vasculhada” (7Letras), “Exílios naufrágios e outras passagens” (Patuá), “Quase” (JustFiction), “Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade” (CRV) e Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (Penalux).
Marisa Loures – Quem é o leitor que você quer que sua prosa e seus versos alcancem?
Mírian Freitas – Não existe um leitor ideal. Ítalo Moriconi disse em uma entrevista que os leitores estão passando por um processo de mutação devido à Era Virtual. Portanto, desdobraram-se em muitos, com diferentes gostos e expectativas. Qual escritor não gostaria de ter aquele leitor que dialoga e interage com seus textos? Outro dia recebi de um leitor um belo poema, “Beta solidão”, inspirado na leitura dos meus textos. Outros, fizeram leituras com interpretações diversas em dramaturgias, videopoemas, etc. Os leitores emudecidos também são acolhidos por aqui, pois são os que ruminam o fruto da leitura de uma outra forma.
– E por que você, poeta, resolveu dividir suas memórias com os leitores? Como é essa experiência?
– Compartilhar minhas memórias tem sido uma experiência bastante significativa e gratificante, porque além de os leitores conhecerem sobre minhas reminiscências, consequentemente dialogam com a deles próprios. Ler o outro é de algum modo, correr o risco de ler a si mesmo também. Esses poemas têm sido uma espécie de despertar da memória, segundo os próprios leitores. As várias nuances de fatos, viagens e outras tantas vivências rememoradas são como um universo em pedaços que não se findam, desdobrando-se aos olhos de quem os lê; remexe no depósito de ossos da memória de cada um.
– Lucas Mendes Ferreira escreve que “as facetas da memória se entrecruzam pelas cinco partes do livro, como janelas que se abrem para um infinito corredor”. O que está guardado dentro dessa “grande oficina da memória”, expressão usada por Miriã Xavier Benício em relação ao seu novo livro?
– Uma oficina é onde se fabrica ou se conserta algo. Neste sentido, esta fábrica produz incessantes memórias que, metaforicamente, são nomeadas de ossos, tão resistentes e duradouros que “talvez beirem à imortalidade”, como define Lucas Mendes no texto do prefácio. Essa oficina também pode representar um grande depósito de memórias (ossos), que se acumulam, muitas vezes, aparentemente esquecidas ou mortas, mas ali estão, prestes a serem ressuscitadas. Nessa “grande oficina da memória” estão os “ossos” afetos, luto, certezas e incertezas, amores, infância e vida adulta, as viagens e uma infinidade de vivências e recordações que não se findam.
– Nesse livro de poemas, você faz uma homenagem a alguns autores do passado e outros do presente. São todos referência para sua escrita poética?
– Sim, alguns poemas da seção “Corpos de luz” fazem referência e dialogam com escritores como Walt Whitman, Ocean Vuong, Maria Lúcia Alvim. Alguns são referências poéticas de longa data; outros, são leituras mais recentes, como é o caso de Ocean Vuong. Há também as epígrafes e intertextualidades com outros escritores que leio constantemente como Alberto Pereira, Edimilson de Almeida Pereira, Herberto Helder, Oscar Wilde, Wislawa Szymborska e outros. A energia desses autores atravessam meus textos como uma lâmpada vibrante e são “considerados como companheiros ou irmãos” no dizer de Gabriela Llansol.
– Na última seção do livro de “A memória é uma oficina de ossos”, você nos convida a passear por vários lugares pelos quais você passou, como Nepal, Índia, Butão, Boston… Fiquei pensando em como aqueles momentos vividos em todos aqueles cenários se transformaram em poesia… Os versos surgiram enquanto os momentos eram ainda vividos? Ou ficaram escondidos num cantinho da sua memória para, muito tempo depois, nascerem?
– Durante minhas viagens, quase sempre surgem versos para serem escritos depois. Neste específico livro, a seção “Sobre viagens” traz memórias que faço questão de manter acesas, porque foram importantes para o processo de autoconhecimento e, de alguma forma, ainda me iluminam nesta direção. Exemplo disso é o poema “Cena de despedida em Gangtey Valley” (Butão), escrito três anos depois. É uma memória que me ensinou muito sobre o Budismo e que ainda hoje me alimenta o espírito, como bem disse Szymborska: “É um daqueles momentos terrenos/ que se pede que durem”.
– É com uma citação de Clarice Lispector que você abre “Mosaico”: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.” É justamente assim que esse livro foi gestado?
– “Mosaico”, em sua maioria, foi escrito a partir das vivências nos EUA, quando lá morei por uma década, lecionando. Observa-se que, em sua maioria, o livro é constituído por narrativas curtas que representam fragmentos − facetas da memória−, marcas de uma vida. Portanto, esses retalhos de palavras era como a memória estava sendo vivenciada naquele momento, quando ainda me sentia uma estrangeira em meu próprio país. Sentia-me deslocada e a escrita reproduziu isso, pois os ”achados e perdidos” era como se encontrava minha memória e identidade ao regressar ao Brasil, e só consegui libertá-los da gaveta mais de uma década após meu retorno.
– Em “Mosaico”, você escreve sobre o que sentiu quando soube que Hilda Hilst havia morrido. Escreve sobre seu medo do escuro. Escreve sobre o momento em que se despediu do seu pai. Ali, também estão presentes as suas memórias, mas em forma de prosa. Já que estamos falando de memória, acabei me lembrando de uma conversa que tive há pouco tempo com o escritor José Eduardo Agualusa . Ele me disse que tem noção de que muitas das memórias dele eram falsas, ou, pelo menos, não inteiramente verdadeiras. Como você costuma lidar com suas memórias? Elas sempre são eternizadas por meio da escrita?
– A linguagem é uma arma poderosa para registrar memórias. Acaba mapeando-as e dando-lhes vida. Se escrevemos sobre elas, tornam-se imortais. Vejo-as, muitas vezes, como pássaros que estão numa gaiola, emudecidos, mas quando transcendem pela arte, seja pela literatura, pintura, música, escultura, esse pássaro se liberta e canta. Se por um lado a memória tem a função de guardar e conservar, por outro, liberta. Ela nos proporciona um encontro conosco mesmos. Para Proust, “os verdadeiros paraísos são os paraísos que perdemos para sempre”, é recriando-os no mapa da memória que os reencontraremos.
Autora: Mírian Freitas
Editora: Urutau (132 páginas)
Editora: Sempre-Viva (96 páginas)