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Marcelo Moutinho escreve sobre grandes dramas corriqueiros em ‘Ferrugem’

Foto: Leo Aversa - Crédito obrigatório.
Marcelo Moutinho revela olhar atento para o cotidiano nos 13 contos de “Ferrugem”
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O que desperta os sentidos do escritor carioca, criado em Madureira, Marcelo Moutinho, são as pessoas comuns que povoam a cidade do Rio de Janeiro. Vozes que, comumente, não encontram espaço na literatura contemporânea brasileira. “Meu compromisso é muito mais falar da minha experiência como brasileiro, como alguém que nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, numa família iletrada, numa família na qual a literatura era algo absolutamente distante. Falar dessa classe média baixa de onde vim. Nós temos uma literatura, às vezes, ensimesmada. Os personagens são escritores, jornalistas, cientistas sociais, e eu quero falar de outros estratos. São os estratos com os quais convivi na minha infância, sobretudo, no meu bairro”, dispara o autor do recém-lançado “Ferrugem” (Record, 158 páginas).

Jornalista, Moutinho sempre teve o olhar atento para o cotidiano, para a cidade que está viva. Suas novas criações versam sobre a corrosão, uma corrosão do tempo sobre as relações, os desejos, os apetites e os afetos. “O título foi tirado da epígrafe do livro, que são versos de um poema chamado “Cartão de Natal”, do João Cabral de Melo Neto, em que ele propõe uma inversão do processo natural e diz: ‘E que possa enfim o ferro comer a ferrugem’. Quer dizer, não o processo de a ferrugem comer o ferro. Os contos do livro estão o tempo todo transitando nesse embate entre o ferro e a ferrugem, entre o viço e a corrosão”.

Também autor de “Na dobra do dia” (Rocco), “ A palavra ausente” (Rocco) e “Somos todos iguais nesta noite” (Rocco), entre outras obras, Moutinho tem contos traduzidos para países, como França, Alemanha e Estados Unidos.” De 20 de março a 5 de abril, ele estava entre os 34 escritores brasileiros que participaram da Primavera Literária Brasileira, a maior feira literária da França.

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Marisa Loures – Senti que os contos trazem um quê de melancolia. Por quê?

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Marcelo Moutinho – Tem um quê de melancolia sim. Eu sou um pouco crítico dessa lógica da alegria a qualquer preço, essa lógica de rede social. Quer dizer, a gente tem que estar o tempo todo mostrando uma vida que não é a vida real, é uma vida para exportação, digamos assim. Eu tenho ligação com o samba, e o samba tem uma lógica diferente. Muitas vezes você está cantando uma coisa muito animadamente, mas está falando de dores, está falando de questões metafísicas da nossa vida. Dor e delícia, misturadas. Acho que tento levar isso para a literatura.

– Seus personagens são pessoas reais que já cruzaram seu caminho?

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– Não, eles não existem. São personagens ficcionais, mas, evidentemente, são inspirados na minha experiência empírica de caminhar pelas ruas, de conversar com as pessoas. Procurei, na verdade, povoar o livro dessas chamadas pessoas ordinárias: uma trocadora de ônibus, uma caixa de supermercado, um cover de Roberto Carlos que trabalha numa decadente boate erótica. São aquelas pessoas que, geralmente, não estão presentes na literatura brasileira contemporânea. São pessoas cujas vidas são relativamente desglamourizadas,que parecem não ter muito interesse. E eu me interesso profundamente por essas vidas cotidianas das pessoas com quem a gente esbarra pelas ruas todos os dias.

– Na orelha do livro o escritor Alberto Mussa fala que você faz poesia com pessoas reais. E como é fazer poesia com pessoas reais?

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– O Alberto Mussa é muito generoso. Gosto de uma frase do Walter Benjamin, um ensaísta, num livro sobre a Berlim da época dele, 1900 mais ou menos. Ele fala que o escritor deve andar na rua como se estivesse numa floresta. E o que ele quer dizer? Ele quer dizer que, quando a gente está numa floresta, perdido na selva, por exemplo, a gente tem que aguçar nossos sentidos para perceber, no farfalhar de uma folha, o barulho de movimento de um animal. A gente tem que se orientar a partir dos sentidos e, muitas vezes, quando a gente está num espaço urbano, a gente fica cego de tanto frequentar aquele espaço. Então, a gente para de prestar atenção na paisagem urbana e nos personagens da rua. Acho que o processo do cronista ou do escritor de ficção passa muito por esse observar, aguçar os sentidos, mesmo no espaço urbano. Tirar daqueles acontecimentos, de uma frase perdida, de uma pequena cena, inspiração para reelaboração ficcional, para aquilo que vai virar depois romance, poesia ou conto.

– Você é jornalista. Foi seu lado observador que te levou para o jornalismo ou o jornalismo trouxe para você esse faro aguçado para o cotidiano?

– Acho que, talvez, ele tenha me levado para o jornalismo. Sempre fui interessado em boas histórias e também naquilo que é diferente de nós. Durante muito tempo, flertei com Antropologia Cultural, porque me interessa chegar a um meio social que não é exatamente o meio do qual eu fui, o qual eu frequento. A gente está num tempo de tanta radicalização, de tanta repulsa. Por isso, talvez, mais do que nunca, seja importante ouvir o outro numa perspectiva generosa, ouvir com a ideia de aprender que nem tudo é exatamente aquilo que a gente acha, que nem tudo é nossa experiência apenas. É desse confronto, desse diálogo, que a riqueza da vida pode fluir, pode nascer.

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– Voltando ao Alberto Mussa, ele escreveu que, quando leu pela primeira vez seus contos, teve certo medo de que você não conseguisse permanecer como escritor. Disse que, a cada ano, os prelos cuspiam antologias carregadas de experimentalismos formais já quase seculares e que você remava vigorosamente contra toda aquela maré. Esse seu remar é consciente?

– Não acredito que seja um remar consciente não. Não tenho absolutamente nada contra o experimentalismo na literatura. Muito pelo contrário. Acho que há experimentações interessantíssimas, assim como há livros mais calcados na tradição literária, na linearidade, no registro da tradição, que são excelentes também. E há livros ruins nesses dois vieses. Uma questão que prezo muito como escritor é ser sincero àquilo que te leva a escrever. Essa sinceridade nada tem a ver com busca da verdade. A gente está falando de ficção, afinal de contas. Mas, sim, um pacto de sinceridade com aquilo que te leva de fato: por que você foi escrever ficção? Por que você foi escrever literatura, contos, romances, poemas? O que te motivou a isso? O que te motiva a isso não é uma moda de ocasião. Não é porque, agora, vamos dizer, estão na moda livros experimentais que vou fazer livros experimentais. Não é porque estão na moda romances policiais que vou fazer romances policiais. Acho que a arte mais profunda está ligada à necessidade de expressão, e como ela se dá. Isso independente de modismo de ocasião, de ondas de momentos. Não tenho nenhum compromisso com ondas estéticas que possam vir. Até porque essas coisas passam.

– Seus contos foram traduzidos para países, como França, Alemanha e Estados Unidos. Você diz que sua intenção é dar uma “cor local” aos seus escritos. Essa “cor local” tem abertura lá fora?

– É curiosa a relação de como a literatura brasileira é vista em outros países. Nessa viagem (para participar da Primavera Literária de Paris), passamos pela França, Bélgica e Portugal, e percebemos um interesse muito grande de que a literatura desse conta de questões brasileiras, dos problemas políticos e sociais do país. Como se a nós, brasileiros, não fosse permitido escrever sobre relações amorosas, por exemplo. Como se esse fosse um assunto exclusivo de escritores de certos países. Acho natural isso, porque um leitor da França tem na literatura do país dele, por exemplo, um amplo repertório de histórias de amor e de perda. Então, quando ele vai ler um escritor desconhecido de outro país, ele quer ver uma cor local. Acho que não podemos ficar escravo disso. Afinal de contas, não escrevo para o leitor de fora. Escrevo para um leitor ideal que, no fundo no fundo, talvez fosse eu mesmo. Acho que gente escreve uma coisa que a gente gostaria de ler. Se esse texto faz sentido fora do país ou não, acho que é uma consequência, mas nunca uma busca.

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– Seu interesse pela cidade do Rio vem desde sua estreia como escritor. Sua obra fala, com nostalgia, de um Rio que não existe mais ou de um Rio que pode deixar de existir?

– Acho que tem dois flancos aí. Por um lado, sobretudo nas crônicas, no meu livro anterior, realmente busquei registrar um Rio de Janeiro em vias de desaparecimento, porque acho que as crônicas têm um pacto com o hoje. Mas acaba sendo uma forma de dar eternidade a certas paisagens urbanas, a certos comportamentos, a certas gírias. Quando você registra aquilo sobre forma de literatura, por mais que aquilo acabe, fica registrado e ganha uma certa eternidade. Baudelaire dizia que uma cidade envelhece mais rápido que um coração mortal. Quer dizer, a gente está sempre em descompasso com a cidade. A cidade apaga as nossas marcas de pertencimento, uma praça que a gente frequentou, um bar aonde a gente ia. A tendência é que essas coisas se transformem, e a gente fique com uma relação um pouco nostálgica com ela. Na crônica, realmente tenho esse compromisso. No conto, na minha parte mais ficcional mesmo, meu compromisso é com o agora. É falar de uma cidade que está viva, está potente e que, em geral, não aparece na literatura.

– Você disse em uma entrevista que esse é seu livro mais autoral. O que o diferencia dos outros?

– Não que não goste dos meus livros anteriores, é claro. Prezo muito os livros de contos anteriores, mas eu tinha uma quase obsessão com o retrabalho do texto literário para que ele ficasse absolutamente primoroso do ponto de vista formal. Acho que nesse livro deixei o texto um pouco mais solto, fiquei menos preso a esse retrabalho. Longe de isso significar desleixo, mas deixei passar algumas ranhuras e, por isso, acho que ele é mais próximo da nossa experiência de vida cotidiana. Nossa vida não é passada a limpo, ela tem um pouco de rascunho, é escrita enquanto a gente está vivendo. Então, é nesse sentido. Talvez eu tenha me encontrado com uma forma de escrever original minha, mas é uma impressão. Quem tem que dizer isso é o leitor na verdade.

 

“Ferrugem”
Autor: Marcelo Moutinho
Editora: Record (158 páginas)

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