Maíra Vasconcelos diz, em “Um quarto que fala” (Urutau, 66 páginas), que “Um poeta com as mãos em prumo/ talvez tenha a mesma aparência/ de um cartaz de protesto”. Em um desabafo feito no Facebook na semana passada, ela escreve que o jornalismo tem o dever de procurar respostas para algumas perguntas: “Quem matou Marielle Franco? Quem são os responsáveis pelo incêndio criminoso no ninho do urubu? Por que e como, no último dia 8, 15 pessoas foram mortas na maior chacina do RJ, desde 2007?” Maíra é jornalista, é alguém que se mantém atenta ao que acontece no seu tempo. Ainda é poeta. E, como tal, supõe que também tenha esse mesmo dever.
“O poeta, acredito, é necessariamente alguém que expressa o tempo em que vive. É inerente à atividade da escrita essa relação com o próprio tempo. Ainda que as influências possam vir, por exemplo, de poetas do século XIX, mas o retrato final deve ser dos dias atuais. Acredito ser muito importante pensar a contemporaneidade naquilo que se escreve. Com isso vem o sentido do que se cria, pois não faz sentido não comunicar com e pela própria atualidade em que se vive”, afirma ela, mineira de Belo Horizonte.
Maíra nasceu em meio a poetas e jornalistas. Não havia para ela outro destino a não ser lidar com as palavras. Durante os anos de 2011 e 2015, quando morou em Buenos Aires, manteve publicações de jornalismo político para o jornal GGN, editado por Luis Nassif e Lourdes Nassif. Trabalhando de maneira independente, cobriu eleições presidenciais no Paraguai, na Venezuela, no Chile e no Uruguai. Além disso, há cerca de dez anos, abastece o blog jornaliskra com seus escritos e, há cinco, exerce a atividade de cronista no GGN. “Um quarto que fala” é sua estreia na literatura e, segundo a autora, já na capa, a publicação diz muito sobre o que está inserido nos 65 poemas que o compõem.
“Um rosto indeterminado onde cabe o outro, onde o leitor pode, sim, estar naquele mesmo lugar. Nuvens cinzas e fortes chuvas estão para todos. Aquela pessoa sem rosto na capa pode ser vista nessa tempestade que não é exclusiva para nós, escritores e poetas. Estamos todos debaixo do mesmo céu. Mas parece que precisamos lembrar a todos disso”, reflete a poeta de “Um quarto que fala”.
O livro está à venda no site da editora Urutau e na Amazon.com.br. Os interessados em adquiri-lo também podem procurar a autora no Instagram (@maira.mv) , no Facebook ou pelo e-mail (mairav@gmail.com).
Marisa Loures – No primeiro poema da obra, o poeta está no quarto, em meio ao sacrifício, de tentar se “revelar, mais uma vez”. É nesse mesmo cômodo que ele está procurando possíveis denominações “para as coisas que se fingem comuns”. No último, ainda no quarto, o escritor “frente a tudo,/ escreve, ante toda e qualquer/ circunstância, e também/ em estados de quase declínio:/ eu continuo neste quarto.” Esse quarto que está presente no título e em todo o livro é indispensável para o nascimento da sua poesia?
Maíra Vasconcelos – Outro dia, recebi um comentário sobre o livro, do editor da Caiaponte Edições, o Marcelo Labes disse não lhe importar se o quarto era físico ou metafórico. Respirei aliviada, pois assim escapei de ter que contar onde escrevo. O quarto é o lugar onde tenho achado possível trabalhar, porque preciso de um lugar reservado e silencioso. Claro que sonho com um escritório, mas ainda não foi possível. Então, fazer do quarto o centro do livro, é falar também desde o lugar físico onde trabalho. Agora, o quarto pode ser lido de forma metafórica ou não, pode variar, depende do leitor. E jogar com isso me pareceu uma boa escolha para nortear a feitura do livro. Além do mais, foi quase inevitável a repetição do quarto nos poemas e, assim, de repente, vi que tinha um livro pronto. Era apenas continuar no quarto.
– Em quais coisas você pensa quando está no seu quarto e que te despertam a vontade de escrever?
– Escrevo quase todos os dias. Então, penso muito sobre como estou escrevendo e o que preciso melhorar. Por exemplo, estive durante anos exercitando a escrita com a intenção de ser mais simples e comunicativa. Antes de escrever, pensava, “preciso ser menos hermética”. Exerci isso durante anos, era o que eu pensava antes de escrever. Agora, os assuntos que são disparadores da escrita proliferam como praga, por exemplo, pela inconformidade com o social ou a partir da extração incansável do mundo interior, como se diz, das subjetividades. Mas pensar a relação com a própria escrita me é muito importante. Como a busca da voz narrativa, preciso achar essa voz, sem isso não faço nada, nada.
– Durante os anos de 2011 e 2015, você manteve publicações de jornalismo político, principalmente sobre a Argentina, para o jornal GGN, editado por Luis Nassif e Lourdes Nassif. Também cobriu eleições presidenciais no Paraguai, na Venezuela, no Chile e no Uruguai. Essa atuação no jornalismo político colaborou para que nascesse essa poeta “com as mãos em prumo”?
– Não sei responder a pergunta separando uma coisa da outra, não saberia dizer se o jornalismo político influencia a minha poesia, ou se é o contrário. Sei que cresci em um ambiente familiar onde sempre se discutiu muito política, e é assim até hoje. Meu avô Jair foi prefeito de Jequitibá, interior de Minas. Pensar a política nacional é tão corriqueiro para mim e meus familiares como falar do almoço de amanhã. Também há poetas na família, como meu tio bisavô, Raymundo Reis, que por volta de 1911 declarava em seus versos ser ateu e comunista. Além de outros jornalistas, minha mãe Mércia, meu tio Pedro Artur, este também poeta, e meu irmão Bruno. Então, o jornalismo político vem do meu dia a dia familiar, assim como a poesia. Mas demorei décadas para perceber a forte presença poética e que isso me pertence. Cresci com todas essas influências.
“Acredito que a existência é política e que somos um animal político. Sou do pensamento de que a consciência é política. Cuidado que não falo da política institucional dos partidos, nem de militância, falo da política como forma de participação social cotidiana. “
– E a produção literária deve ser sempre um ato político? É possível desvinculá-la dessa função?
– Acredito que a existência é política e que somos um animal político. Sou do pensamento de que a consciência é política. Cuidado que não falo da política institucional dos partidos, nem de militância, falo da política como forma de participação social cotidiana. Se você está na fila do supermercado, alguém passa na sua frente e você reclama o seu lugar, isso é político. Se nos vendem um produto estragado e você reclama com o dono da loja, isso é político. Se a Vale mata uma cidade e dois rios e os moradores se levantam contra a empresa, isso é político. Portinari dizia que não acredita em arte neutra. Também penso que a suposta neutralidade é uma mentira. Socialmente, tudo o que fazemos irá ocupar um lugar, ou um lado, como queiram.
– Na orelha do livro, Romério Rômulo afirma que gostou dos seus escritos desde a primeira vez em que leu um poema seu. Mas ele confessa não saber o que o fez gostar. “Não é a rima inexistente, não é o ritmo que falta, nem a contagem das sílabas que não há. Não é um signo disperso. O conjunto do texto-poema me soa esmagador e eu faço uma viagem sem sentido.” Essa ausência de rimas e métricas é essencial para o resultado que você queria alcançar em “Um quarto que fala”?
– Não faço muito ideia do que o Romério quis dizer, ele ainda fala da falta de ritmo, mas certamente mais do que dizer, ele tenha escolhido provocar. É bem dele, comunista e poeta, a provocação do pensar. Mas, realmente, a poesia contemporânea está mais desligada de rimas e métricas. Minha relação, como disse, é com a procura pela voz, pelo tom, também se terá humor ou não, e como será esse humor. O humor é algo importantíssimo, para mim, mas que ainda estou vendo como usá-lo. No “Quarto” há humor em um poema, mas não sei se está sendo lido assim.
“Acho interessante se a poesia puder entregar vida, riso, alertas sociais, incômodos, perguntas infinitas, nenhuma resposta, porque poesia não é jornalismo que deve responder nada a ninguém, nem trazer confortos banais ou sentimentalidades; que a poesia possa revelar a beleza dormente nos olhos, nas mãos, nas pernas de cada um.”
– Em um de seus poemas, você diz assim: “Fico a pensar quem guardará estas palavras,/ se terá preferência por um mês ou dois/ ou se a leitura virá determinada pelas estações”. Pensa no que vai despertar no leitor quando escreve? O que você espera que sua poesia provoque em quem a lê?
– Primeiro, se há quem lê, já é um passo enorme. Depois, antes de esperar qualquer coisa, irei trabalhar, irei escrever. Porque um escritor não senta e espera nada, um escritor quando se senta na cadeira, escreve e escreve. Mas, se respondo sua pergunta, acho interessante se a poesia puder entregar vida, riso, alertas sociais, incômodos, perguntas infinitas, nenhuma resposta, porque poesia não é jornalismo que deve responder nada a ninguém, nem trazer confortos banais ou sentimentalidades; que a poesia possa revelar a beleza dormente nos olhos, nas mãos, nas pernas de cada um. Não podemos achar que tomar café com uma amiga não é bonito, que conversar horas com os irmãos não é viver bem. Isso é viver muito bem. Se viver bem, hoje, é comprar qualquer coisa, espero que a poesia deixe de pagar o preço alto, que geralmente paga, por não se vender a esses valores.
– Você também é cronista, um ofício que requer um olhar atento para o cotidiano. Escreve semanalmente, desde 2014, crônicas para o jornal GGN. Como é trabalhar com as coisas do cotidiano, desse tempo ordinário, do que se repete regularmente, mas, ao mesmo tempo, tem algo de surpreendente quando mudamos nosso ângulo de visão?
– As crônicas, no início, preferi chamá-las de a-crônicas, com o sentido da negação. E apesar dos anos que levo escrevendo esses textos, ainda não achei uma voz única, trabalho várias e vario muito.Também nos assuntos, passo do cotidiano ao menos mundano. É um trabalho que considero ainda em aberto, como se não conseguisse me fixar apenas no cotidiano ou transformá-lo do modo em que julgo ser o da minha própria escrita falando o cotidiano. Nesta semana, por exemplo, conto sobre os desenhos da poeta Sylvia Plath, em um texto bastante explicativo. Mas se você procurar, vai achar prosa poética sobre a polícia que matou um suposto envolvido no tráfico. Ali no GGN, o Sebastião Nunes escreve crônicas semanais e todas têm a marca dele, ele tem um jeito fixo e entranhado. Fico lendo seus textos e sei que é possível chegar a essa concretização. Mas variar e se marear é parte do processo. Estou no início.
– Você escreveu outro dia no Facebook que “não é fácil encontrar leitores de poesia, mas essas raridades estão presentes”. O que você faz para colocar sua poesia na rua e encontrar seus leitores?
Ainda não sei como fazer e estou tentando descobrir e aprender. Esse é outro trabalho. Tenho entendido que não apenas se escreve, mas é necessário sair a buscar concursos, editores, leitores. E, conversando com alguns amigos músicos, estou aprendendo isso. Agora, por exemplo, respondo a esta entrevista e não sei ainda como o Tribuna de Minas me achou e se interessou por essa conversa, que, aliás, me deixa muito contente. Muito obrigada pelo espaço.
Sala de Leitura – Toda quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010)
“Um quarto que fala”
Autora: Maíra Vasconcelos
Editora: Urutau (66 páginas)